segunda-feira, 28 de novembro de 2011

OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA

LUCIANO JOSÉ DIAS

OS DEUSES DA HUMANIDADE E O DEUS QUE SE REVELA

CENTRO CRISTÃO DE ESTUDOS JUDAICOS
(CCEJ)
São Paulo
2011

Trabalho de conclusão do curso de Pós-Graduação Lato-Sensu em Cultura Judaico-Cristã, História e Teologia. Exigido pelo Centro Cristão de Estudos Judaicos como Requisito parcial para conclusão do curso de Especialização. Orientador: Professor Ms. Ir. Elio Passeto.

Sumário




INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como conteúdo algumas das percepções acerca da representação divina realizada pela humanidade ao longo da história. Nele, também esta inserida a idéia do conceito de Deus para o povo judeu, descrito nos livros bíblicos, e também para os cristãos. Este estudo tem por objetivo mostrar que um mesmo tema, em nosso caso “Deus”, pode ser encarado de diversas formas através de diferentes visões, desta forma, Deus pode ser visto como um Ser amoroso ou mesmo destruidor.
As várias concepções a respeito do significado e da atuação da divindade na vida do individuo ou até mesmo dentro de um grupo são questões evidenciadas desde a Antiguidade, na qual se insere o contexto bíblico, até os tempos contemporâneos. A depender da visão criada pelas pessoas acerca de um Ser Supremo, pode-se perceber a influência que Ele é capaz de exercer em cada individuo. O conceito que a humanidade tem sobre divindades, se dá dentro do contexto cultural de cada povo e no contato entre as diversas culturas.
Por meio de uma análise bíblica, percebemos que o povo de Israel também foi aprendendo sobre Deus ao longo de sua história, da mesma forma como continuamos a aprender até hoje. A experiência do Sagrado sempre levará em conta o contexto em que o ser humano está inserido, a bagagem cultural que traz com sigo, tal como os conflitos que lhe cerca, por isso, a compreensão que fazemos de Deus depende da compreensão que o ser humano tem de si mesmo. Esta compreensão nunca é absoluta, é sempre relativa.  
Por intermédio deste trabalho: “Os deuses da humanidade e o Deus que se revela”, apresentaremos como o ser humano fala de Deus de diversas maneiras, nosso ponto de partida será a Suméria, como o povo compreendia Deus em sua época, passando logo após pelo Egito, pela filosofia, pelo universo bíblico, percorrendo trechos da Escritura Sagrada, mostrando que, o mesmo e único Deus apresentado no Antigo Testamento é o mesmo Deus apresentado por Jesus no Novo testamento. Tentaremos oferecer uma possibilidade de resposta para a inquietude de vários corações que não conseguem aceitar a existência do mal com a existência de Deus, e se perguntam: Se Deus é bom, como pode permitir que o mal aconteça? Ou como poderia ele mesmo fazer o mal a um povo? Já há tempos a filosofia tentou responder a esta questão.
Como compreender um Deus que destrói, aniquila matando adultos e crianças, expulsa moradores de sua Terra para dá-la a outros? (Deut 7,6; 14,2) Quem nunca se perguntou como pode Deus ser tal mal, matando todos os primogênitos do Egito? (Ex 12,29-31) Crianças indefesas pagando pela culpa de seus pais. Ou como ele pode destruir todos os soldados do faraó que entraram no mar dividido ao meio por Moisés em busca do povo hebreu?(Ex 14,26-31). Não haveria nenhum justo entre os soldados que estavam somente obedecendo a ordens?
Acredito que a relevância deste trabalho esteja exatamente em esboçar algumas possíveis respostas a estas e a tantas outras questões que surgiram no decorrer de nossa pesquisa, e agora se encontram registradas nas linhas que seguirão. A comunidade acadêmica, portanto, poderá ser enriquecida com as conclusões que juntos chegaremos, aprofundando-nos no mistério de Deus milimetricamente, à medida que o próprio Deus permita, tendo visto que Ele é quem inicia a busca pelo diálogo com o ser humano, revelando-se numa única face, que cada indivíduo ou grupo enxergará como múltiplas faces dependendo do momento cultural vivido. Daí elas variarem muito. Numa situação de guerra contra inimigos poderosos, enxerga-se um Deus guerreiro para animar as pessoas nos combates. Em momento de lutas internas religiosas, enxerga-se um Deus exigente no cumprimento de leis para evitar a desordem social.
Em nossa abordagem de Deus no Antigo Testamento nos revelará a maneira como o povo foi criando uma compreensão de Deus através de uma intima experiência Dele.
Percorramos juntos este trabalho, e façamos também a experiência de Deus.

CAPÍTULO I



Já no inicio da aventura humana sobre a terra, o homem pré-histórico tentava imaginar quem teria criado as coisas existentes e como seria este Criador que não podia ser visto[1]. A grande aventura de falar sobre Divindades perpassa todos os séculos da existência humana, desde quando se tem relatos. Os registros mais antigos desta aventura vêm da Suméria[2], região onde foi inventada a escrita, há cerca de quatro mil anos antes de nossa era.
Através de tabletas de barro, hoje guardadas em museus, ficamos sabendo que os sumérios acreditavam em deuses com formas humanas e imortais. Também na Suméria, os deuses começaram a se preocupar com o comportamento do povo.
O “Pai dos códigos”, criado há cerca de três mil anos a.C. foi escrito por um rei, mas com o auxilio de Shamash[3], um deus muito importante. Da Babilônia, no séc. 18 a.C., veio o “Código de Hamurabi[4]”, que permitiu ao rei informar a seus súditos que as leis foram transmitidas pelos deuses. A lei do talião, “olho por olho, dente por dente”, fazia parte desse código.
No Egito, séc. 14 a.C. apareceu o faraó Akenaton, que acabou com a proliferação de deuses em sua terra e adotou Aton, como único deus de seu povo[5].
Os homens da antiguidade, quando encontravam um novo deus para guiá-los, logo descobriam sua personalidade, que por coincidência, se parecia muito com a personalidade dos próprios profetas. Aton, o deus de Akenaton, era pacífico, amante das artes e dos animais. Antes dele, o panteão egípcio era formado por milhares de entidades, com qualidades e defeitos humanos. Havia deuses protetores dos doentes, da agricultura, do casamento etc. Os deuses gregos eram chefiados por Zeus, que ora podia ser amável, ora violento com a gente da Terra.
O conceito sobre Deus é um aprendizado permanente da humanidade ao longo dos séculos, dentro do contexto cultural de cada povo e no contato entre as diversas culturas.
Por meio da Bíblia, percebemos que o povo de Israel também foi aprendendo sobre Deus ao longo da história, no desenrolar dos conflitos, das crises, das vitórias e alegrias do cotidiano, assim, também nós continuamos e continuaremos, no decorrer do tempo, fazendo experiências de Deus e estas experiências sempre levarão em conta o contexto em que o ser humano está inserido, sua cosmo-visão, a bagagem cultural que traz consigo, tal como os conflitos que o cercam.
A compreensão que fazemos de Deus depende da compreensão que o ser humano tem de si mesmo, de como ele se compreende dentro do mundo e de suas relações com outros seres.
O livro mais conhecido de todos os tempos, a Bíblia, que mostra a íntima relação de Deus com um povo (neste caso, o povo de Israel), ao ser analisado por olhares ocidentais e não semitas, coloca-nos de frente com um intrigante dilema: o mesmo Deus que é compreendido sendo salvador e misericordioso com Israel é ao mesmo tempo colérico e destruidor junto a outros povos que se opuseram a Israel, revelando-se algoz de sua própria criação, visto que tudo foi criado por Ele.
Como compreender um Deus que destrói, aniquila, matando adultos e crianças, expulsando moradores de sua Terra para dá-la a outros? (Deut 7,6; 14,2) Quem nunca se perguntou como pode Deus ser tão mal, matando todos os primogênitos do Egito? (Ex 12,29-31) Crianças estas, indefesas pagando pela culpa de seus pais. Ou como ele pode destruir todos os soldados do faraó que entraram no mar dividido ao meio por Moisés em busca do povo hebreu? (Ex 14,26-31). Não haveria nenhum ser justo entre os soldados que estariam somente obedecendo a ordens?
Estas questões reavivam no fundo do coração humano a pergunta sobre como compaginar a existência do mal com a existência de Deus. Se Deus é bom, como pode permitir que o mal aconteça? Ou como poderia ele mesmo fazer o mal a um povo? Já há tempos a filosofia tentou responder a esta questão.
O filósofo pré-socrático Epicuro[6], em síntese, colocava a questão da seguinte maneira: "Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer e nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer e nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então existência dos males? Por que razão é que não os impede?
Sábio Epicuro, que colocou uma pergunta: “desde que o mundo é mundo agita o coração humano.  Se Deus é bom, como pode ser que exista o mal, que o ser humano faça tantas coisas não boas, que a vida humana seja atravessada de tantos sofrimentos?  Se Deus criou todo o bem, por que a desordem instaura o mal e o medo na criação divina, que deveria conduzir somente ao Bem e ao Amor?”
No século XIX, o filósofo Leibniz[7] refletiu novamente sobre esta problemática e até criou uma nova área do pensar filosófico e teológico: a teodicéia.  Teodicéia vem de Theos (Deus) e dike (justiças).  O nome quer dizer  que a reflexão desta área filosófica questiona justamente esta incompatibilidade entre a existência de um Deus todo bom, todo amoroso e misericordioso e a existência do mal. A solução de Leibniz foi dizer que o mal não é uma realidade, não tem consistência em si próprio, é apenas um vácuo, um vazio, uma carência: a carência do bem, do amor de Deus.
Ainda neste mesmo século XIX, Karl Marx[8] concluiu que a religião, considerando o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, “amortece a combatividade dos oprimidos e explorados porque lhes promete uma vida futura feliz. Na esperança de felicidade e justiça no outro mundo, os despossuídos, explorados e humilhados deixam de combater as causas de suas misérias neste mundo”[9]. Desta forma, Marx tinha a visão de que a figura divina acendesse dentro de cada individuo a expectativa de uma vida posterior muito mais gratificante do que esta, criando certo tipo de acomodação dos mesmos.
Indo de encontro às concepções atuais, encontramos discursos como: “Um individuo inflexível e inseguro, por exemplo, dificilmente terá uma percepção que não seja de um Deus guardião, normativo, caprichoso e intolerante; já alguém que avançou no processo de autoconhecimento e está prestes a superar as dualidades (bastante presente na visão maniqueísta[10] da vida), tende a perceber Deus como a expressão do absoluto, intangível, permanentemente compassivo no sentido da aceitação do que é”. Esta análise mostra que a noção do criador muda e se refina de acordo com o conhecimento que o homem vai adquirindo.
Em meio a tantos conceitos relacionados a um único ser, pode-se verificar como uma única e só figura é capaz de se revelar em diversas formas, mostrando sua influência para um grupo, como foi o caso do povo de Israel em Deuteronômio, Êxodo e em tantos outros livros da Bíblia, ou para as mais variadas mentes de filósofos de determinadas épocas. Essa visão eclética de diversos pensadores explicita que o período em que vivem, os contextos em que estão inseridos, interfere e muito na construção de suas influências, levando, de acordo com cada conclusão, à formação das múltiplas faces de Deus.


Mas afinal, quem é Deus? Assim tem perguntado a tradição ocidental. E ela deu respostas que são a tentativa de compreender o Ser mais profundo de Deus por meio de uma lista inteira de qualidades eternas.
Os homens da Bíblia costumavam falar de outra forma a respeito de Deus. Quando falavam de Deus, narravam, sobretudo, situações da vida deles nas quais tinham percebido quem era Deus e como ele os mudava ou queria mudá-los.
A situação original, em que os homens bíblicos perceberam quem é Deus, era o caminho[11]. O caminho de um para o outro e de um com o outro. E, sobretudo, o caminho para o qual ele os chamou e no qual ele, junto com eles, andou. É neste caminho que o homem é apreendido por Deus. Experiência de Deus na Bíblia não significa que nós possamos decidir quando, onde e como estaremos inclinados ou com vontade de encontrar Deus, não somos nós que nos encontramos com ele, mas Ele é que se encontra conosco. “Senhor misericordioso e piedoso, paciente e rico de bondade e fidelidade, age com bondade sem medida e perdoa as ofensas, as injúrias e o pecado, mas é tocado pela injustiça e pelo pecado e não os aceita simplesmente, mas os combate” (cf Ex 34,6-7).
Este é o caminho a seguir para entender quem é Deus. Somente quem é bondoso sem medida, quem é tocado pela injustiça e pelo pecado e luta contra eles, quem vive o perdão compreende quem é este Deus. Não é na contemplação ou no culto de uma imagem de Deus que se experimenta o Deus bíblico, mas sim, agindo como ele, pondo-se no caminho aberto por ele, no qual ele vai à frente. (Imitatio Dei).
O Deus bíblico quer mostrar, neste mundo, quem ele é através de pessoas vivas. Os homens se tornam desta forma imagens de Deus quando tomados e modificados por ele a fim de seguirem seu caminho.
O que fascina na história do povo de Deus na Sagrada Escritura é o fato de, mesmo tendo sido tentados a seguir seus próprios caminhos, os homens da Bíblia nunca desistiram da tentativa e da ousadia de buscar e seguir a palavra de Deus. As muitas páginas da Bíblia dão testemunho de como eles se puseram no caminho que Deus quis conduzi-los. Mas esta tentativa não foi fácil, pois muitas vezes alguns ficaram no meio do caminho ou se desviavam para rotas que lhes pareciam mais confortáveis. Mas é neste peregrinar que o homem bíblico foi descobrindo a unicidade de Deus, percebendo que não existe outro.


Hoje, nosso olhar Ocidental sobre os relatos bíblicos nos faz buscar a historicidade do texto e este, por sua vez, mostra-se contraditório exatamente por não ser histórico, muito embora trate de dados concretos da vida de um povo. Esta busca pela historicidade ludibria muitos autores que analisam o Antigo e o Novo Testamento acreditando encontrar um Deus totalmente diferente em um e noutro.
Um exemplo do que dizemos seguirá abaixo, onde analisamos um texto de SOUZA, Vitor Chaves, estudante da Universidade Metodista de São Paulo localizada em São Bernardo do Campo/SP, que, em 2007, desenvolveu em sua monografia o tema: As faces do Senhor, onde ele se propôs a demonstrar a diversidade e profundidade dos nomes de Deus no Antigo Testamento e suas ações através destes nomes. SOUZA nos convida a observar que Deus (no nosso caso o Senhor) é uma profunda reflexão ao invés de definições e conceitos teológicos. Souza tenta demonstrar que as manifestações de Deus no Antigo Testamento são as mais diversas e, mesmo diferentes sem anular uma à outra, se complementam. Segundo ele, esta seria mais uma face do Senhor, a face pedagógica, que sofre mutações teológicas segundo sua revelação e transformação dentro da história.
Sendo assim, o Senhor no Êxodo torna-se um Deus guerreiro, a começar pelo significado do nome Israel: “Deus reto e fiel na luta”, um Deus de milagre na luta, Deus de sinais grandes e terríveis (Êx 6-22), que se referem à intervenção salvifica, proporcionada pelo Senhor “com braço estendido e com grande espanto” (Êx 6,6), pois o Senhor, na luta e na guerra, em que ele “combatia para proteger os seus”, tem milagrosamente a face do “livramento” (ÊX 13s), um milagre, não para fazer lutar a guerra santa, mas que livra e salva o povo de Deus de uma situação desonesta. Situação esta, registrada nas intervenções do Senhor quando, estando o faraó com seus carros de guerra e os hebreus quase desarmados, Esse “intervém em prol dos desarmados hebreus”, equivalendo, pois, ao livramento e defesa dos mais fracos. O problema do Senhor guerreiro, aquele Deus que luta, é que foi através das guerras “que se radicalizou a intransigência da fé no Senhor”, ou seja, a face do Deus libertador pode ser, pelo entusiasmo e emoção de alguns, transformada em um Deus que combate para massacrar e salvar somente um povo considerado eleito.
O que SOUZA talvez não tenha levado em consideração em seu trabalho é o fato de que o Deus da luta ou lutador neste caso é uma conotação não bíblica, mas sim uma maneira de projetar valores recentes de análise da sociedade e tentar explicar os textos que estão em outros contextos. Deus é um Deus da Aliança e podemos dizer que até aí segue um costume dos outros povos, porém, aqui exige um engajamento de vida e uma correspondência sem igual em relação a Ele. Um mundo sem Deus é um mundo da morte. As mortes não são uma ação de Deus, mas uma ação do não Deus. Deus não age para que venha a morte, é Ele que se apresenta como alguém que gera a vida diante de povos que vivem uma realidade de morte.
O nome YHWH[12] (nome inefável, O Senhor, assim traduzido para o Grego e para o Latim) é um equivoco desde sua maneira de se definir. Há na tradição uma maneira mais rica de ver a manifestação de Deus por atributos onde um representa o atributo de justiça e o outro (Elohim), representa o atributo da misericórdia. É na harmonia destes dois atributos que o mundo se torna possível. A linguagem usada para analisar o texto não pode fugir à linguagem da época, mas ela não deve ser entendida como nós a entendemos com os critérios de hoje. O texto deve nos informar do passado e não o presente dizer como era o passado[13].
Outro autor, MESQUITA[14], em seu livro, destaca que o Deus do Antigo Testamento é ainda um Deus escondido (Is 45,15). Ele dirige os passos do homem sem que este compreenda o caminho (Pr 20,24). Antes mesmo que o homem se volte para Deus, Ele mesmo toma a iniciativa e lhe fala primeiro.
Analisando estas afirmações destacamos que sempre o principio bíblico é de que Deus toma a iniciativa, isso se dá mesmo no Novo Testamento. O homem o busca, mas é sempre Deus que se deixa encontrar.
MESQUITA continua sua narrativa dizendo-nos que no meio oriental (onde se achava o povo bíblico) usava de artifícios puramente humanos para penetrar nos segredos do Céu (adivinhações, presságios, lançamentos de sortes, astrologia, sonhos, etc.), durante muito tempo conservaram-se no Antigo Testamento essas técnicas arcaicas, purificadas, porém, dos seus condicionamentos politeístas.
Assim, Deus confia sua revelação aos canais tradicionais, condescendendo com a mentalidade ainda muito imperfeita do povo bíblico.
Porém, depois com os profetas, Ele vai afastando as magias e as sortes; os falsos profetas são combatidos e escorraçados, até que a revelação pela Palavra – “Davar”, (símbolo do “Logos” divino) predomina e vence.
A partir daí, a revelação se faz, também, por meio dos dons divinos da Inteligência, da Sabedoria e da Ciência, apelando para a reflexão bíblica (os livros sapienciais).
O que Deus revela é sempre de ordem sobrenatural. A revelação divina não tem por objetivo as ciências e as artes humanas.
Por sua natureza, o homem não sabe exatamente o que Deus quer dele. Então, Deus revela seus planos, a começar por lhe traçar normas de conduta, de orientação religiosa, de instituições políticas e sociais (cf. os livros do Pentateuco, isto é, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento).
Deus revela também o sentido da História e dos acontecimentos pelos quais seu Povo deve passar. Históriadores, salmistas, profetas, sábios se aplicam a essa intelecção do sentido da História. Então, os fatos dão crédito à palavra e conduzem os homens à fé.
Enfim, Deus revela, progressivamente, os segredos dos “últimos tempos”. Sua palavra se torna uma promessa. Revela-lhe o Salvador que há de vir, o Emanuel, o Deus conosco, que há de ser um servidor servo sofredor (cf. os capítulos 52 e 53 de Isaías).
Assim, Deus que já se revelara a si mesmo nos fenômenos da natureza (no trovão da tempestade, na nuvem do céu, no fogo que abrasa, na brisa da tarde, etc.) culmina por dar aos homens um anúncio antecipado do Messias, que há de vir: “...a glória do Senhor se revelará e toda a carne há de vê-la...”(Is 40,5).
MESQUITA faz uma afirmação simplista que não se sustenta. Que houve uma evolução, isso é lógico e normal, mas de forma alguma Deus é distante. Ao contrário, Deus intervém diretamente na história. Os relatos não são expressão da história, eles refletem centenas de anos vividos e depois relatados resumidamente que Deus estava presente com eles no percurso da história. A Bíblia mostra muitas vezes a experiência de amor diante de Deus, de proximidade, de segurança[15].


Libanio[16], em seu artigo, o Deus do Antigo Testamento, elucida nossa compreensão a este respeito, ele fala-nos que o judeu piedoso repetia freqüentemente o ato de fé, o célebre “shemá”, que Jesus também rezava: “Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, é o Senhor que é UM. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com todo o teu ser, com todas as tuas forças” (Dt 6, 4).
Sim, o Deus do Antigo e o do Novo Testamento é um e o mesmo Deus. Verdade que pertence ao fundamento de nossa fé. Lá nos primórdios do Cristianismo, surgiu um herege chamado Marcião[17], que se escandalizou com a enorme diferença da imagem de Deus do Antigo Testamento e a apresentada por Jesus. Lá ele via um Deus demiurgo, criador do mundo visível. Suas intervenções na história pareciam contraditórias com paixões violentas de ciúme, despotismo, crueldade, capricho. Tão diferente do Deus revelado por Jesus: Deus de amor. Concluiu, portanto, que o Deus do Antigo Testamento não é o mesmo do Novo: diverso e até mesmo oposto. Um nada tinha a ver com o outro.
À primeira vista, tal posição parece uma dessas esquisitices que surgem, de tempos em tempos, na história. Tem, porém, a vantagem de levantar um sério problema. Com efeito, se tomamos a Escritura ao pé da letra, como uma revelação-ditado de Deus, realmente ficamos perplexos diante da diferença de muitos traços de Deus do Antigo Testamento comparados com a imagem que Jesus nos ofereceu de Deus seu Pai.
O fato da afirmação unânime e constante da fé cristã de reconhecer em Deus o Pai de Jesus não resolve as dificuldades que Marcião percebeu. Ele teve o mérito de expressá-las de maneira contundente, exigindo uma resposta esclarecida por parte da fé.
No fundo, subjaz a tal questão uma concepção de revelação de Deus. Sem esclarecê-la, não temos condição de entender a unicidade de Deus. Uma comparação muito simples pode talvez ajudar-nos a compreender melhor o problema. Imaginemos que não conhecemos pessoalmente a determinado indivíduo. Encontramo-nos diante de uma série de fotografias que tiraram dele. Elas foram feitas com máquinas fotográficas e recursos técnicos bem diversos, desde os mais primitivos até os mais sofisticados. O resultado foi que algumas fotos nos oferecem traços bem confusos da pessoa a ponto de apenas percebermos sua figura e outras são de enorme nitidez. Os escritos bíblicos são fotografias de Deus feitas em momentos culturais muito diferentes por pessoas e povos vivendo experiências extremamente diversas. Daí elas apresentarem tal variação. Desta sorte, o povo judeu numa situação de guerra contra inimigos poderosos, fotografou um Deus guerreiro para animar as pessoas nos combates. Em momento de lutas internas religiosas, os hagiógrafos desenharam um Deus exigente no cumprimento de leis para evitar a desordem social.
Em Oséias, Deus carrega ternamente em seus braços a Efraim como a uma criancinha de colo. (Os 11,3)
Várias são as perguntas: De onde vem a diferença: de Deus ou das condições humanas, limitadas, diversas dos escritores sagrados? Como interpretar essas imagens: como traços independentes ou como um processo histórico de modo que a figura mais perfeita corrige as imperfeições das anteriores?
Partindo do fato de que a revelação se dá na história que é progressiva e que chegou a Jesus Cristo a seu ponto mais elevado, devemos interpretar as imagens de Deus a partir da mais perfeita oferecida por Jesus. Em última análise, podemos dizer que a figura de Deus encontrará sua expressão mais perfeita na revelação de Jesus. “Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único de Deus, que está junto ao Pai, foi quem no-lo deu a conhecer” (Jo 1, 18). Por isso, é muito perigoso tomar citações isoladas da Escritura e dardejá-las sobre as pessoas como se esta fosse a idéia definitiva e eterna de Deus e não reflexo de uma experiência histórica de um povo.
O encontro com o Deus do Antigo Testamento pode-nos ser benéfico precisamente pela maneira como o Povo de Israel o vivenciou. Por muitas razões históricas, criamos uma catequese sobre Deus que inverteu o processo bíblico. Partíamos de uma definição de Deus, elaborada de maneira teórica e abstrata, e depois procurávamos vivê-la. Como os termos da definição permaneciam fechados à compreensão das pessoas, eles simplesmente povoaram a memória dos catequizandos sem nenhuma incidência sobre sua vida pessoal. Em seu lugar, giravam concepções populares de Deus com diferentes tonalidades.
Uma primeira abordagem do Deus do Antigo Testamento nos revela a maneira como o povo foi criando uma compreensão dele. Não veio através de ensinamentos formulados, mas a partir da experiência.
Deus é um e único. Mas não no sentido filosófico do monoteísmo nem como critério para excluir como falsas as religiões que cultuassem muitos deuses. Israel não iniciou por esse caminho sua longa viagem teológica. Antes mesmo de Moisés, Akenaton, Faraó do Egito, tentou impor uma revolução monoteísta em seu país. Fracassou pela oposição dos sacerdotes e do povo.
Israel, porém, vive o monoteísmo, não dessa maneira, pela imposição teórica de um personagem, nem por uma revelação do próprio Deus em forma de verdade dogmática a ser aceita. Foi processo lento de vida e de história. Os patriarcas ainda foram adoradores de muitos deuses. As tradições, porém, que circularam mais tarde no meio das tribos, já viam neles homens que experimentaram a um Deus de maneira mais expressiva. Abraão se tornou, por isso, símbolo de homem de fé em Deus. A vocação de Abraão tornou-se programática para todas as vocações, ao seguir o apelo do Senhor: “Sai de tua terra, de tua parentela, da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Farei de ti um grande povo e te abençoarei, engrandecendo teu nome, de modo que se torne uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Com teu nome serão abençoadas todas as famílias da terra”. A esse Deus, que vai fazendo alianças com seus descendentes, ele ergueu um altar (Gên 12, 1-3.7).
Moisés, a partir da experiência da escravidão e libertação do Egito, vinculou a fé ao Senhor, ao lado do qual não admitiu outros deuses. Para traduzir essa ligação profunda com um único Deus, o povo o experimentou como “ciumento” e qualquer infidelidade era vista como adultério. A imagem matrimonial expressava bem a originalidade e o alcance da vivência do povo em relação ao Senhor.
Não era o Senhor que era ciumento, mas o povo que o experimentava como seu Deus próprio, único e guia através da longa caminhada para Canaã. Identificaram-no com o deus supremo dos cananeus: El. Lá encontraram também outros deuses e depois se defrontaram com os deuses fenícios, assírios, babilônios. Todos eles foram rejeitados por fidelidade ao Senhor. A confissão de fé do povo no Senhor, como Deus, encontrou expressão dramática no fato narrado no livro dos Reis. O profeta Elias questionou o povo pela sua ambigüidade na vivência da fé e formulou-lhe o dilema: “Se o Senhor é o verdadeiro Deus, segui-o, mas se é Baal, segui a ele!” Depois armou o altar cheio de vítimas e desafiou os profetas de Baal a que invocassem seus deuses e ele invocaria ao Senhor. As orações dos profetas de Baal permaneceram inatendidas enquanto a oração de Elias ao Senhor baixou o fogo do céu e devorou as vítimas do sacrifício. Diante dessa maravilha, o povo exclamou: “O Senhor é Deus, o Senhor é que é Deus!” (1 Rs 18, 39). A cena da degola de todos os profetas por parte de Elias, a qual se segue a esse ato de confissão, revela o caráter patético do processo de fé do povo.
Desta sorte, por meio de longo caminho e a partir de sua experiência histórica, Israel professou o monoteísmo, primeiro de maneira prática, para depois formulá-lo doutrinariamente. Nos tardios livros do Deutero-Isaías, o povo confessa que o mesmo Senhor, que o salvou e livrou da escravidão do Egito, o Deus da Aliança, é também o Deus criador de todas as coisas. “Um Deus eterno é o Senhor, o criador dos confins da terra” (Is 40, 28).Termina-se assim esse longo processo numa confissão ampla de fé.
Ao lado da unicidade, a relação com a vida define em profundidade o Deus do Antigo Testamento: é um Deus da vida; é uma característica que atravessa todo o Antigo Testamento. Nas primeiras páginas do Gênesis, o Senhor aparece como Senhor da vida. Pela palavra, cria todas as coisas (Gên 1, 1-31) e mais diretamente em relação ao ser humano, insufla-lhe o sopro da vida (Gên 2, 7).
Na ordem da experiência, os hebreus reconhecem ao Senhor como Deus da vida por obra e graça da libertação da escravidão e da morte no Egito. Aí há duas cenas paradigmáticas da experiência de vida: o Senhor livra todos os primogênitos hebreus da espada do Anjo exterminador, Ele é um Deus de vida para os hebreus em oposição à realidade de morte dos egípcios; a outra cena é toda a epopéia do êxodo. Ela é uma contínua luta contra a morte por causa do ataque dos egípcios, da fome, da sede, das serpentes e de todas as agruras de uma longa travessia pelo deserto. Em todos os momentos críticos, o Senhor aparece como o Deus que lhes defende e conserva a vida. Para Israel, a vida traduziu-se na experiência da libertação e da conquista da terra. Foi O Senhor que libertou o povo e que lhe deu a terra em que corre leite e mel.
O povo de Israel sedentarizou-se. No início, as estruturas da sociedade organizaram-se ainda de uma maneira mais justa, pois a diferença entre ricos e pobres não era tão grande. As autoridades eram do próprio povo, permaneciam próximas e o inimigo estava fora. Assim, o Senhor se manifestou como o Deus da vida, despertando homens dotados para defenderem o povo, que se tornaram os juízes. Lendária ficou a figura de Sansão.
Com o correr do tempo, mesmo na época dos juízes e mais fortemente depois na monarquia, a injustiça social começou a crescer. A brecha entre pobres e ricos aumentou. Israelitas passaram a oprimir e escravizar israelitas. Com a decadência da monarquia, a prática da injustiça foi crescendo. O Senhor, mais uma vez, apareceu como o defensor da vida, com a forma do pobre, da viúva, do órfão. Os profetas se fizeram porta-voz da luta pela vida dos desprotegidos.
Assim, por exemplo, no reinado de Jeroboão II, imperava a injustiça. Os ricos levavam uma vida de luxo e opulência. Para tanto, carregava-se o povo com impostos, oprimiam-se os pastores e lavradores. Surgiu então o profeta Amós. Com expressões fortes, ele descreveu a situação de injustiça. “Vende-se o justo por prata e o pobre por um par de sandálias. Esmaga-se sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e torna-se torto o caminho dos humildes” (Am 2, 6-7). Sobre essa situação de injustiça pesou o juízo de Deus. As ameaças foram terríveis. A visão do profeta foi espantosa: “Vi o Senhor que estava de pé sobre o altar e ele disse: “Bate no capitel para que tremam os umbrais!” E seguiu-se uma série de malefícios: cortar a cabeça de todos sem exceção, não retirar nenhum do xeol, prender os que se esconderam em qualquer altura ou profundidade que seja, passando-os em seguida ao fio da espada (Am 9 1-4). Mas no final, abriu-se uma réstia de esperança e de vida: “o Senhor prometeu levantar a tenda de Davi que está caindo, reparar-lhe as brechas, levantar-lhe as ruínas e reconstruí-la como nos dias antigos” (Am 9, 11). Assim é o oráculo, a Palavra de vida do Senhor.
O Senhor é Deus de vida para o povo conduzido ao exílio da Babilônia. Quando tudo era treva, tudo era sofrimento, tudo era morte, a Palavra do Senhor soava como luz e futuro. Temos os cânticos utópicos e esperançosos mais lindos da Escritura. É o livro da consolação. Iniciou-se com a belíssima exclamação: “Confortai, confortai meu povo!” Terminou o tempo da provação, foi saldado o débito da culpa. E então uma voz clama: “Abri no deserto um caminho para o Senhor, nivelai na estepe uma estrada para nosso Deus! Todo vale seja entulhado e todo monte e colina sejam abaixados. O monte se torne planície e as escarpas se transformem em amplo vale! Então a glória do Senhor se manifestará, e todos os homens juntos a verão” (Is 40, 1-5). É o mesmo texto que o Novo Testamento aplica a João Batista, precursor do Senhor.
Numa imagem vigorosa, o profeta Ezequiel descreveu a libertação do povo do exílio da Babilônia como uma dantesca cena de ressurreição das ossadas. Assim diz o Senhor Deus às ossadas: “Vou infundir-vos, eu mesmo, um espírito para que revivais. Dar-vos-ei nervos, farei crescer carne e estenderei por cima a pele. Incutirei um espírito para que revivais. Então sabereis que eu sou o Senhor”. (Ez 37, 1-14). As ossadas são todas as casas de Israel. Então se assistiu à cena do levantar-se dos ossos como um exército numeroso.
E finalmente, O Senhor é Deus da vida eterna, retirando os mortos do xeol, ressuscitando-os. Este é o ponto alto da revelação veterotestamentária. A fé na ressurreição dos mortos deriva diretamente da compreensão de que o Senhor é um Deus dos vivos e não dos mortos. Deus triunfa sobre o último inimigo, a morte. O profeta Daniel anuncia um tempo de angústia, escatológico, final. Então “muitos dos que dormem na terra poeirenta, despertarão; uns para a vida eterna, outros para vergonha, para abominação eterna. Então os sábios brilharão como o firmamento resplandecente, e os que tiverem conduzido a muitos para a justiça brilharão como estrelas para sempre”(Dn 12, 2-3).
Único e verdadeiro Deus. Deus da vida. Na experiência de sua unicidade e na defesa da vida, o Senhor aparece frequentemente como um Deus vigoroso, punitivo que castiga as infidelidades do povo, que se ira e se impacienta por causa da dureza de sua cerviz (Êx 32, 9; 33, 3.5) até as raias da cólera, do desejo de exterminá-lo. Mas não se pode concluir a imagem de Deus no Antigo Testamento sem falar de sua infinita ternura.
A severidade e o poder implacável são a fotografia de um Deus no momento inicial da caminhada. Pouco a pouco, Israel foi descobrindo o lado infinitamente terno de Deus, a imagem de um Deus amor. São traços mais raros, por isso mesmo, mais expressivo. O gênio religioso de Israel afastou no início qualquer traço que pudesse mostrar um Deus fraco e manipulável pelas criaturas, tolhendo-lhe a infinita liberdade e decisão. Certos gestos de ternura, compaixão e comoção poderiam macular essa imagem. Somente depois de ela estar bem assentada, sem perigo de cobri-la, outros traços foram emergindo até expressões de imensa ternura.
No Êxodo, lê-se com surpresa que “o Senhor falava frente a frente com Moisés, como alguém que fala com seu amigo” (Êx 33, 11). Se compararmos com cenas anteriores em que Ele aparecia no meio de trovões e relâmpagos, esse breve toque revela muito de um retrato de Deus que lentamente se vai construindo. Há uma cena estranha em que o próprio Senhor passou diante de Moisés e exclamou: “O Senhor, o Senhor Deus misericordioso e benevolente, lento para a cólera, cheio de fidelidade e lealdade” (Ex 34,6). Nos profetas essa imagem atinge seu ponto alto. No Segundo Isaías, Deus anima Jerusalém, revelando em relação a ela seu amor esponsal: “Teu esposo é quem te fez: Senhor Todo-poderoso é seu nome!” (Is 54, 5). O Senhor se delicia, se alegra de Israel, como o jovem esposo de sua donzela, o noivo de sua noiva (Is 62,5).
Em Oséias, o Senhor deixa uma carta de amor a Israel. Amou-o desde quando era um menino, chamou-o de filho, permaneceu amando-o nos seus desvios, tomou-o nos braços e colou-o a seu rosto de tanto carinho, ligou-se com laços de amor, sentiu o coração palpitar-lhe e as entranhas comoverem-se. Apesar de todas as infidelidades de Israel, permanece amando-o. Termina dando a razão decisiva: Porque eu sou Deus e não homem” (Os 11, 1-9). Já está pintado o rosto do Senhor, Deus Pai, que chegará ao excesso de amor enviando o seu Filho Jesus!
Para podermos compreender um pouco melhor esta relação entre Deus e sua criação, iremos, no próximo capítulo aprofundar alguns elementos da religião de Israel, assim poderemos utilizar outros olhares para identificarmos a unicidade de Deus em toda a Escritura Sagrada, Antigo e Novo Testamento.


[1] BASTOS, Fernando, As várias faces de Deus. http://pensarporsi.zip.net/ acessado em 20/12/2010
[2] ELIADE, Mircea, História das crenças e das idéias religiosas, volume I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010; p. 66-70.
[3] Era uma deidade mesopotâmica nativa e o deus sol no panteão acádico, assírio e babiloniano.Shamash foi o deus da justiça na Babilônia e Assíria, correspondendo ao deus Utu sumeriano.
[4] O Código de Hamurabi é um dos mais antigos conjuntos de leis escritas já encontrados, e um dos exemplos mais bem preservados deste tipo de documento da antiga Mesopotâmia. Segundo os cálculos, estima-se que tenha sido elaborado pelo rei Hamurabi por volta de 1700 a.C.. Foi encontrado por uma expedição francesa em 1901 na região da antiga Mesopotâmia correspondente a cidade de Susa, atual Irã. Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
[5] ELIADE, Mircea, História; p.110-112.
[6] Epicuro de Samos foi um filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido e numerosos centros epicuristas se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma, onde Lucrécio foi seu maior divulgador.
[7] Gottfried Wilhelm von Leibniz foi um filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão.
[8] Karl Heinrich Marx foi um intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina comunista moderna, que atuou como economista, filósofo, históriador, teórico político e jornalista. O pensamento de Marx influencia várias áreas tais como: Filosofia, História, Direito, Sociologia, Literatura, Pedagogia, Ciência Política, Antropologia, Biologia, Psicologia, Economia, Teologia, Comunicação, Administração, Design, Arquitetura, Geografia e outras.
[9]  CHAUI, Marilena. “Convite à filosofia”. São Paulo: Ática, 1997; p. 309.
[10] O Maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo. A matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do Bem e do Mal.
[11] ZENGER, Erich. O Deus da Bíblia. São Paulo: Paulinas 1989.
[12] Carta do cardeal Arinze às conferências episcopais sobre o nome de Deus. CIDADE DO VATICANO, quinta-feira, 11 de setembro de 2008 (ZENIT.org ). A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos enviou uma carta às conferências episcopais do mundo sobre o nome de Deus, na qual pede que não se use o termo «Javé» nas liturgias, orações e cantos. A carta se refere ao uso do nome «YHWH», que se refere a Deus no Antigo Testamento e que em português se lê «Javé». O texto explica que este termo deve ser traduzido de acordo ao equivalente hebraico «Adonai» ou do grego «Kyrios»; e põe como exemplos traduções aceitáveis em cinco idiomas: Lord (inglês), Signore (italiano), Seigneur (francês), Herr (alemão) e Señor em espanhol. A carta está assinada pelo cardeal Francis Arinze e pelo arcebispo Albert Malcom Rajith, respectivamente prefeito e secretário da congregação vaticana, seguindo uma diretiva de Bento XVI. Após comentar que o nome de Deus exige dos tradutores um grande respeito, o cardeal explica que a palavra «YHWH» é uma expressão da infinita grandeza e majestade de Deus, que se manteve «impronunciável e por isso foi substituída na leitura das Sagradas Escrituras com o uso da palavra alternativa ‘Adonai’, que significa ‘Senhor’.
[13] Idéias obtidas em conversação com Ir. Elio Passeto, Professor responsável pelo Centro de Formação Bíblica Nuestra Señora de Sion, em Jerusalém.
[14] MESQUITA, Luiz José de, Por Que Crer? A fé e Revelação. São Paulo: Ave Maria, 1990.
[15] Ir. Elio Passeto.
[16] LIBANIO, JB, O Deus do Antigo Testamento. http://www.jblibanio.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=36 acessado em 16/12/2010.
[17] Marcião de Sínope,  85 - 160 d.C. foi um dos mais proeminentes heresiarcas durante o Cristianismo primitivo . Sua teologia (chamada marcionismo), que propunha dois deuses distintos, um no Antigo Testamento e outro no Novo Testamento, foi denunciada pelos Pais Padres da Igreja especialmente Irineu e ele foi excomungado. Sua rejeição de muitos livros que seus contemporâneos consideravam como parte das escrituras mostrou à Igreja antiga a urgência do desenvolvimento de um cânon bíblico.

CAPÍTULO II



A religião de Israel é acima de tudo a religião do Livro. Esse corpo de escrituras é constituído de textos de idade e orientação diversas, que representam tradições orais bastante antigas, mas reinterpretadas, corrigidas e redigidas durante vários séculos e em diversos meios. Ao escrever, os hebreus se interessavam mais pela história santa, isto é, pelas suas relações com Deus, que pela história que narram acontecimentos míticos e fabulosos do primórdio.
Ora, o gênio religioso de Israel transformou as relações de Deus com o povo eleito uma história sagrada de gênero até então desconhecido. A partir de certo momento, essa história sagrada, ao que parece exclusivamente nacional, revela-se um modelo exemplar para toda a humanidade.
O começo da religião de Israel é relatado nos capítulos 46-50 do Gênesis, no Êxodo e no livro dos Números. Trata-se de uma série de acontecimentos, que em sua maioria são provocados diretamente por Deus. Recordemos os mais importantes: as peripécias de Moisés (salvo miraculosamente da matança e educado na corte do faraó) depois de haver matado um soldado egípcio que moía de pancadas um de seus irmãos, especialmente sua fuga no deserto de Madiã, a aparição da sarça de fogo (seu primeiro encontro com o Senhor), a missão que lhe foi dada por Deus, de tirar seu povo do Egito e a revelação do nome divino; as dez pragas provocadas por Deus para forçar o consentimento do faraó; a partida dos israelitas e sua passagem do mar Vermelho, cujas águas submergiram os carros e os soldados egípcios que os haviam perseguido; a teofania sobre o monte Sinai, a aliança estabelecida por Deus com seu povo, acompanhada de instruções relativas ao conteúdo da revelação e ao culto; finalmente, os 40 anos de marcha sobre o deserto até a conquista da Terra de Canaã.
Há mais de um século, a critica tem-se esforçado por separar os elementos “verossímeis” e por conseguinte históricos, dessas narrativas bíblicas da massa de excrescências e sedimentações mitológicas e folclóricas.
Quanto à saída do Egito, parece certo que ela reflete um acontecimento histórico[1]. Entretanto, não se trata do êxodo do povo inteiro, mas apenas de um grupo, e exatamente do grupo conduzido por Moisés. Outros grupos já tinham iniciado a penetração mais ou menos pacífica em Canaã. Posteriormente o êxodo foi reivindicado pelo conjunto das tribos israelitas como um episódio de sua história santa. O que interessa ao nosso objetivo é que a saída do Egito foi relacionada com a celebração da Páscoa. Em outras palavras, um sacrifício arcaico, específico aos pastores nômades e praticados havia milênios pelos antepassados dos israelitas, foi revalorizado e integrado na história santa do javismo. Um ritual solidário da religiosidade cósmica (festa pastoral da primavera) foi interpretado como a comemoração de um evento histórico.


Enquanto apascentava os carneiros de Jetro, seu sogro, Moisés chegou ao monte de Deus, o Horeb. Ali ele viu uma chama de fogo que saia do meio de uma sarça e ouviu alguém chamá-lo pelo nome. Pouco tempo depois, Deus se deu a conhecer como o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, de Isaac e Jacó. (Êx 3,6) Moisés, porém, pressentiu que estava diante de um aspecto desconhecido da divindade, ou até de um novo deus. Ataca a ordem de ir ao encontro dos filhos de Israel e dize-lhes: “O Deus de vossos pais me enviou até vós; mas se eles perguntassem qual é o seu nome, que lhes havia de responder?” (Êx 3,13). Então Deus disse-lhe: “Eu sou me enviou até vós.” (Êx 13,14).
Muitas têm sido as discussões em torno desse nome. A resposta de Deus é bastante misteriosa: ele alude ao seu modo de ser, mas sem revelar sua pessoa. Tudo o que se pode dizer é que o nome divino sugere, para usarmos uma expressão moderna, a totalidade do ser e do existente. Entretanto, YHWH[2] declara que Ele é o Deus de Abraão e dos outros patriarcas, e essa identidade é aceita ainda hoje por todos aqueles que reivindicam a herança abraâmica. De fato, pode-se descobrir certa continuidade entre o deus do pai e o deus que se revela a Moisés. Tal como o deus do pai, o Senhor não esta ligado a um sítio especifico; de mais a mais, existe uma relação particular com Moisés na qualidade de chefe de um grupo.
As diferenças, porém, são significativas. Enquanto o deus dos pais era anônimo, o Senhor era um nome próprio que punha em evidencia seu mistério e sua transcendência. As relações entre a divindade e seus fiéis são alternadas: já não se fala do “deus do pai”, mas do “povo do Senhor”. A idéia da eleição divina, presente nas promessas feitas a Abraão (Gênese, 12,1-3), tornava-se precisa: O Senhor chama aos descendentes dos patriarcas “meu povo”; eles são, segundo a expressão de R. de Vaux[3], sua propriedade pessoal. Ao prosseguir o processo de assimilação do deus do pai a El, o Senhor também foi identificado com ele. Tomou emprestada a El a estrutura cósmica e adquiriu seu título de rei. “Da religião de El, o javismo tirou também a idéia da corte divina, formada pelos benê’ élohim”. Por outro lado, o caráter guerreiro do Senhor prolonga o papel do deus do pai, antes de qualquer coisa protetor dos seus fiéis.
O essencial da revelação está concentrado no decálogo (Êx 20,3-17; cf. Êx 34,10-27). Em sua forma atual, o texto não pode datar da época de Moisés, mas os mais importantes mandamentos refletem com toda certeza o espírito do javismo primitivo. O primeiro artigo do decálogo, “Não terás outros deuses diante de mim!”, demonstra que não se trata de monoteísmo no sentido estrito do termo. A existência de outros deuses não é negada. No canto de vitoria entoado depois da passagem do mar, Moisés exclama: “Quem é igual a ti, ó Senhor, entre os deuses?” (15,11). Pede-se, porém, a fidelidade absoluta, pois o Senhor é um “Deus Zeloso cioso” (20,5). A luta contra os falsos deuses começa imediatamente depois da saída do deserto, em Baal Peor. Foi ali que as filhas dos moabitas convidaram os israelitas a participar dos sacrifícios aos seus deuses. “O povo comeu e prostrou-se diante de seus deuses” (Núm 25,2s), provocando a ira do Senhor. Para Israel, essa luta, iniciada em Baal Peor, perdura.
O sentido do segundo mandamento, “Não farás para ti imagem”, não é de fácil compreensão. Não se trata de uma proibição ao culto dos ídolos. Sabia-se que as imagens, familiares aos cultos dos pagãos, não passavam de um receptáculo da divindade. Provavelmente, a idéia subjacente neste mandamento implicava a proibição de representar o Senhor por um objeto cultual. Assim como não tinha nome, o Senhor não devia ter imagem. Deus consentia ser visto, diretamente, por alguns privilegiados; pelos outros homens, por seus atos. Ao contrário das outras divindades do Oriente Próximo, que se manifestavam ao mesmo tempo sob forma humana e animal ou cósmicas, pois o mundo inteiro é sua Criação.
O antropomorfismo do Senhor possui um duplo aspecto. Por um lado, apresenta qualidades e defeitos especificamente humanos: compaixão, ódio, alegria, pesar, perdão e vingança. (Entretanto, não demonstra as fraquezas e os defeitos dos deuses homéricos, e não aceita ser ridicularizado, como certos deuses do Olimpo.) por outro lado, o Senhor não reflete, como a maioria das divindades, a situação humana: não tem uma família, mas tão somente uma corte celeste. O Senhor é Um e Único. Devemos ver outro traço antropomórfico no fato de ele solicitar aos fiéis uma obediência absoluta, como um déspota oriental? Trata-se mais de um desejo inumano de perfeição e de pureza absoluta.
Da mesma forma, a violência do Senhor provoca um rompimento nos quadros antropomórficos. Sua raiva revela-se às vezes de tal maneira irracional que se pôde falar do “demonismo”[4] do Senhor. Sem dúvida alguns desses traços negativos serão endurecidos mais tarde, após a ocupação de Canaã. Mas os traços negativos pertencem à estrutura original do Senhor. De fato, trata-se de uma expressão, e a mais impressionante, da deidade como absolutamente distinta de sua Criação, como o outro por excelência (o ganz andere[5] de Rudolph Otto). A coexistência dos atributos contraditórios e a irracionalidade de alguns de seus atos distinguem o Senhor de todo ideal de perfeição na escala humana.


Os salmos de entronização exaltam o Senhor como rei. Ele é um rei grande sobre todos os deuses, (95,3) o Senhor é rei, os povos estremecem! O rei que ama a justiça és tu; tu estabeleceste as normas da probidade, da justiça e do direito, (99,1-5). Deus é senhor do mundo porque foi seu criador. O Senhor dispensa o bem e o mal, tira e dá a vida, abate e eleva (I Samuel 2,6s). Sua cólera é temível, mas ele é também compassivo e por excelência Santo, o que significa que é ao mesmo tempo inacessível e distinto, e que traz a salvação.
Criador e rei do mundo, o Senhor é também o juiz da sua Criação, “No momento que eu tiver decidido, eu próprio vou julgar com retidão”. (Salmo 75,3). Ele julga com equidade (Salmo 96,10). Sua justiça, a um só tempo moral, cósmica e social, constitui a norma fundamental do Universo.
O Senhor é um Deus vivo; ele se distingue dos ídolos que não falam e que devem ser carregados, porque não podem caminhar. O homem é também um ser vivo, uma vez que Deus lhe insuflou o sopro ou espírito; mas a sua existência é de curta duração. O homem foi tirado do pó e ao pó retornará (Gên 3,19). Uma vida longa é o seu maior bem. A morte é degradante, ela reduz o homem a uma pós-existência larvar no túmulo ou no sheol. O Senhor não reina sobre o sheol, já que a morte é a negação de sua obra. Por conseguinte, o morto está privado de relacionar-se com Deus, o que constitui para o fiel, a mais terrível das provações. Nesta afirmação, acredito que se encontra a explicação para tantas passagens bíblicas na qual vemos a ação de Deus tirando a vida de muitos, como no caso da morte dos primogênitos no Egito ou mesmo da morte dos soldados do Faraó. Podemos compreender assim, que aqueles que estão mortos são os que não acreditam em Deus, não tem um relacionamento com ele e, não que Deus tenha realmente tirado suas vidas. O Senhor é mais poderoso que a morte, se deseja, pode tirar o homem de sua sepultura. Alguns salmos aludem a esse prodígio: “Do sheol tiraste a minha alma; tu me reavivastes dentre os que baixam à cova” (30,4); “Jamais morrerei, eu vou viver;... O Senhor me castigou e castigou, mas não me entregou a morte” (118,17). Ao reconhecer O Senhor como Criador e soberano absoluto, o homem chega a conhecer certos predicados de Deus. Uma vez que a Torah proclama com precisão a vontade divina, o essencial é seguir os mandamentos, isto é, comportar-se de acordo com o direito ou a justiça. O ideal religioso do homem é ser justo, conhecer e respeitar a lei, a ordem divina. Como lembra o profeta Miquéias (6,8) “Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom, e o que O Senhor exige de ti: nada mais do que praticar o direito, gostar do amor e caminhar humildemente com o teu Deus.” O pecado leva à perda da benção. Mas, como o pecado faz parte da condição humana, e porque o Senhor, apesar de duro, é misericordioso, a punição nunca é definitiva, ela tem uma função pedagógica.    




Israel foi a esposa do Senhor, mas ela lhe foi infiel, e se “prostituiu”, em outras palavras, entregou-se aos deuses cananeus da fertilidade. “Ela disse: Quero correr atrás de meus amantes, daqueles que me dão o meu pão e a minha água, a minha lã e o meu linho, o meu óleo e a minha bebida. Mas ela não reconheceu que era eu quem lhe dava o trigo, o mosto e o óleo, quem lhe multiplicava a prata e o ouro que eles usavam para Baal” (Os 2,7-10).
Israel esqueceu-se de sua história: “Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei meu filho. Mas quanto mais eu os chamava, tanto mais eles se afastavam de mim” (Os 11,1-2). A ira provocada pela incorrigível ingratidão explode. O castigo será terrível: “E eu me tornei para eles como um leão, como uma pantera no caminho eu estava à espreita. Eu os ataco como uma ursa despojada de seus filhotes rasgo-lhes o peito e aí os devoro como uma leoa, os animais do campo os despedaçarão” (Os 13,7-9). A única salvação é um retorno sincero ao Senhor. “Volta, Israel, ao Senhor, teu Deus, pois tropeçaste em tua falta. Tomai convosco palavras e voltai ao Senhor; dizei-lhe: Perdoa toda culpa aceita o que é bom...” (Os 14,2-3). Oséias esta consciente de que a decadência dos pecadores não lhes permite voltar para o seu Deus, (Os 5,4). No entanto, o amor do Senhor é mais forte que sua ira. “Não executarei o ardor de minha ira... porque eu sou um Deus e não um homem, eu sou Santo no meio de ti, não retornarei com furor” (Os 11,9). Ele quer conduzir Israel ao deserto e falar ao seu coração... Lá ela responderá como nos dias de juventude, como na época em que saiu da terra do Egito. E, naquele dia, me chamará ‘Meu marido’... Eu te desposarei a mim para sempre, eu te desposarei a mim na justiça e no direito, no amor e na ternura. (Os 2,16-21). Será um retorno aos primeiros tempos do casamento místico do Senhor e Israel. Esse amor conjugal já anuncia a crença na redenção: a graça de Deus não espera a conversão do homem, mas a antecede. Convém acrescentar que o simbolismo conjugal será utilizado por todos os grandes profetas posteriores a Oséias.  
O que mais surpreende nos profetas, é a critica que fazem ao culto e a ferocidade com que atacam o sincretismo, ou seja, as influências cananeias, a que dão o nome de ‘prostituição’. Mas essa prostituição, contra a qual investem sem descontinuar, representa uma das mais difundidas formas da religiosidade cósmica. Específica aos agricultores, a religiosidade cósmica prolongava a mais elementar dialética do sagrado, especialmente a crença em que o divino se encarna, ou se manifesta, nos objetos e nos ritmos cósmicos. Ora, tal crença foi denunciada pelos fiéis do Senhor como idolatria por excelência, e isso desde a penetração na terra de Canaã. Mas nunca a religiosidade cósmica foi tão selvagemmente atacada. Os profetas acabaram conseguindo esvaziar a Natureza de toda a presença divina. Setores internos do mundo animal, os lugares altos, as pedras, as fontes, as arvores, certas colheitas, serão denunciados como ‘impuros’, visto que maculados pelo culto das divindades cananeias da fertilidade. A religião pura e santa é apenas o deserto, pois foi lá que Israel permaneceu fiel ao seu Deus.
A dessacralização da Natureza, a desvalorização da atividade cultual, em síntese, a rejeição violenta e total da religiosidade cósmica, e, sobretudo a importância decisiva atribuída à regeneração espiritual do individuo pelo retorno definitivo ao Senhor, eram a resposta dos profetas às crises históricas que ameaçavam a própria existência dos dois reinos judeus. A alegria de viver solidária de toda religião cósmica, era ilusória, condenada a desaparecer na iminente catástrofe nacional. Com efeito, a religião cósmica encorajava a ilusão de que a vida não se interrompe, e de que a nação e o Estado podem sobreviver, por muito grave que sejam as crises históricas. Contudo os profetas anunciavam não só a ruína do país e o desaparecimento do Estado; proclamavam ainda o risco do aniquilamento total da nação.  
A realização das pregações pronunciadas pelos profetas confirmava-lhes a mensagem,e, de maneira precisa, que os acontecimentos históricos eram obra do Senhor. Em outras palavras, os acontecimentos históricos adquiriram uma significação religiosa, transformavam-se em ‘teofanias’ negativas, em ‘ira do Senhor’. Dessa maneira, eles revelavam a sua coerência interna, manifestando-se como a expressão concreta de uma só, única, vontade divina.
Assim, os profetas pré-exílicos, pela primeira vez valorizavam a história. Os acontecimentos históricos possuem desse momento em diante, um valor em si mesmo, na medida em que são determinados pela vontade de Deus. Os fatos históricos tornam-se, assim, situações do homem em face de Deus, e como tais adquirem um valor religioso que nada podia assegurar-lhes. Por isso, há verdade em afirmar que os judeus foram os primeiros a descobrir a significação da história como epifania de Deus; é o povo através do qual Deus se revelou e que revelou Deus ao mundo. O cristianismo[6], com sua base judaica e por ser essencialmente missionário, visibilizou Deus em dimensão universal. Observemos, contudo, que a descoberta da história enquanto teofania não será imediatamente e totalmente aceita pelo povo judeu, e que as antigas concepções persistirão ainda por muito tempo.


[1] ELIADE, Mircea, História; p. 175.
[2] O Tetragrama sagrado «YHWH» é uma expressão da infinita grandeza e majestade de Deus, que se manteve impronunciável e por isso foi substituída na leitura das Sagradas Escrituras com o uso da palavra alternativa ‘Adonai’, que significa ‘Senhor’, sendo assim, todas as vezes que aparecer o tetragrama no nosso texto, será substituído por: “o Senhor”.
[3] Roland Guérin de Vaux, Dominicano, que conduziu a equipe que trabalhou inicialmente no Mar Morto. Ele era o diretor da Escola Bíblica, fez escavações de Qumran. Sua equipe escavou o sítio antigo de Khirbet Qumran (1951-1956), bem como diversas cavernas perto de Qumran, a noroeste do Mar Morto. 
[4] ELIADE, Mircea, História; p.178.
[5] “Ganz andere” é uma expressão inspirada pelas idéias do teólogo protestante Rudolf Otto (1869-1937) e que aparece na introdução do clássico “O Sagrado e o profano: a essência das religiões” de autoria de Mircea Eliade. O sentido da expressão aponta para aquilo que é grandioso e “totalmente diferente”. Em relação ao “Ganz andere”, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de não ser nada mais do que uma criatura, segundo os termos com que Abraão teria se dirigido ao Senhor – de não ser senão cinza e pó (Gen: 18:27). “Ganz andere” se identifica com aquilo que o homem religioso interpreta como a materialização extrema do sagrado. Uma experiência possível de ser experimentada ao se observar durante a noite a imaginária esfera celeste com seus infinitos pontos luminoso.
[6] ELIADE, Mircea, Mito do eterno retorno. Sobre a salvação do tempo, sua valorização no âmbito da história santa israelita.

CAPÍTULO III


Nascido na Galiléia há mais de dois mil anos, Jesus de Nazaré foi, sem margem para dúvidas, um judeu. As escrituras cristãs confirmam a cada passo que Cristo – Yeshua ben Yosef, de seu nome hebraico – seguiu à risca as tradições e mandamentos do judaísmo ortodoxo. Mesmo assim, durante séculos, cristãos e judeus recusaram reconhecer as raízes judaicas do pregador da Galiléia, a quem chamaram rabinas, e que acabaria por tornar-se uma das mais influentes e emblemáticas figuras da História humana.[1]
Abandonado, e mesmo combatido, pela Igreja Cristã (tanto católica como protestante) durante séculos, o judaísmo de Jesus, e o seu enquadramento contextual, só começou a ser explorado recentemente.
Esta corrente, nascida na reta final do século XIX, assumiu novas proporções nos finais do século XX, quando a busca do “Jesus Histórico” e das raízes hebraicas de Cristo começou a fascinar teólogos e históriadores cristãos e judeus. Separados já do repetitivo anti-semitismo que levara os cristãos durante séculos a negarem o judaísmo de Jesus, estes redescobriam agora o Messias cristão no seu contexto histórico, étnico e religioso.
O judaísmo de Jesus foi, até 1900, praticamente posto de parte também pelos pensadores judeus, em grande medida como reação às perseguições que o cristianismo principiara contra os hebreus. Recorde-se que até ao Concílio Vaticano II, em 1965, a própria Igreja Católica acusava os judeus de terem morto Cristo – uma acusação que não só negava a verdade histórica, desculpabilizando o papel do governador romano Pôncio Pilatos enquanto executor máximos da pena (ver Who is Responsible for Jesus’ Execution), como também escondia o fato de Jesus ser, ele próprio, um judeu. Esse era um fato histórico inescapável, mas mesmo assim rodeado de uma polêmica apenas explicável por um anti-semitismo latente.
Muitos cristãos continuavam a recusar aceitar o fato de que Jesus era judeu, afirmando a pés juntos que ele era ‘cristão’. Mas um cristão, por definição, é um seguidor de Cristo. Se assim fosse, Jesus seria um seguidor de si próprio.
Contando com as poucas referências talmúdicas, as fontes históricas judaicas sobre Jesus restringem-se a breves passagens de fragmentos deixados por históriadores hebreus, o mais famoso dos quais o Testimonium Flavianum, escrito por Flavius Josephus, que viveu entre o ano 37 e 100 da era comum.
Agora, passados séculos após a morte de Jesus, aos poucos, rabinos e pensadores humanistas judeus começaram a reclamar Jesus enquanto figura histórica intimamente ligada ao judaísmo.
Na verdade, os relatos das escrituras cristãs apontam para o fato de Jesus ter cumprido a risca todos os preceitos da religião judaica. Contam que Jesus foi circuncidado oito dias após ter nascido (Lucas, 2:21), segundo regem as leis judaicas; ainda bebê foi apresentado no Templo em Jerusalém (Lucas, 2:22), de acordo com o que mandava a tradição, e foi educado na Lei de Moisés (Lucas 2, 39 a 42). Aos 12 anos no Templo “ouvia e interrogava” os rabinos (Lucas 2:46). Mais tarde, os evangelistas relatam que Jesus celebrava os festivais judaicos (Páscoa, Tabernáculos e Hanuká) além de guardar todos os sábados como dias santos.
Qualquer estudo sobre Jesus, empreendido no quadro geral da especialidade do Novo Testamento, mais cedo ou mais tarde é obrigado a se confrontar com as atitudes de Jesus quanto à “Lei”. Jesus observava ou não a Torah de Moisés?
A Lei de Moisés não se restringe a detalhes ritualísticos, mas abrange toda a esfera da vida judaica. Determina regras para a agricultura, comércio e posse de propriedades imóveis e móveis. Ocupa-se do casamento e suas implicações financeiras; de compensações por danos materiais sofridos por uma pessoa ou do prejuízo físico infligido por homens ou por animais que a eles pertencem. A Torah legisla sobre roubo, violação, homicídio e muitas outras matérias civis ou criminais para as quais juízes e tribunais tinham competência. Resumindo, um roteiro de uma vida civilizada constitui grande parte das leis mosaicas. Jesus rejeitava estas Leis? Os Evangelhos Sinóticos, nossa principal testemunha, não oferecem apoio para esta teoria. Mais ainda, já que não está expresso nem sugerido nos Evangelhos que Jesus deixou de pagar suas dívidas, feriu seus oponentes ou cometeu adultério, é razoável concluir que ele aceitava, respeitava e observava as leis e costumes que regulavam a existência privada e pública vigentes entre seus compatriotas à sua época.[2]
A legislação do Shabat pertence basicamente ao mesmo domínio cúltico embora não esteja diretamente relacionada ao Templo de Jerusalém. Mesmo assim, representa uma categoria inteiramente diferente já que, de acordo com a Bíblia e com a lei pós-bíblica, os infratores do Shabat, melhor dizendo, alguns deles, podiam incorrer em pena de morte.[3]
Como Jesus distinguia entre o lícito e o ilícito no sétimo dia, podemos observar que, não existe nenhum registro de que ele tenha sido denunciado às autoridades encarregadas da lei criminal judaica por mau comportamento público a este respeito. Ele nem é criticado abertamente por operar curas no Shabat. O comentário mais próximo relatado a este respeito é uma censura endereçada pelo dirigente de uma sinagoga da Galiléia aos seus congregados que pediam para ser curados no Shabat de preferência a qualquer outro dia da semana (Lc 13,14).
Mais positivamente, a representação geral de Jesus que surge dos Evangelhos Sinóticos é a de um judeu que observa as principais práticas religiosas de sua nação.
De inicio, Jesus é regularmente associado com sinagogas, centros de culto e de ensino. Encontramos referencias gerais à sua presença nestes centros da Galiléia, por vezes especificamente no Shabat. Duas destas sinagogas, uma em Cafarnaum (Mc 1,21; Lc 4,31) e a outra em Nazaré (Lc 4,15), são especialmente designadas. Ao que parece, ele era uma figura familiar nesses círculos, como mestre e pregador de grande originalidade muito solicito, bem como operador de curas, carismático e exorcista altamente admirado (Mc 1,39; Mt 4,23; Lc 4,44, ect.).
Jesus aparece em todos os três Evangelhos como um homem que, em obediência à lei bíblica, vinha a Jerusalém no Pessah, um dos festivais de peregrinação obrigatória. Visitava o santuário, onde a atmosfera profana que reinava na área dos mercadores o incitou a uma intervenção violenta que pode ter contribuído substancialmente para decidir seu destino. Entretanto, quando se acalmou, é relatado que ensinava todos os dias no pátio do Templo, aparentemente sem ser molestado, embora provavelmente vigiado pelas autoridades (Mc 11,15; 14,49; Mt 21,12; 26,55; Lc 19,45; 22,53, etc.).
Além de freqüentar sinagogas e ser um peregrino do Templo, Jesus é retratado como observante de mandamentos particulares de importância ritual. O principal entre eles é guardar, ou, falando mais corretamente, comer o Pessah (Mc 14,12-16; Mt 26,17-19; Lc 22,7-15). O Pessah era uma celebração familiar, embora à época do Segundo Templo estivesse também ligado ao santuário onde era sacrificado o cordeiro de Pessah.


A idéia de um soberano celestial era fundamental para os judeus na idade bíblica, intertestamentária e rabínica.
Este também era o conceito do Deus/Pai. Os dois títulos estão vinculados na prece litúrgica Avinu, malkenu (Nosso Pai, nosso Rei), cuja origem é atribuída pela tradição talmúdica (bTaan 25ª) à invocação de Rabi Akiba (135 d.C.) diante da arca da sinagoga, o que fez terminar uma severa estiagem:
            Nosso Pai, nosso Rei, pecamos diante de Ti.
            Nosso Pai, nosso Rei, não temos outro Rei além de Ti.
            Nosso Pai, nosso Rei, tem misericórdia de nós.
Enquanto em pronunciamentos públicos e em preces, o divino epíteto “Rei” pareça predominar na antiga literatura judaica, como foi enfatizado, está surpreendentemente ausente de pronunciamentos atribuídos a Jesus. Em contraste, os Evangelhos Sinóticos o representam como se dirigindo a Deus, ou falando dele, como “Pai” em cerca de sessenta ocasiões e, ao menos uma vez, proferindo o título aramaico Abba. Não é passível de discussão que esta idéia seja essencial para uma percepção precisa da religião de Jesus e, como de modo geral, não é necessário dizer que para perceber sua mensagem de forma dinâmica, a evidencia do Evangelho deverá ser considerada em perspectiva.
O conceito de Deus como Pai de Jesus, de seus seguidores e de todo o mundo criado está profundamente implantado nos Evangelhos. Ao considerar a Deidade como um Pai atento, Jesus tenciona passar a seus discípulos a atitude apropriada para com Deus, e já que a noção de Pai e de filho são correlatas, ele propõe um modelo para o comportamento dos “Irmãos e irmãs”.
Comparada a freqüência do tema do Reino divino, a imagem do Pai é relativamente rara no gênero literário das parábolas, aparecendo apenas nas parábolas dos Dois filhos e na do Filho pródigo.
Na primeira, MT 21,28-32, comparado ao papel desempenhado pelos filhos, o pai é o personagem menos importante, limitando-se a dar ordens. Por outro lado, o principal traço paterno é o perdão não formulado ao filho rebelde quando este se arrepende. Na segunda, a Parábola do Filho Pródigo, Lc 15,11-32, o pai reconhece intuitivamente o arrependimento do filho antes que seja expresso, corre ao seu encontro, abraça-o e proclama publicamente seu regozijo por aquele que estava perdido e morto, mas que agora foi encontrado e está vivo.
O imaginário restrito do conceito de Deus que sublinha estas parábolas reflete amor e paciência para com um filho verdadeiramente arrependido e corresponde ao profundo anseio espiritual dos publicanos e dos pecadores, clientes preferidos de Jesus.
Em linha com o ensinamento das parábolas, um dos traços salientes da pregação de Jesus é o pronto perdão a seus filhos transviados.
Começando com uma rara máxima de Marcos 11,25, uma entre apenas as três ocorrências neste Evangelho onde Deus é chamado de Pai, a versão mais breve, que aparece em alguns dos códices mais antigos (Sinaítico e Vaticano), assim se apresenta:
  • E quando estiveres rezando, perdoa o que tiveres contra alguém, para que teu pai que está no céu possa perdoar tuas faltas (11,25).[4]
O texto mais longo, que se segue a 11,26, inclui também uma formulação negativa calcada em Mt 6, 14s., ela mesma acrescentada, como uma reflexão tardia, ao versículo relevante (Mt 6,12) do Pai Nosso.
  • Se perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai celeste também perdoará as tuas; mas se não perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai celeste também não perdoará as tuas.[5]
De qualquer forma, subsiste pouca dúvida de que a noção do perdão é um dos ingredientes centrais da imagem do Pai em Jesus.
Outra característica do Pai celestial é sua solicitude paternal, doutrina central do material “Q” e reforçada por outras instancias peculiares a Mateus. Mais uma vez, a costumeira falta de apreciação de Lucas quanto aos pontos mais finos da mentalidade judaica de Jesus revela-se por várias vezes em sua substituição de “Pai” por “Deus”.
Na maioria dos exemplos, esta benevolente paternidade divina vincula-se ao ambiente Judaico de Jesus e faz ecoar a perspectiva religiosa particular de sua época; assim, a preocupação por elementos essenciais tais como alimento, bebida e roupas é vista como a marca distintiva dos gentios (Mt 6,32).
O ensinamento de Jesus a respeito de Deus, o Pai, reflete as idéias religiosas do judaísmo bíblico, e particularmente as idéias de sua própria época.
A imagem de Pai divino na Bíblia atestada na escritura é manifeta numa variedade de nomes teofóricos que contém o elemento Ab (Pai). Empregam tanto os títulos divinos do hebraico, YH(W) e EL e resultam em AbiYAH ou Abbi YAHU (Yah ou Yahu significam meu Pai), ou YoAB (Yo é o Pai). Do mesmo modo temos Abbi El e ELIab (Deus é o Pai) em nomes judaicos da era pré-exilica e do Segundo Templo. Abram e ABIram (Pai excelso e Meu Pai é exaltado), que podem ser rastreados à idade patriarcal, representam o mesmo tipo. Enquanto as nuances exatas do termo “Pai” permanecem vagas, não pode haver dúvida de que mesmo em nível individual o relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de família.[6]
Essa antiga atitude subjacente é explicitamente expressa, principalmente em termos coletivos que se aplicam a membros da nação judaica. Descrevem Deus como seu Pai e Deus faz alusão a eles como seus filhos. A mais antiga atestação é a célebre passagem de Ex 4,22 onde, segundo a tradição “J”, Moisés se dirige ao Faraó: 
  • Assim disse o Senhor, “Israel é meu filho, meu primogênito”.
Em Dt 32,6, o Cântico de Moisés formula a seguinte pergunta:
  • Não é ele teu Pai que te criou, te fez e te estabeleceu?
Em outros exemplos do Deuteronômio, Moisés ora diz aos judeus, “Vós sois os filhos do Senhor vosso Deus” (14,1), ora transmite a mesma mensagem por meio de uma comparação:
  • Sabei pois, em vosso coração, que assim como o homem disciplina seu filho o Senhor vosso Deus vos impõe sua disciplina (8,5).
O mesmo tipo de imagem é usado em Sl 103,13, em relação aos devotos:
  • Assim como o pai tem devoção de seus filhos, do mesmo modo o Senhor tem devoção daqueles que o temem.
Na literatura profética, Deus é representado proclamando o vínculo Pai-filho entre ele mesmo e Israel:
  • Gerei e criei filhos, mas eles se revoltaram contra mim (Is 1,2).
  • E onde lhes foi dito: “Não sois meu povo” lhes será dito: “Filhos do Deus vivo” (Os 2,1).
  • Pois sou um pai para Israel e Efraim é meu primogênito (Jr 31,9).
Nos salmos, Deus proclama o rei seu filho no momento de sua entronização, declaração dotada de significado messiânico depois do desaparecimento da soberania política:
  • Tu és meu filho, hoje eu te gerei (Sl 2,7).
Entretanto, enquanto a metáfora parece familiar, a referência comunitária a Deus, em forma de prece, como “nosso Pai” ocorre relativamente tarde, em passagens da literatura pós-exílica:
  • Pois tu és nosso Pai, já que Abraão não nos conhece e Israel não nos reconhece, Tu, ó Senhor és nosso Pai, Nosso Redentor, este é teu nome desde a antiguidade. (Is 63,16).
O paralelismo entre Deus e Abraão é do maior significado e a associação de Pai e Redentor também é reveladora.
  • Ó Senhor, tu és nosso Pai; somos a argila e tu és nosso oleiro, somos o trabalho de tuas mãos (Is 64,7).
Como mostra o contexto, “Pai” e “Oleiro” são intercambiáveis. Ao mesmo tempo, não é ao poder supremo do Criador mas ao amor e à compaixão do “Pai” que o suplicante apela.
Ainda num sentido coletivo, mas reduzido do nível nacional ao sacerdotal, o profeta Malaquias escreve:
  • Um filho honra seu pai e um servo seu senhor. Se sou um Pai, onde está minha honra? E se sou um Senhor, onde está meu temor? – diz o Senhor dos exércitos a vós, ó sacerdotes (1,6).
  • Não temos todos um Pai? Não foi um único Deus que nos criou (2,10)?
A compreensão de Deus como Pai celeste, típica da pregação de Jesus, se enquadra no desenvolvimento do pensamento religioso judaico num esboço esquemático, que vai desde a Bíblia até os rabis, a idéia do Pai divino se desloca para o nível coletivo a partir do Criador/Gerador do povo judeu (dentro da humanidade) em direção ao Protetor amante e afetuoso do membro individual da família. À época dos sábios tanaíticos, até o século III d.C., o Pai celeste é o Deus providencial, distinto do Deus Rei-Juiz-Soberano, e a imagem paternal é nitidamente muito familiar no meio hassídico-carismático.[7]
A representação de um Pai amante e solícito não se ajusta à experiência humana de um mundo duro, injusto e cruel. Naquela época como agora, os filhotes implumes ainda caem do ninho, os pequeninos morrem e, como o próprio Jesus logo iria experimentar, os inocentes sofrem[8]. Mas o que se encontra no interior de sua intuição é a convicção de que o eterno, distante, dominador e terrível Criador é também primariamente um Deus próximo e que pode ser alcançado.
Como vimos até agora, Jesus era judeu. Sua religião, o Judaísmo. No meio do seu povo, dentro de sua cultura religiosa, Jesus de Nazaré anunciou a Boa Notícia (Boa-Nova = do grego, Evangelho) de que “o Reino de Deus está próximo” (Mc 1, 15), tão próximo que se podem constatar os seus sinais visíveis e palpáveis no meio do povo.
Dentro dessa perspectiva da irrupção do Reino de Deus na história, a imagem de um Deus próximo (que se pode encontrar no cotidiano da vida e na intimidade de um lar, no qual se pode confiar como a um pai e ou a uma mãe) está em perfeita sintonia com toda a pregação da Boa-Nova.


O Deus dos cristãos, fundamentalmente, é o Deus de Jesus de Nazaré, o Cristo. De fato, a experiência cristã de Deus se dá na dinâmica da vida, na caminhada do seguimento de Jesus. Na concepção cristã atual, podemos levantar quatro elementos cujas características são, ao mesmo tempo, continuação e ruptura do que está contemplado nas etapas pré-cristãs da descoberta de Deus[9].
  1. Deus, o Absoluto, é Amor
  2. Somos colaboradores do Plano de Deus
  3. O Plano de Deus é universal
  4. A adesão ao Plano de Deus é fruto da liberdade humana

1. Esse absoluto é percebido, descoberto em nosso mundo histórico.
Por sua encarnação, Deus se uniu a todo ser humano: trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano (GS “Constituição Pastoral Gaudium et Spes”, nº. 22). Por isso “o Verbo de Deus, por Quem todas as coisas foram feitas e que se encarnou e habitou na terra dos humanos, entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a em Si mesmo e em Si recapitulando todas as coisas. Ele nos revela que Deus é amor” (1Jo 4, 8).
2. Nessa colaboração, participamos de um grande desígnio histórico. “A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas” (GS 11).
3. O Plano é tão universal como o próprio Deus. “A Igreja, ‘assembléia visível e comunidade espiritual’, caminha juntamente com a humanidade inteira. Experimenta com o mundo a mesma sorte terrena; é como que o fermento e a alma da sociedade...” (GS 40).
4. A liberdade do ser humano não consiste, pois, em estar à prova diante de uma lei, mas que se converta verdadeiramente em seres humanos novos e criadores de uma nova humanidade, com o auxílio necessário da graça divina” (GS 30).
Permanecerão o amor e sua obra... Depois que propagarmos na terra, no Espírito do Senhor e por Sua ordem, os valores da dignidade humana da comunidade fraterna e da liberdade, todos estes bons frutos da natureza e do nosso trabalho, nós os encontraremos novamente.... quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal (GS 39).
“Deus é amor: quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele”(1 Jo 4,16). Essas palavras, diz Bento XVI na sua encíclica “Deus é Amor”(DEA), exprimem, com clareza, o centro da fé cristã, isto é a imagem  cristã de  Deus e, conseqüentemente, a imagem do homem e do seu caminho. E o papa continua citando o mesmo versículo joanino, que diz : “Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem”(DEA,1).
De fato, Deus nos amou primeiro. Cremos que Deus nos ama. Antes de ensinar que devemos amar a Deus, a Bíblia nos revela que Deus nos ama e nos amou primeiro. João Paulo II, na “Familiaris Consortio”, diz que toda a Bíblia não é senão a história de como Deus ama seu povo. Por que Deus nos amou e nos ama assim? Como viver e experimentar este amor em nossa vida? Como deixar-nos amar e, na missão, como proclamar a cada pessoa e à humanidade que Deus nos ama? Pois, como diz Bento XVI, esta verdade é o centro da fé cristã!
O Deus dos cristãos também é o Logos, como anuncia o início do Evangelho de João. Esse Logos joanino é o princípio de todas as coisas criadas e existe desde sempre. Por Ele tudo foi feito e nele toda criação recebe inteligibilidade.
Manifesta-se assim também que o Deus dos cristãos é o mesmo Deus de Israel, que é o Criador de todas as coisas, no qual todas as coisas têm sua verdade, seu sentido e recebem sua inteligibilidade.
O Deus dos cristãos é realmente o Ser – em - si, fundamento de tudo o que existe, mas, já na história de Israel, Ele se revela também como totalmente um Ser - para... Um Ser relação. Pois, Ele se mostra como um Deus para os homens, um Deus que se aproxima dos seres humanos, entra na história humana e age nessa história, escolhe para si um povo, o povo hebreu, liberta este povo da escravidão do Egito, ama e defende esse povo e o conduz à terra que Ele um dia havia prometido a Abraão, Isaac e Jacó, patriarcas desse povo eleito. Esse povo, que Ele elegeu para si, Ele o amou com amor esponsal, como podemos ler no livro do Cântico dos Cânticos e em textos dos profetas, especialmente Oséias e Ezequiel. É um Deus que tem uma relação de aliança, zelo e ciúme por seu povo e faz tudo para não perdê-lo.
Esse é também o Deus de Jesus Cristo, o Deus dos cristãos, que é Ser- em- si e Ser- para..., que se aproxima do ser humano e o ama. Em Jesus Cristo vai revelar-se que Deus é acima de tudo Amor, primeiramente em si mesmo e depois também na sua relação com a criação, especialmente com a humanidade.
Este mesmo amor se manifesta, quando Deus decide criar o mundo, em especial o ser humano. Deus cria por amor e desde o princípio mantém essa relação com suas criaturas, especialmente com a humanidade, um amor indestrutível e fiel. Este amor chega à sua manifestação maior em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem e entregue a morte de cruz para a salvação da humanidade. “Deus tanto amou o mundo, que entregou seu próprio Filho”.
Mas “o que é o amor?” se pergunta Bento XVI na sua encíclica “Deus é Amor”. Para responder a essa pergunta o papa começa a partir do que já os gregos entendiam sobre o amor. De fato, os gregos distinguem três tipos de amor: 1o. o “eros”, que é o amor sobretudo conjugal, instintivo e possessivo;  2o. o “ágape”, que é o amor de doação, o amor oblativo; e 3o. a “filia”, que é o amor de amizade. Qual deles se aplica a Deus, quando se diz que Ele é amor?
À primeira vista, parece que deveríamos excluir do amor, que é Deus, o “eros”. “Eros” é paixão avassaladora e possessiva, força irracional e inebriante, diziam os gregos. Mas a Deus se aplica certamente o amor entendido como “ágape”, como doação, como capaz de dar tudo de si para tornar feliz o outro. Essa relação de amor nós vimos na relação mútua entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Também o vimos no amor que leva Deus a libertar o povo hebreu da escravidão do Egito e ainda mais quando Ele envia seu Filho ao mundo, esse Filho único, feito homem, Jesus Cristo, que doa sua vida na cruz para nossa salvação. É sempre o amor de doação.
Contudo, afirma o papa, em Deus o “eros” não está de todo ausente, ainda que totalmente puro e santo, a ponto de transformar-se totalmente em “ágape”, sem deixar de ser “eros”. De fato, o “Eros” sente-se atraído pelo amado, sente paixão que atrai e quer o outro, não quer perder o amado. Ora, isto também ocorre no amor entre as três Pessoas divinas que, além de se doarem sem reservas umas às outras, sentem-se atraídas umas pelas outras e não querem perder umas as outras. O mesmo ocorre na relação de amor de Deus com suas criaturas, em especial com os seres humanos. Deus sente-se atraído e feliz com sua criação, sente-se apaixonado por ela e faz tudo para não perdê-la. João Paulo II, no Rio de Janeiro, no II Encontro Mundial com as Famílias, disse que Deus ama as famílias com amor apaixonado. Mas este apaixonar-se por sua criação e sobretudo pelos seres humanos, ao transformar-se em  ser capaz de fazer tudo, até mesmo entregar seu Filho único, para não perder suas criaturas, manifesta que em Deus o “eros” é transformado em doação total de Si mesmo e se torna “ágape” em grau supremo.
Na própria Bíblia, como já dissemos, o amor que Deus tem por seu povo é descrito em termos de amor esponsal, nupcial, que inclui “eros” e “ágape”.
O mesmo ocorre no amor que Jesus Cristo manifesta em relação à humanidade, a cada ser humano, especialmente em relação à sua Igreja. Jesus Cristo ama sua Igreja como o esposo ama sua esposa, escreve o apóstolo Paulo. Jesus Cristo sente-se apaixonado pelo ser humano, quem quer que ele seja, não quer perder nenhum, vai em busca da ovelha perdida e sente-se feliz e alegre ao encontrá-la, sente-se feliz em poder dar sua vida por suas ovelhas no terrível suplício da cruz, quando então se manifesta em grau supremo que também em Jesus  o “eros” se traduz em doação total, em “ágape”.
Então, Bento XVI, em sua encíclica, resume tudo, dizendo: “Na visão da Bíblia... Deus é absolutamente a fonte originária de todo o ser; mas este princípio criador de todas as coisas – o “Logos”, a razão primordial – é, ao mesmo tempo, um amante com toda a paixão de um verdadeiro amor. Deste modo o “eros” é enobrecido ao máximo, mas ao mesmo tempo tão purificado que se funde com o “ágape” (DEA, 10).
Portanto, o amor é a lei fundamental do cristão. Esse amor é um dever individual de cada cristão para com Deus e com o próximo, e, tudo que isto implica, seja no culto a Deus e em seu relacionamento constante com Ele, seja no relacionamento com o próximo que vive em situações concretas e tem carências e aspirações concretas.
Deus nos ama apaixonadamente, com amor eterno, infinito, incompreensível, sem limites. Criados à sua imagem devemos ser santos como ele é santo, misericordiosos como ele é misericordioso, capazes de amar à semelhança do amor dele, e isto podemos e devemos aprender em Jesus Cristo, o judeu que foi fiel ao ensinamento religioso de seu tempo. Jesus nos disse: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros. Assim como eu vos amei: amai-vos uns aos outros. Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 34-35).
Vimos no inicio de nosso trabalho, como Marcião,[10]viveu aflito por acreditar existir uma acentuada diferença entre Deus no Antigo Testamento e no Novo Testamento, sendo condenado desta forma por heresia.
Acredito que no coração desta aflição se encontra um engano fundamental a respeito das revelações feitas sobre a natureza de Deus no Antigo e no Novo Testamento. Outra maneira de expressar este mesmo pensamento básico é quando as pessoas dizem: “O Deus do Antigo Testamento é um Deus de ira, enquanto o Deus do Novo Testamento é um Deus de amor.” A Bíblia é a progressiva revelação de Deus a respeito de Si mesmo a nós através de eventos históricos e através de Seu relacionamento com as pessoas através da história. Este fato poderia contribuir para a interpretação errônea sobre como é Deus no Antigo Testamento, se comparado com o Novo Testamento. Entretanto, quando se lê tanto o Antigo quanto o Novo Testamento, rapidamente se torna evidente que Deus não é diferente de um Testamento para o outro e que tanto a ira de Deus como também Seu amor são revelados nos dois Testamentos.
Por exemplo, através de todo o Antigo Testamento, declara-se que Deus é “misericordioso e piedoso, tardio em irar-se e grande em beneficência e verdade” (Êxodo 34:6; Números 14:18; Deuteronômio 4:31; Neemias 9:17; Salmos 86:5; Salmos 86:15; Salmos 108:4; Salmos 145:8; Joel 2:13). No Novo Testamento, a bondade, amor e misericórdia se manifestam de maneira ainda mais abundante pelo fato de que “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16). Ao longo do Antigo Testamento, também observamos que Deus lida com Israel de um jeito bem parecido com o que um pai amoroso lida com um filho. Quando eles deliberadamente pecaram contra Ele e começaram a adorar ídolos, Deus os disciplinou, mas mesmo assim os livrava cada uma das vezes, quando se arrependiam de sua idolatria. É desta forma que vemos Deus lidando com os cristãos no Novo Testamento. Por exemplo, Hebreus 12:6 nos diz que “porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho.”
De forma parecida, através do Antigo Testamento vemos o julgamento e a ira de Deus derramados sobre pecadores que não se arrependeram. Sobre a ira de Deus, vemos também no Novo Testamento: “Porque do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, que detêm a verdade em injustiça” (Romanos 1:18). Mesmo em uma leitura rápida do Novo Testamento, fica logo evidente que Jesus fala mais no inferno do que no céu. Então, claramente, Deus não é diferente no Antigo e no Novo Testamento. Deus, por Sua própria natureza, é imutável (Ele não muda). Mesmo que possamos ver um aspecto de Sua natureza, mais do que outros, revelado em certas passagens das Escrituras, Ele mesmo não muda.
Quando se começa a ler e estudar a Bíblia, se torna evidente que Deus não é diferente no Antigo e no Novo Testamento. Apesar de ser a Bíblia um livro composto de setenta e três livros individuais, escritos em dois (ou possivelmente três) continentes, em três línguas diferentes, através de um período de aproximadamente 1500 anos, por mais de 40 autores (vindos de diferentes atividades e ofícios), continua a Bíblia, mesmo assim, um livro consistente em sua unidade, do começo ao fim, sem contradições. Nisto vemos quão amoroso, misericordioso e justo é Deus ao lidar com os homens pecadores, em todos os tipos de situação. Verdadeiramente, a Bíblia é a carta de amor de Deus para a humanidade. O amor de Deus por sua criação, especialmente pela humanidade, é evidente por todas as Escrituras. Por toda a Bíblia podemos ver Deus chamando a todos, com amor e misericórdia, para terem com Ele um relacionamento especial, não porque mereçam, mas porque Ele é um Deus de graça e misericórdia, tardio em irar-se e cheio de amor, bondade e verdade.
Sendo assim, como ver aquelas pelas passagens do Êxodo que fala de Libertação, destruição dos egípcios, passagem do Mar Vermelho. Os textos bíblicos convidam o leitor a acompanhar o caminho feito pelos israelitas. Porém, sempre nos esquecemos daqueles que ficaram: o que aconteceu ao povo egípcio com todos aqueles castigos que lhe foram impostos por culpa de seus governantes? Os textos bíblicos nada falam!
Diante desta constatação ficamos perplexos, pois, nos perguntamos: que Deus é este que destrói um povo numeroso em prol de um pequeno grupo eleito? Mas será este o real convite que a teologia judaica, através dos eventos da libertação do Egito, está fazendo aos seus leitores? Quem são os egípcios? E, quem são os leitores a quem se destinam tais textos? Quando respondermos a estas questões terá a chave para entender o porquê do aparente esquecimento dos egípcios e do convite para caminhar com Moisés e os israelitas[11].
O duelo entre Moisés e o Faraó se inicia, convencendo o leitor de que o Deus dos israelitas é o verdadeiro Deus e que realmente tem poder e quer libertá-los da escravidão, por intermédio de Moisés (Ex. 1-4). O primeiro encontro entre Moisés e o Faraó ocorrerá somente no capítulo 5 do livro do Êxodo, onde o Faraó demonstra não conhecer o Deus de Moisés: "Quem é o Senhor para que eu escute a sua voz e deixe partir Israel? Não conheço o Senhor e não quero deixar partir." (Ex 5,2). Contrapondo-se à pretensão do Faraó, Moisés apresenta o projeto de Deus: que os israelitas saiam para cultuar ao Senhor (Ex 5,3). Assim, o Faraó passa a medir forças com o Senhor aumentando a escravidão sobre os israelitas (Ex 5,4-19), que por sua vez, se revoltam contra Moisés e o Senhor. A posição israelita reforça as pretensões do Faraó, o qual não ouvirá Moisés (Ex 6,10-12). Afinal, nem os israelitas ouvem o Senhor (Ex 6,9.12).
O fracasso da missão de Moisés em 7,1-7 se apresenta como parte dos planos de Deus: o Faraó é usado por Deus (Ex 7,3) para a manifestação de sua autoridade: "Estenderei minha mão contra o Egito e com autoridade farei sair meus exércitos, meu povo, os filhos de Israel, para fora da terra do Egito. Então os egípcios conhecerão que eu sou o Senhor, quando estender minha mão contra o Egito; e farei sair do meio deles os filhos de Israel." (Ex 7, 4-5). Em Ex 7,8-13, a cobra que surge do bastão de Moisés, representando a força de Deus, engole todos os poderes e forças dominadoras do mal, que se pretendem absolutas. Estas duas passagens prefiguram o fracasso das pretensões do Faraó, que ocorrerá em Ex 12,29-14,31, e são as primeiras ações divinas contra o Faraó que continuarão acontecendo no episódio das dez pragas.
Para compreender este belíssimo texto, temos que levar em conta a época em que ele foi escrito, final do sexto século, início do quinto, a.C., logo depois do fim do exílio babilônico. Com a queda da Babilônia ante o Império Persa, os exilados poderiam retornar para sua Terra e reconstruir seu país. Só que Muitos judeus, após meio século de estadia na Babilônia, não queriam mais voltar, preferiam ficar na Babilônia. É neste contexto que os sacerdotes judaicos começaram a produzir os textos bíblicos para convencê-los a retornarem. O Êxodo é simbólico e representa a volta dos exilados para suas terras; bem como o Egito é símbolo da Babilônia.
Moisés, símbolo dos judeus que saíram da Babilônia, traz consigo um novo projeto de sociedade, apresentado e avalizado pelo Senhor: uma nação santa reunida ao redor do templo, sob os sacerdotes. Por isso, Deus está lutando junto com os judeus que saem do "Egito" (Babilônia). Moisés é convite para que cada judeu opte, radicalmente, pela sua cultura, suas tradições, seu povo, sua terra e seu DEUS, afogando e matando, completamente o Faraó (cultura babilônica) que existe dentro de cada um.
      








[1] GUERREIRO, Nuno Josué. http://ruadajudiaria.com/?p=62 acessado em 09-03-2011.
[2] Enquanto a autenticidade histórica das polemicas do Evangelho com os fariseus e outros grupos seja mais que duvidosa é, mesmo assim, altamente significativa para a representação geral de Jesus que, quando perguntado se os judeus deveriam pagar impostos a Roma, ele é mostrado como defensor das exigências imperiais (Mc 12,17; Mt 22,21; Lc 20,25).
[3] O Decálogo (Ex 20,8-11;Dt 5,12-15) proíbe simplesmente trabalhar no Shabat. Os atos proibidos são especificados apenas incidentalmente na Bíblia: viajar (Ex 16,29), arar (Ex 34,21), acender fogo (Ex 35,3), apanhar gravetos (Nm 15,32-36) e comerciar (Ne 10,31). A penalidade por não guardar o Shabat  é idêntica apenas uma vez, no caso particular do homem que recolhia gravetos no deserto (Nm 15,35-36). Temos de esperar até o Livro dos Jubileus (50,6-9), de meados do segundo século a.C. e os estatutos do Documento de Damasco (10,14-12.6), meio século após, até encontrar as primeiras tentativas de sistematização e até a seção relevante da Mishná (Shab. 7,2), antes de obter uma lista detalhada das trinta e nove classes de ações proscritas. Tanto Jubileus (50.8) quanto a Mishná (Sanh. 7.4) declaram que a não observância do Shabat é passível de pena de morte, isto é, por apedrejamento ao fim de um julgamento, de acordo com a Mishná.
[4] Deve-se notar que estas palavras, embora provavelmente independentes em sua origem, estão anexadas a um texto de prece que aparece em Marcos 11,24.
[5] A máxima negativa é incluída também como sumário doutrinal da Parábola do Servo Cruel (Mt 18,35). O ensinamento relativo à reconciliação necessária, mesmo fazendo uma oferenda no Templo, é enfatizada igualmente em Mt 5,23s., sem referencia a um Pai celeste benevolente. A alusão ao santuário, que na opinião de Bultmann atesta a forma mais original porque “pressupõe a existência do sistema sacrificial, em Jerusalém, é mais provavelmente derivada de Mateus do que de Jesus, cujo interesse em assuntos do Templo parece ter sido um tanto periférico.
[6] Cf. VERMES, Geza, A religião de Jesus, o Judeu, Rio de Janeiro: Imago, 1995; p. 158-159.
[7] Cf. VERMES, Geza, A religião de Jesus, o Judeu. p. 164.
[8] Cf. Idem, op. Cit., p. 165.
[9] JUNIOR, João Luiz Correia, Do Deus distante para o Deus amor, o desenvolvimento da idéia sobre Deus na Bíblia, Pernambuco: Revista Symposium 2000; p. 19.
[10] Cf. nota 17.
[11]SIGNORINI, Ivanir ; LIMA, Flavio e SIGNORINI, Vanderlei Roque, Uma luta de Deuses. http://www.salvatorianos.org.br/textos_umalutadedeuses.htm acessado em 07-03-2011

Nestes tempos de profunda crise religiosa não basta crer em qualquer Deus; precisamos discernir qual é o verdadeiro. Parece-me muito importante reivindicar hoje, na sociedade contemporânea, o autêntico Deus bíblico, o Deus dos Patriarcas, Deus dos Profetas, Deus de Jesus Cristo, sem confundi-lo com qualquer outro “deus” elaborado por nós a partir de medos, ou ambições e fantasmas que pouco, ou nada tem a ver com a experiência de Deus vivida e comunicada no universo bíblico.
Em nosso trabalho, conseguimos perceber como Deus se preocupa com as pessoas, é assim que ele olha os que sofrem, é assim que procura os perdidos, é assim que abençoa os pequenos, é assim que acolhe, é assim que compreende, é assim que perdoa, é assim que ama. É difícil imaginar outro caminho para aproximar-se desse mistério que chamamos Deus.
Deus é uma presença boa que abençoa a vida. A solicitude amorosa do Senhor, quase sempre misteriosa e velada, está presente envolvendo a existência de toda criatura.
O Senhor é um Deus próximo. Sua bondade já está irrompendo no mundo sob a forma de compaixão. Este Deus próximo busca as pessoas onde elas estão, mesmo que se encontrem perdidas, longe de sua Aliança. Este Deus é um Deus da mudança. Seu reino é uma poderosa força de transformação, um chamado à mudança.
Deus esta sempre do lado das pessoas contra o mal, o sofrimento, a opressão e a morte. O sofrimento, a enfermidade ou a desgraça não são expressão de sua vontade; não são castigos, provas ou purificações que Deus vai enviando a seus filhos. É inimaginável encontrar em Deus uma destas naturezas, Ele quer ver seus filhos cheios de vida, não quer que se introduza a morte entre eles, mas não abençoa os abusos e as discriminações, e sim a igualdade fraterna e solidária; não separa nem excomunga, mas abraça e acolhe. Não se pode justificar em nome de Deus que alguém passe fome quando esta pode ser saciada, ou que um povo seja destruído para a edificação de outro.
Nosso Deus é um Deus revelado, Deus que se comunica que procura o ser humano para dialogar, que não age por interesse, coloca-se ao lado do ser humano caminhando com ele, é fiel em sua amizade e vai permitindo a este Ser conhecê-lo no caminho que percorrem juntos, unidos pela Aliança feita entre os dois; Deus coloca toda a natureza e toda a criação nas mãos do ser humano, e, só quer sua amizade, companhia, adotando-o como filho e iniciando assim laços familiares com ele.
Por meio da Sagrada Escritura, podemos perceber que o povo de Israel foi aprendendo sobre Deus ao longo da história, no desenrolar dos conflitos, das crises, das vitórias e alegrias do cotidiano. Tal como Eles, também nós continuamos fazendo a experiência de caminhar com Deus dentro da história, e estas experiências sempre levam em conta o contexto em que o ser humano está inserido. A compreensão que fazemos de Deus depende da compreensão que o ser humano tem de si mesmo, e de suas relações com outros seres.
Fomos percebendo em nossa pesquisa que os homens da Bíblia costumavam falar de outra forma a respeito de Deus, fazendo uso de diversas formas de linguagem. Quando falavam de Deus, narram, sobretudo, situações da vida deles nas quais tinham percebido quem era Deus e como ele os mudava ou queria mudá-los. Aprendemos que nosso olhar Ocidental sobre os relatos bíblicos buscam encontrar uma historicidade dentro do texto que não é possível encontrar, e isso dificulta a nossa real compreensão, por se apresentarem contraditórios, exatamente por não seres históricos, a Bíblia não é um livro de História ou de arqueologia, é um livro que trata da experiência de fé de um povo, muito embora fale de dados concretos da vida. Chegamos à conclusão que é exatamente esta busca pela historicidade que ludibria muitos autores ao analisarem os relatos Bíblicos.
Em nosso caminhar percebemos que o Deus do Antigo e o do Novo Testamento é um e o mesmo Deus e que esta verdade pertence ao fundamento de nossa fé. Deus é um e único.
Ele é um Deus de vida para os hebreus em oposição à realidade de morte dos egípcios, pois os que estão longe do Deus da vida já estão mortos. Não é Deus que fere mortalmente os egípcios ou qualquer outro povo ou pessoa, são Eles que se colocam contra o projeto vivificador de Deus, afastam-se do amor misericordioso que é o fio condutor que perpassam todas as paginas da Sagrada Escritura. Deus é um Deus da Aliança, e, exige um engajamento de vida e uma correspondência sem igual em relação a Ele. Concluímos que um mundo sem Deus é um mundo da morte. As mortes não são uma ação de Deus, mas uma ação do não Deus. Deus não age para que venha a morte, é Ele que se apresenta como alguém que gera a vida diante de povos que vivem uma realidade de morte.
Podemos afirmar que Deus nos ama apaixonadamente, com amor eterno, infinito, incompreensível, sem limites. Finalmente concluímos que Deus nunca cessa a sua vontade de falar ao homem, e o homem nunca cansa de procurar a Deus.

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