sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

CATÓLICOS E JUDEUS - Um novo olhar



Comentário das Notas do Vaticano  de 1985.                         Michel Remaud





A Igreja e o povo judeu, uma relação original




"Jesus era judeu e assim permaneceu sempre" ( III, 12)

De todas as afirmações que o texto contém, esta é, talvez, a mais densa em conseqüências, por isso convém colocá-la à frente deste comentário. É que ela põe em evidência o fundamento da relação única e original que une a Igreja ao povo de Israel.

Dizer que Jesus é judeu, é, com efeito, expressar mais do que uma simples indicação sobre a sua origem étnica. Se bem que o povo judeu[1] seja, sob muitos aspectos, um povo como os outros, ele foi marcado, desde as suas origens, por um destino único: ele foi escolhido e constituído por Deus para ser o portador da Revelação e o parceiro da sua Aliança. Revelando-se a ele, Deus manifesta ao mesmo tempo o que  espera do homem, cuja vocação é tornar-se semelhante  à  imagem de Deus: " Sede santos , porque eu sou santo, eu, o Senhor vosso Deus" (Levítico, 19,2). Se o judeu escolhe responder ao apelo que Deus lhe dirige, dentro do seu povo, é, conseqüentemente,   alguém que se compromete a viver segundo a Palavra de Deus e a realizar, assim, o projeto de Deus para o homem. Neste sentido, Jesus não é, para nós, somente um judeu como outro qualquer: ele é aquele no qual se realiza o que Deus espera do seu povo. Dizer que Jesus é judeu nos leva, portanto, além de uma nota documentária sobre o seu lugar de origem e de sua língua materna, por importantes que sejam estas informações. É dizer que forma tomou, dentro do seu povo, sua personalidade e sua missão. A "judeidade" não é, para ele, algo acidental, mas um caráter fundamental do seu próprio ser.



      Eis porque o texto afirma que "Jesus permaneceu sempre" judeu.

Isto quer dizer, primeiro, que Jesus não é um "convertido". Ele nunca abjurou do seu judaismo, nem renegou, de nenhuma maneira, suas origens e seu passado. Mas isto significa também que Jesus ressuscitado permanece judeu. Longe de destruir o que ele foi, a ressurreição o glorifica e o torna eterno. Certamente a ressurreição é uma liberação que livra o homem de tudo o que o enferma. Ela o livra de todas as limitações  e de todas as estreitezas. Mas ela não suprime as características particulares (não confundir particularidade e particularismo) que formam uma personalidade. Na ressurreição a pessoa permanece com todas os seus componentes essenciais. Jesus ressuscitado permanece um homem  no qual a Igreja reconhece seu esposo. Ele continua como um ser corporal - mesmo que fique proibido à nossa imaginação  especular sobre as propriedades do "corpo espiritual" ( 1 Coríntios , 15,44).

 Isto é tanto mais verdadeiro sobre o seu "ser judeu" porquanto este termo expressa não somente seu enraizamento carnal, mas ao mesmo tempo seu lugar no plano de Deus. Louis Bouyer não hesita em escrever: "A igreja (...) é o Corpo do Cristo, mas este corpo onde o introduz mais profundamente cada celebração eucarística é o Corpo de um judeu...".[2]



Assim, a Igreja se acha ligada, por natureza e para a eternidade, ao judeu Jesus, e a todo o seu povo através dele. É de um judeu, em quem ela vê realizar-se o projeto de Deus, que ela recebe permanentemente sua própria vida. É, portanto na pessoa mesma do ressuscitado que ela reencontra o judaismo, e é por isso que o documento faz sua a afirmação de João Paulo II, segundo a qual  a Igreja e Israel estão "ligados ao nível mesmo de sua própria identidade"(1,2) . O Cardeal Echegaray , por sua vez, escreve: "A perenidade do povo judeu traz para a Igreja não somente um problema de ordem exterior a ser melhorado, senão um problema interior que diz respeito à sua própria definição."[3] Tais declarações se situam no centro do documento conciliar Nostra Aetate, Declaração sobre as relações da igreja com as religiões não cristãs, cujo parágrafo sobre os judeus começa por estas palavras: "Perscrutando o mistério da Igreja, o concílio recorda o vínculo pelo qual o povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à estirpe de Abraão".  É refletindo sobre ela mesma e não olhando aquilo que lhe é exterior, que a Igreja encontra o Judaísmo. Sua relação com o povo judeu contém assim um elemento único que não se encontra em sua relação com nenhuma outra religião. A herança comum, bíblica e litúrgica, sobre a qual o texto insiste, com justa razão, não pode prestar contas por ela mesma desta relação privilegiada, da qual ela não é  senão a conseqüência . A ligação com o povo de Israel se encontra inscrita na própria identidade cristã . Eis porque a comissão (romana) para as relações religiosas com o judaísmo escrevia, em 1974: "O problema das relações entre judeus e cristãos diz respeito à Igreja enquanto tal, porque é "perscrutando o seu próprio mistério" que ela se defronta com o mistério de Israel. Portanto, é um problema importante, mesmo nas regiões onde não existe uma comunidade judaica.[4] ". Esta mesma Comissão retoma hoje esta afirmação, tirando conseqüências dela: "Em razão dessa relação única que existe entre o cristianismo e o judaísmo "ligados ao nível de sua própria identidade", relação " fundada  nos desígnios do Deus da Aliança", os judeus e o judaísmo não deveriam ocupar um lugar ocasional e marginal na catequese e na pregação, mas sua presença indispensável deve ser integrada nesses setores de maneira orgânica"(1,2) . Trata-se de uma " preocupação  pastoral"(1,3), porque o conhecimento do judaísmo vivo "pode ajudar a compreender melhor certos aspectos da vida da Igreja"(Ibid.).

 


Antigo e Novo




Faz-se necessário fornecer esclarecimentos sobre os termos antigo e novo , que  são geralmente fonte de mal entendidos quando se trata das relações com o judaísmo.[5]



Nova Aliança



É no antigo Testamento que se encontra a expressão Nova Aliança.[6] Através do profeta Jeremias (31,31), Deus anuncia ao seu povo que experimentou a prova do exílio, que ele vai restaurá-lo, perdoando as suas infidelidades. A aliança nova que ele vai estabelecer "com a Casa de Israel e a Casa de Judá" não terá outro conteúdo senão aquele selado no Sinai.  Ela será nova no sentido de que a lei de Deus será escrita no coração do homem. Por sua vez, o profeta Ezequiel (36,26-27) anuncia  que Deus vai purificar o seu povo, retirar do corpo do homem o "coração de pedra" par a dar-lhe um "coração de carne", e dar-lhe o seu espírito para torná-lo capaz de observar a sua lei.

 Deus vai, portanto, renovar , desde o seu íntimo, o povo ao qual ele entregou irrevogavelmente a sua palavra, para torná-lo  capaz  de ser fiel.

   A igreja reconheceu na Páscoa  do Cristo o cumprimento dessas promessas. No sangue de Jesus foi selada a "nova aliança" (lc.22,20 ; 1Cor. 11,25), e foi em Pentecostes que o Espírito de Deus se derramou. Para os primeiros cristãos, que eram judeus, tratava-se de um acontecimento interno do povo de Israel, pelo qual Deus mantinha a palavra que ele havia dirigido ao seu povo. Não se tratava, de forma alguma, da fundação de uma nova religião.

   A história prosseguiu de maneira inesperada para eles: o povo judeu, em seu conjunto, não aderiu ao Evangelho, enquanto que a entrada dos pagãos convertidos superava, na Igreja, o núcleo judeu. Muito rapidamente se encontraram frente a frente o povo judeu e uma Igreja composta em sua totalidade, de não-judeus. Situação que bem depressa levou estes últimos a fazer, em seu proveito , uma leitura errônea dos textos que acabamos de citar. A uma primeira aliança com Israel - à qual ele teria sido infiel - Deus a teria substituído  por uma segunda, esta definitiva, com um outro povo, a Igreja, que teria suplantado Israel. Mas isto consiste em um contra sentido  total com relação ao sentido da Escritura, para quem a expressão "nova aliança" significa, ao contrário, que Deus é fiel, e que ele não pode retomar a palavra dada a seu povo uma vez por todas.

   Compreende-se, portanto, que tal leitura pode ter conseqüências desastrosas sobre a nossa percepção das relações com os judeus, pois se corre o risco de considerá-los como representantes de uma categoria ultrapassada. Essa leitura falseia, também, gravemente, a nossa concepção de Igreja, que aparece como um novo povo [7]substituindo-se ao antigo. Pois bem, se é verdade que a igreja e o povo judeu vieram a ser dois grupos socialmente diferentes, a Igreja entretanto  não teria nenhuma legitimidade se ela não fosse situada, pelo Cristo, na continuidade do único povo de Deus. Esta leitura, enfim, não pode senão empobrecer a nossa própria concepção da Revelação.



Novo Testamento



   A expressão Novo Testamento significa mais do que ela não traduz: o latim Novum Testamentum. Por ela mesmo, esta expressão não diz outra coisa senão Nova Aliança [8]. Entretanto é costume, em Francês, empregar as expressões Antigo testamento, Novo Testamento  para designar as duas partes da bíblia cristã. O Novo testamento designa, pois, mais do que  a ação mesma do Cristo, o texto escrito (Evangelhos, epístolas, etc....) que resulta da pregação apostólica e do seu desenvolvimento. É nesse sentido que ele será empregado aqui. É necessário, portanto, lembrar-se de que a aliança e o testamento  estão presentes um no outro.

   Muitos cristãos, hoje em dia, acham-se dispensados de ler o Antigo Testamento  sob pretexto de que a nova aliança teria substituído a antiga. Esta visão está longe do que diz a letra mesma do Novo testamento. Jesus cumpre as promessas feitas aos Pais ( Lc.. 1,54-55), e é Jesus ele mesmo que, depois de sua ressurreição, explica a seus discípulos Moisés, os Profetas e o conjunto das Escrituras (Lc. 24,27). O acontecimento Jesus se produz,  com efeito, no interior de um desígnio de Deus do qual a Escritura desvenda o sentido (At. 2) .

Para os primeiros cristãos que não tinham, obviamente, em mãos, o Novo Testamento, Jesus e as Escrituras se esclareciam mutuamente. O Novo Testamento é, em boa parte, o testemunho desta constante releitura da Escritura a partir da ressurreição.



Ele se apresenta muito menos como uma literatura autônoma do que como um guia para a leitura do Antigo Testamento, sem o qual ele seria bastante ininteligível. Pretender um Antigo Testamento ultrapassado  revela, portanto, um grave desconhecimento do Novo.

   O cristão que souber dedicar-se à leitura do antigo Testamento , dar-se-á conta, rapidamente, que é toda a Bíblia que está animada  por um dinamismo interno de perpétua renovação. Em uma história onde o fracasso e o pecado mesmo são uma ocasião de descoberta de Deus sempre mais profunda, o homem não cessa de se renovar e de encontrar - ou reencontrar - a vida numa Palavra cujo sentido e alcance não se esgotam por nenhuma interpretação, nenhuma situação. A  revelação bíblica não cessa de apoiar-se no passado para voltar-se para o futuro.[9] O Antigo Testamento não é unicamente promessa: ele contém também numerosas realizações ( se não, como teria podido o homem  do Antigo Testamento falar com tanta segurança da fidelidade de Deus? . E o Novo é também uma promessa. É trair, portanto,  o espírito da Escritura  quando se faz do antigo e do novo dois regimens sucessivos, em que o segundo aboliria o primeiro. O conjunnto da Revelação é uma passagem permenente do antigo ao novo.

   Este movimento caracteriza assim, à sua maneira, a leitura judaica da Escritura, que é uma procura ( midrash) permanente do sentido da Palavra de Deus. Seria uma descoberta para muitos cristãos que imaginam - errôneamente - que os judeus fazem uma leitura literal da Bíblia. Para começar, esta descoberta corre o risco de ser desanimadora para o cristão. Não familiarizado com uma leitura  à primeira vista muito estranha, ele terá a impressão de ver fugir o terreno comum no qual ele esperava encontrar o judeu.[10] Passado o primeiro espanto, e sem querer reduzir a distância que coloca entre nós a fé em Cristo, ele compreenderá que, no espírito que os anima, a leitura judaica e a leitura cristã da Escritura são mais  próximas do que parece numa primeira abordagem: judeus e cristãos temos em comum esta procura permanente do sentido de um Palavra que nunca termina de entregar a sua significação nem as suas energias, porque é a Palavra de Deus.



Povo escolhido



   O que foi dito sobre as relações do antigo e do novo pode ajudar a compreender melhor as reservas que o nosso documento formula sobre o uso da tipologia . O texto lembra que a tipologia "da qual nós recebemos o ensinamento e a prática da liturgia e dos Padres da Igreja"(II,4) "consiste em ler o Antigo Testamento como preparação, e, de certa forma, em esboço e preparação do Novo (II,5).

     Para os autores do Novo Testamento ( 1 Cor. 10,1-11,etc.) a leitura tipológica significava que, em Jesus, Deus desvendava o conteúdo de uma Palavra que, por ela mesma, está sempre aberta para um futuro .Por ser divina, a Palavra de Deus não pode nunca referir-se exclusivamente ao passado. Nenhum acontecimento pode dar-lhe cumprimento, no sentido de que se extinguiria a esperança da qual ela é portadora. Lembremo-nos de que a passagem do antigo ao novo é um dinamismo que já caracteriza  o Antigo  Testamento . Trai-se, portanto, o espírito dessa passagem se ela for considerada como uma ruptura. (II,4)

   Uma vez mais: haverá infidelidade ao espírito da Revelação se a tipologia se tornar uma transposição sistemática e quase mecânica de um Antigo Testamento - considerado como um simples repertório de imagens e prefigurações - para um Novo que seria o único portador de realidades. Se tal fosse o caso, o cristão deveria referir-se diretamente à realidade ela mesma, sem fazer a volta por uma prefiguração que lhe parece muitas vezes estranha, e que, longe de ajudá-lo a melhor captar o Novo Testamento, lhe parece, ao contrário, geralmente mais obscura.

   Articular nestes termos o antigo e o novo, é esquecer-se, como o texto lembra fortemente, que a revelação bíblica possui nela mesma sua própria significação. Ela não é uma alegoria, mas a história bem real das relações ativas entre o  homem e seu Deus. Pelo seu batismo, o cristão se encontra preso, ele próprio, a esta corrente. A Nova Aliança, por conseguinte, não significa que o crente não tenha nada mais a esperar. Ela o introduz , ao contrário, em um movimento crescente (Efésios,,,4, 11-16.Cf. Documento II,8) , e lhe permite entrar na esperança do Reino (Mateus 6,10) com todo o povo de Deus. (II,10-11)

    Se o abuso da tipologia suscita importantes reservas, pode-se, por outro lado, considerar o  povo de Israel como povo-tipo (ou, se se quiser, povo-referência ). A história do povo judeu é aquela, sempre atual, do encontro do com Deus, e nela se encontram todas as situações-tipo: combate espiritual, santidade, covardia, heroísmo, fuga diante de Deus, confiança, esperança, misericórdia... Povo-tipo, pois, e não  povo modelo. A Bíblia não é uma coletânea de histórias edificantes, mas o retrato do homem às voltas com ele mesmo e com Deus. E porque esta história é  iluminada  pela Palavra de Deus, ela dá a todo crente a possibilidade de reconhecer-se nela e de descobrir a sua própria história.

    Se o povo judeu foi posto a parte (Nm 23,9), foi para benefício da humanidade. A eleição não é um privilégio. Ela não confere direitos, mas acarreta deveres: manifestar o que Deus espera do homem, e guardar a esperança do que ele lhe promete. Como tal, um apelo exigente. A maneira como a Igreja e os cristãos responderam à sua vocação os dissuadirá de julgar a  maneira pela qual o povo judeu responde à sua. Mais do que a tais comparações, o documento nos convida a perguntar-nos como fazer frente, juntos, à nossa responsabilidade comum (II,11)....



Judaísmo e cristianismo na história



    Lembrar-se-á  quanto o balanço das relações entre judeus e cristãos durante dois milênios foi negativo"(Vi,25). Não é comum ver-se uma instituição romana recomendar que seja posta à luz, na pregação e na catequese, uma das responsabilidades coletivas que pesam muito fortemente na consciência do mundo cristão. O fato, em si mesmo, deve ser sublinhado. Não pelo gosto mórbido de uma auto-acusação, mas para por em relevo que a falta não é uma questão estritamente individual e que a comunidade cristã como tal pode fazer a experiência do arrependimento e da misericórdia.

    Com esta ressalva, não é possível fazer, em algumas páginas, o balanço de dois milênios de história. E se nos contentamos em justificar a conclusão mostrando que o saldo é negativo, deixamos em silêncio os períodos e as regiões que viram judeus e cristãos viver em bom entendimento. Arrisca-se, assim, de restar importância aos múltiplos casos individuais, detectados em todas as épocas, que mostram que a comunicação não foi jamais totalmente cortada. Comete-se , enfim, uma injustiça para com os cristãos que, nos momentos críticos, souberam colocar-se resolutamente do lado dos judeus. Não se faz uma obra de reconciliação quando se substitui à procura da verdade, a repetição de alguns simplismos , que não fazem outra coisa senão tranqüilizar o espírito . É necessário, pois, não ceder à tentação de fazer aqui um resumo desta história, e contentar-se de citar alguns pontos indicativos, enviando aos historiadores para um estudo mais aprofundado.[11]

    O primeiro destes pontos indicativos é a ruptura entre a Igreja e a Sinagoga e seu afastamento recíproco, na antigüidade. A expulsão dos cristãos da Sinagoga  e, paralelamente , o desaparecimento progressivo da presença dos judeus em uma Igreja onde muito depressa eles passaram a ser uma minoria. Depois, a polêmica entre a Igreja e a Sinagoga, envenenada pela competição missionária junto às massas pagãs. Uma sorte cada vez mais precária , reservada aos judeus, no Império que veio a ser cristão. No Ocidente, houve um deterioro brutal da sorte dos judeus , a partir do século XI, com os massacres dos judeus na ocasião em que partiram as Cruzadas. Acusações de crimes rituais, de profanações de hóstias, acompanhadas de violências populares. Perseguição, pela Inquisição espanhola, dos judeus convertidos  que voltavam, em segredo, às práticas do judaísmo. Expulsão dos judeus, com confiscação dos seus bens, pelos soberanos cristãos. Pogroms da Europa Central e da Rússia. e, sobretudo, o paroxismo que foi, no século XX, a tentativa de aniquilação pura e simples do povo judeu. Certamente este episódio não se inscreve exatamente na continuidade do que precede. O nazismo, em sua inspiração, não era menos anti-cristão do que anti-judaico. Mas a maior parte dos nazistas eram batizados.[12] A tentativa de genocídio foi cometida na Europa cristã. Ela tornou-se possível pela passividade dos cristãos, e muitas vezes com  sua cumplicidade ativa.

    Este passado antigo e recente não deve cair no esquecimento, por graves razões que tocam diretamente à fé cristã.

    Não é necessário demonstrar que esta história se opõe ao ideal de caridade que deveria caracterizar o cristão. Mas esta contradição deve ser examinada  mais de perto. Com efeito, dando provas de arrogância com relação aos judeus, os cristãos se tornam culpados , exatamente, do que eles lhes reprovam a partir do Novo Testamento: argumentar que recebemos de Deus sem nenhum merecimento  para nos orgulharmos diante dele, em detrimento de outros. Desprezar o judeu em nome do Evangelho é uma deturpação da mensagem de Cristo. O evangelho é um apelo à conversão interior. O anti- semitismo cristão consiste em apontar o outro como aquele que tem necessidade de se converter.

    O anti-semitismo cristão se nutriu de argumentos teológicos. Não foi o cristianismo que engendrou o anti-semitismo,[13] mas indiscutivelmente ele o entreteve e agravou. Muito rapidamente a teologia cristã resumiu a situação  do povo judeu em duas palavras: rejeição e substituição. Deus haveria rejeitado seu primeiro povo, para substituí-lo por um segundo, a Igreja. Tais conceitos não poderiam senão satisfazer a boa consciência anti-semita dos cristãos no meio dos quais os judeus sofreram.

    O anti-semitismo cristão é uma posta à prova, pelos cristãos, da obra da redenção realizada por Cristo. O Novo Testamento nos diz que Jesus destruiu o muro que separava Israel das outras nações (Efésios 2,14). Foram os cristãos que reconstruíram este muro, em nome de argumento supostamente do Evangelho. Fazendo isto, eles firmaram a imagem de um Cristo que separa, e fizeram da cruz um símbolo contrário ao do amor.

    O paroxismo que foi a tentativa de exterminação nazista deve ser  integrado no balanço a que o documento nos convida. Se ele não pode ser diretamente imputado ao cristianismo, ele é, pelo menos, o sinal de um fracasso: dezenove séculos de pregação do Evangelho não impediram que se produzisse no seio mesmo do mundo cristão, o maior desencadeamento de ódio que jamais foi abatido sobre o povo judeu.

    A questão das relações da Igreja e do judaísmo não é , portanto, uma questão menor ou marginal. Ela nos leva, ao contrário, ao centro do mistério da Igreja: a obra de reconciliação realizada no Cristo, e celebrada em cada Eucaristia. Se for preciso evocá-la, não será para encerrar-nos na culpa, mas para abrir-nos à graça. Além disso, o movimento de reconhecimento do judaísmo pelas Igrejas , que se supõe seja benéfico para o conjunto da comunidade cristã, foi, em grande parte, desencadeado pelos acontecimentos destas últimas décadas e suas conseqüências diretas. Não foi, sem dúvida, por acaso...



[1] As palavras marcadas com este nº 1 foram objeto de uma breve explicação no "Petit Lexique"p.34.
[2] Louis Bouyer: L' Église de Dieu. Cerf,1970,p.644.
[3] Intervenção no sínodo romano sobre reconciliação
[4] Orientações e sugestões para a aplicação da Declaração conciliar  Nostra Aetate no. 4,1 -12 - 1974.Em "As Igrejas diante do judaismo - documentos oficiais 1948-1978 ( Textos colecionados, traduzidos e anotados por Marie Thérèse HOCH e Bernard DUPUY, Cerf 1980,p.361) . Este livro será simplesmente designado em seguida, pela abreviatura "Hoch-Dupuy".
[5] O autor do presente comentário se expressou mais longamente sobre este ponto - como sobre um certo número de outros abordados aqui - em seu livro "Chrétiens devant Israel, serviteur de Dieu"(Cerf , 1983).
[6] Quanto à expressão "Antigo Testamento", não se encontra, no Novo, senão em 2 Cor., 3,14.
[7] A expressão 'Novo Israel" não se encontra em nenhuma parte no Novo Testamento.
[8] É nesse sentido que ela é empregada, hoje ainda, no texto oficial (latino) da liturgia romana. No latim como no grego, o mesmo termo designa "a aliança" em Lc.22,20 e 1Cor. 11,25 e "o Testamento" em 2cor. 3,14).
[9] Ver, por ex., os Salmos 78, 106, etc.
[10] Somente o costume - ou a ignorância - pode nos impedir de ver que a leitura cristã da Bíblia não é menos desorientadora para o profano do que a leitura judaica, da qual ela se inspira diretamente em seu espírito e em seus métodos. Comparar, por ex., Oséias  11,1 e Mateus 2,15; Êxodo 12,46 e João 19,37.
[11] Léon Poliakov: "Histoire de l'antisémitisme "( 4vol.) Calmann-Leviy, 1965, 1961, 1968,1977. Edição abreviada em 2 volumes (1981) . F. Lovsky: "L'antisémitisme  chrétien" (Editions du Cerf, 1970).
[12] Mais de um cristão é capaz de saltar quando ouvir que judeus colocam a Hitler  entre os cristãos.Em função do diálogo, é bom saber que o termo  "cristão" não tem  exatamente a mesma ressonância para o judeu do  que para  nós. Enquanto que ele evoca primeiro , para nós , uma opção religiosa e designa alguém que adere à fé cristã  (não faltam pessoas batizadas que se dizem com toda a boa fé,  não cristãos) , muitos judeus o entendem antes (não  exclusivamente)  como a designação de uma pertença social. (em nossas regiões, cristão é, então, "grosso modo", sinônimo de não-judeu ( e não muçulmano). Antes de se indignar com essa simplificação - e sem desistir , entretanto, de se explicar - o cristão poderá perguntar-se como a história chegou a  tornar isto possível.
[13] Na última edição (abreviada) de sua "Histoire de l'antisémitisme", Léon Poliakov  corrige sob este ponto de vista sua primeira edição ( Calmann-Levy, 1981, T.1, pag. 7)

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