1. Considerações
Deus não é um presente ausente. “muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora a nossos pais, nos profetas; nestes últimos tempos, falou a nós no Filho” (Hebr 1,1). “A Deus ninguém jamais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que está no seio do Pai” (Jo 1,18). Rompeu Deus o silêncio: saiu de seu mistério, dirigiu-se ao homem e desvendou-lhe os segredos de sua vida pessoal; comunicou-lhe seu desígnio inaudito de uma aliança que levasse a uma participação de vida. Deus, o Deus vivo, falou à humanidade. Esse fato imenso que domina ambos os Testamentos. Essa palavra, inicialmente longínqua, confusa, intermitente, como que numa série de sons destacados cujo nexo os ouvidos mal percebiam, entrega-se toda inteira em Jesus Cristo, Filho do Pai, Verbo do Pai, torna-se Evangelho e ressoa, clara e distinta como uma mensagem: a “palavra da Boa-nova” (At 15,7), a “palavra do Senhor” (1Tes 1,8; 2Tes 3,1), a “palavra de Deus” (1Tes 2,13), a “palavra de verdade” (2Cor 6,7; Ef 1,13; Col 1,5; 2Tm 2,15), a “palavra de vida” (Flp 2,16), a “mensagem de salvação” (At 13,26), “o Evangelho da graça” (At 20,24).
A revelação ou palavra de Deus à humanidade é a primeira realidade cristã: o primeiro fato, o primeiro mistério, a primeira categoria. Toda a economia da salvação, na ordem do conhecimento, repousa sobre esse mistério da automanifestação de Deus numa confidencia de amor. A revelação é o mistério primordial, o que nos comunica todos os outros, pois é a manifestação do desígnio salvífico de Deus, premeditado desde toda a eternidade e que ele realizou em Jesus Cristo (Ef 1,9-10; Rm 16,25-27). Pela revelação conhecemos os dons da salvação e os meios que nos levam à sua consecução. A Revelação é o acontecimento decisivo e primeiro do cristianismo, condicionante da opção de fé, pois, se Deus falou à humanidade e se isso for solidamente comprovado, a opção de fé não será uma opção às cegas, mas uma opção de homem, de acordo com sua natureza de ser inteligente e livre. A revelação, finalmente, é a primeira das categorias que fundamentam toda pesquisa teológica. Revelação, inspiração, tradição, significam para a ciência teológica o mesmo que as noções básicas para as ciências humanas. Implicadas em todos os passos, essas categorias são as primeiras que se devem conhecer, definir, explicar.
2. A revelação no antigo Testamento
Caracteriza-se a religião do Antigo Testamento pela afirmação de uma intervenção de Deus na história, intervenção devida unicamente à sua livre decisão. É concebida essa intervenção como o encontro de alguém com alguém: de alguém que fala com alguém que ouve e responde. Dirige-se Deus ao homem como um senhor a seu servo, interpela-o, e o homem, que ouve a Deus, responde pela fé e pela obediência. O fato e o conteúdo dessa comunicação, nós o chamamos de revelação.
Tomada em sua totalidade, como um fenômeno complexo que compreende uma multiplicidade de formas e de meios, essa revelação apresenta-se, antes de mais nada, como a experiência da ação de uma potencia soberana que modifica o curso normal da historia e da existência individual. Ação que não é, porém, uma manifestação violenta de poder, emoldurada sempre e amoldada por palavras: é uma potencia que dialoga, anuncia, explica, manifesta um plano. Deus não fala à massa, mas escolhe inicialmente um povo e, nesse povo, intermediários que transmitirão sua palavra e exigirão, em seu nome, uma resposta.
Ainda que o Antigo Testamento não tenha um termo técnico para traduzir a idéia de revelação, a expressão “palavra de Javé” permanece a expressão privilegiada, a mais freqüente e significativa para exprimir a comunicação divina. Nas teofanias, a manifestação sensível está a serviço da palavra. O mais importante não é ver a divindade, mas ouvir sua palavra. O chamado de Deus a Abraão apresenta-se-lhe como simples falar divino (Gen 12,1ss). É igualmente significativo o fato de Moisés, que podia conversar com Deus, como um amigo com seu amigo (ÊX 33,11), não pode ver sua face (Ex 33,21-23). Na revelação do Sinai, a força da narrativa recai na palavra de Deus. Quanto aos profetas, “é de se notar, que as palavras são o essencial mesmo nas visões”. A revelação por visões é também revelação pela palavra. É por sua palavra que Deus, progressivamente, introduz o homem no conhecimento de seu íntimo. “A palavra de Deus, no Antigo Testamento, dirige e inspira uma historia que se inicia pela palavra divina pronunciada na criação e que termina com a palavra feita carne”. Traçar, pois, a historia da palavra de Deus é traçar ao mesmo tempo a historia da revelação.
2.1. As etapas da historia da revelação
1º. Ainda é hesitante a pesquisa quanto à fase mais antiga da revelação, fase que parece centrada nos fatos teofânicos e nas manifestações de tipo oracular.
O Gênesis narra que Javé apareceu sob formas humanas a Abraão, junto aos terebintos de Mamré (Gen 18,1ss), anunciando-lhe o nascimento de Isaac e a destruição de Sodoma. Aparece-lhe ainda Javé para concluir uma aliança e mudar seu nome de Abrão em Abraão (Gen 26,2;32, 25-31; 35,9). Impossível, contudo, determinar a natureza exata dessas manifestações, que poderiam ter sido visões sensíveis, afetando os sentidos exteriores, ou apenas visões interiores, apresentadas de forma antropomórfica apta a indicar o caráter intenso e direto da experiência interior. Não há duvida de que essas tradições patriarcais foram conservadas em textos que a pesquisa contemporânea atribui aproximadamente ao século décimo ou ao nono-oitavo; textos porem, que transmitem tradições muito mais antigas. Pode-se admitir, contudo, que essas experiências foram retocadas pelos narradores.
O ambiente oriental usava algumas técnicas para tentar penetrar os segredos dos deuses: adivinhações, sonhos, sortilégios, agouros etc. o Antigo Testamento, durante muito tempo, conservou algumas dessas técnicas, purificando-as de suas aderências politeísticas ou mágicas (Lev 19,26; Dt 18,10s; 1Sam 15,23; 28,3), atribuindo-lhes, contudo, certo valor. Nos momentos importantes ou difíceis, por exemplo, antes de uma guerra ou aliança, Israel interroga, consulta Javé, seu Deus, que ele sabe estar presente a todas as suas ações (1Sam 9,1-10; Jos 7,6-15; 1Sam 10,20-21). Mas, enquanto entre seus vizinhos semitas ou egípcios o adivinho procura coagir os deuses mediante ritos considerados infalivelmente eficazes, Israel espera uma resposta que depende do bel-prazer de Javé. Essas consultas, quase sempre em favor dos chefes da nação, são feitas pelos videntes e principalmente pelos sacerdotes )1Sam 14,36; 22,15). Nos oráculos, o sacerdote usa os Urim e Thummim, guardados no ephod; as respostas são dadas em fórmulas breves, sim ou não (Dt 33,8; Ex 28,30; Lev 8,8; Num 27,21; 1Sam 14,41; 23,10ss). Significativo também que Israel tenha sempre recusado aceitar certas formas clássicas da técnica de adivinhação, por exemplo, a hepatoscopia, muito usada nos sacrifícios divinatórios do antigo oriente.
Como a maioria dos povos antigos, admitiam os hebreus que Deus se pudesse servir de sonhos para dar a conhecer suas vontades (Gen 20,3;28,12-15;37,5-10; Jz 7,13ss; 1Sam 28,6; 1Rs3,5-14). José tem uma taça de adivinhação (Gen 44,2.5) e é perito na interpretação de sonhos (Gen 40-41). Progressivamente, porém, distinguem-se os sonhos que Deus envia aos profetas autênticos (Num 12,6; Dt 13,2) e os dos adivinhos profissionais que apregoam sonhos mentirosos (Jer 23,25-32; Is 28,7-13).
Nos profetas, essas técnicas arcaicas tendem a desaparecer, dando lugar à experiência da palavra que prevalece[1].
2º. A aliança do Sinai é um momento decisivo na historia da revelação. Não pode ser compreendida a não ser à luz de todo o processo histórico, cuja meta e acabamento ela constitui. Javé, que provara a Israel o seu poder e sua fidelidade livrando-o do domínio egípcio, pela Aliança faz desse povo sua propriedade e torna-se chefe da nação. Todas as tradições ligam à Aliança certas leis que são as condições de Javé, as cláusulas Poe ele impostas a Israel. Leis que são as “palavras” da aliança (Ex 20,1-17). O característico dessas debarim, que originalmente poderiam ter existido de forma muito mais simples e não decalógica, é o estilo apodítico, que não encontramos senão em Israel e em alguns tratados hititas do segundo milênio. As palavras da Aliança são a revelação da vontade divina, que respeitada ou transgredida trará a benção ou a maldição; exprimem o exclusivismo do Deus de Israel e suas exigências morais. A Aliança transformou em comunidade as tribos que tinham saído do Egito, dando-lhes uma lei, um culto, um Deus, uma consciência religiosa. Torna-se Israel um povo governado por Javé. Todo seu destino, de agora em diante, está ligado a essa vontade divina historicamente manifestada e alicerçada no acontecimento da libertação. Os mishpatim ou costumes do Código da aliança (Ex 20,22-23;19), se bem que sejam de uma fase ulterior que supõe uma canonização das leis consuetudinárias dos antepassados também como expressão da vontade de Deus. Por suas fórmulas imperativas, já, porém, mais circunstanciadas ou casuísticas, são um prolongamento do Decálogo.
3º. O profetismo constitui uma nova etapa na historia da palavra. Já o eloísta ou o javista, quando narram a historia das origens da nação, tomam um ponto de vista profético. Consideram certos fatos como “julgamentos” e vêem nos patriarcas seres carismáticos, dirigidos pela palavra de Javé (Gen 12;13;15;16;18;26;28). Balaão, apesar de pagão, tem papel de um profeta inspirado (Num 22-23). Principalmente Moisés é considerado como o protótipo dos profetas (Dt 34,10-12; 18,15.18). se bem que Josué já apareça como confidente e porta-voz de Javé, foi somente a partir de Samuel (1Sam 3,1-21) que o profetismo se tornou freqüente; parece quase permanente até o século quinto, mesmo sendo sem,pré antes carismático que institucional.
No tempo dos profetas escritores, a palavra de Javé impõe-se cada vez mais como a expressão da vontade divina e como poder decisivo na historia de Israel. Os profetas anteriores ao exílio (Amós, Oséias, Miquéias, Isaías) são os guardiões e defensores da ordem moral imposta pela Aliança. Sua pregação é um chamamento à justiça, à fidelidade, ao serviço do Deus todo-poderoso e três vezes santo. Como, porém, Israel é infiel às condições da Aliança, as mais das vezes o dabar divino condena e anuncia castigos (Am 4,1;5,1;7,10-11; Os 8,7-14;13,15; Mq 6-7; Is 1,10-20; 16,13;28,13-14;30,12-14;37,22;39,5-8). Castigos que não serão revogados. O tema da irreversibilidade e do dinamismo da palavra divina afirma-se claramente em Is 31,2; Os 6,5, e ainda mais explicitamente em Is 9,7: “Lança o Senhor uma palavra contra Jacó e ela cai sobre Israel”. Aqui aparece a palavra como puro dinamismo. Cai como flecha e desenvolve seus efeitos por etapas sucessivas.
Jeremias ocupa lugar importante na reflexão teológica sobre a revelação, pois tentou determinar os critérios da autentica palavra de Deus. Tais critérios são: a realização da palavra do profeta (Jer 28,9;32,6-8; Dt 18,21-22), a fidelidade a Javé e à religião tradicional (Jer 12,13-32), o testemunho enfim, tantas vezes heróico, do próprio profeta sobre a sua vocação (Jer 1,4-6;26,12-15). Jeremias foi consagrado profeta como que num rito: colocou-lhe Deus na boca sua palavra como um objeto material (Jer 1,9). Alimento saboroso (Jer 15,16), ou fonte de tormentos (Jer 20,9.14), a palavra de Deus escraviza-o e coage-o como uma realidade objetiva e superior. A palavra, da qual é o destinatário ou o órgão, está geralmente relacionada com a fidelidade que Israel deve à Aliança de Javé. Jeremias é o defensor da Lei e da Aliança. Como os outros profetas, exorta, promete, ameaça (Jer 2,4;7,2;17,20;22,2.19;34,4;22,5;26,12-13;19,2;20,1). Também apresenta a palavra como uma entidade independente, de dinamismo irresistível (Jer 5,14;23,29;25,13;26,12).
4º. O Deuteronômio, originário dos ambientes do norte trabalhados pela pregação profética dos séculos nono e oitavo (segundo Welch, Alt, von Rad), encontra-se na confluência de duas correntes: a legalista, expressão do sacerdócio, e a profética. Aprofunda-se, sob essa dupla influencia, a teologia da Lei. O Deuteronômio, procurando corrigir o presente à luz do passado, relaciona mais que nunca a Lei ao tema da Aliança. A historia de Israel, com suas desgraças, aparece como a conseqüência lógica duma infidelidade constante e renovada. Javé, revelando sua vontade prometera sua benção à obediência: o castigo de Israel é o julgamento de Deus sobre a desobediência de seu povo[2].
Israel, pois, se quiser viver, deve pôr em pratica todas as palavras da Lei (Dt 29,28) que, saída da boca de Javé, é fonte de vida (Dt 32,47). O Deuteronômio amplia em diversos sentidos o dabar divino. Os relatos do Sinai empregam o termo debarim para designar o Decálogo (Ex 20). O Deuteronômio, que também chama o Decálogo de: as “dez palavras” (Dt 4,13;10,4) estende a expressão a todas as cláusulas da Aliança (Dt 28,69), isto é: ao conjunto das leis morais, civis, religiosas e criminais. Firma-se de tal modo a coesão de todas essas prescrições que “palavra” acaba sendo a designação de toda a Lei mosaica (Dt 28,69; 30,14;32,47). Nas leis do Sinai, o dabar divino era simples mandamento, sem comentários. No Deuteronômio, pelo contrário, os preceitos são acompanhados de evocações históricas, promessas e ameaças (Dt 4,32), que devem inspirar o amor e o respeito pela lei. Finalmente, interioriza-se a palavra da lei. Os “mandamentos e as leis” que Javé prescrevera (Dt 27,10) já não se concebem como simples imperativos, mas como uma realidade íntima no coração do homem: “A palavra está perto de ti, tu a tens em tua boca e no coração, para poder cumpri-la” (Dt 30,11-14). Consiste a Lei em amar a Deus de todo o coração e de toda a alma (Dt 4,29).
5º. Paralelamente às correntes proféticas e deuteronômicas, forma-se uma literatura histórica (Juizes, Samuel, Reis) que abarca fontes e documentos muito mais antigos. Essa literatura histórica é em realidade uma historia de salvação e uma teologia da historia. Nas desgraças e nos sucessos de Israel, o livro dos Juízes vê uma ilustração do regime da Aliança. Principalmente no livro dos Reis desenvolve-se a concepção do dabar divino presente na historia para dirigi-la. A Alinça concluída por Javé e as condições por ele impostas, supõem que o curso dos acontecimentos é regulado pela vontade divina, levadas em conta as atitudes do povo eleito. Desde então Israel sempre pensou sua religião em categorias históricas. E a torna compreensível. Ao longo de toda a historia dos Reis, as palavras de Javé vão escandindo o curso dos acontecimentos, manifestando seu sentido religioso (1Rs 2,4;3,11-14;6,11-13;8,46-52;9,3-9;11,31-39;12,15;14,6-16;15,29-30;16,1-4; 2Rs 9,7-10;21,10-15;22,16-20;24,2-4).
Importante nessa literatura histórica é o texto da profecia de Natan (2Sam 7) que dá à Aliança conexões com a realeza e inicia o messianismo real. Com essa profecia a dinastia de Davi torna-se para sempre a aliada direta de Javé (2Sam 7,16;23,5), ponto central na historia da salvação. De agora em diante, repousa sobre o rei a esperança de Israel: primeiro o rei presente, depois um rei futuro, escatológico, à medida que as infidelidades dos reis históricos tornam mais remota a esperança de um rei conforme ao ideal davídico. Essa profecia é o inicio de uma teologia, elaborada pelos profetas. Teologia eminentemente de promessa, voltada sempre para o futuro, mais que a teologia da Aliança do Sinai, cujas exigências são principalmente cotidianas.
6º. Quando do exílio, a palavra profética, sem deixar de ser uma palavra viva, torna-se sempre mais uma palavra escrita. Significativo que a palavra confiada a Ezequiel está escrita num rolo que o profeta deve comer para depois anunciar seu conteúdo (Ez 3,1ss). Suas mensagens ganharão, escritas, a estabilidade dos decretos divinos. Ezequiel é o ministro duma palavra irrevogável, que anuncia os acontecimentos dando-lhes um desenrolar infalível (Ez 12,25-28; 24,14). Com ele, as vezes, o dabar não é apenas uma mensagem, mas uma ordem formal e veemente, um poder que opera efeitos físicos. Uma primeira característica da profecia de Ezequiel é o número e a amplitude das visões (Ez 1;2,8-3,9;8-11;37;40,1-48,35). Há palavras que comentam essas visões que, por si mesmas, são um ensinamento. Uma segunda característica é o tom pastoral da palavra de Ezequiel. Após a queda de Jerusalém (Ez 33,1-21), já não existe Israel como nação. Torna-se então a palavra de Javé uma palavra de conforto e esperança para os exilados abatidos. Ezequiel começa a formar o novo Israel, como o faria um diretor espiritual (Ez 33,1-9). Deixando entrever que a palavra que decreta e infligira o castigo continua sendo uma promessa, Ezequiel, contudo, preocupa-se que não haja engano quanto a sua natureza e exigências: não basta ouvir a palavra, é preciso dela viver (Ez 33,31). Ezequiel, “pela importância dada ao mashal, ao ensinamento moral e individual, orienta-nos claramente para uma noção sapiencial da palavra, para uma reflexão fria”.
Deutero-Isaías (Is 40-55), que devemos ler no contexto do exílio, considera o dabar divino em seu dinamismo a uma só vez cósmico e histórico. Manifesta-se a transcendência de Javé primeiramente em a natureza. O exercito dos céus obedece ao Criador: Javé chama pelo nome os astros, os quais obedecem (Is 40,26;45,12;48,13). Sua absoluta soberania sobre a criação é o fundamento e a garantia de sua ação onipotente na historia: porque Javé, pela sua palavra, fez do nada tudo surgir, por isso é o senhor das nações como das forças da natureza. O aspecto histórico do dabar inspira toda a primeira parte da coleção (Is 40,1-48,22). A palavra domina a historia e de antemão lhe revela o curso (Is 45,19;48,16). Está no início e no termo dos acontecimentos: ela que os prediz, suscita, realiza. Em Is 48,3-8, a realização das profecias anteriores aparece como garantia das coisas futuras também anunciadas: da libertação, da volta, da restauração, do universalismo escatológico. Nas mãos de Deus estão os pólos extremos da historia (Is 41,4;44,6;48,12). Historia que é inteligível porque se desenvolvendo segundo um plano que a palavra revela progressivamente aos homens. Finalmente, em Is 55, o autor canta a eficácia infalível da palavra que executa as vontades divinas com a mesma fidelidade dos elementos da natureza: “Assim como a chuva e a neve do céu descem e não voltam para lá sem terem antes irrigado a terra e a terem fecundado e feito germinar... assim será da palavra que sai da minha boca: não voltará a mim vazia, mas, antes, operará tudo o que agrada, e obterá o escopo para o qual a mandei” (Is 55,10-12). Audaciosa personificação, que apresenta a palavra como realidade dinâmica, criadora da história.
7º. A literatura sapiencial é testemunha de uma tradição muito antiga em Israel (1Rs 5,9-14;10,1-13.23-25); na época persa e helenista, porém, é que está mais em voga: às coleções existentes (por exemplo, Prov 10,1-22,16;25-29) juntam-se numerosas criações (Jó, Eclesiastes, Eclesiástico, Sabedoria). Ainda que a literatura sapiencial do Antigo Testamento pertença a uma corrente de pensamento internacional (Grécia, Egito, Babilônia, Fenícia) presente desde o segundo milênio, contudo, em Israel essa corrente transformou-se bem cedo num instrumento de revelação.
O mesmo Deus, que ilumina os profetas, usou a experiência humana para dar o homem a conhecer-se a si mesmo (Prov 2,6;20,27). Inicialmente essa sabedoria é simples reflexão, positiva e realista, sobre o homem e seu comportamento, para ajuda-lo a se orientar na vida com prudência e discrição (Prov 1,1-6). Na Grécia essa reflexão será mais especulativa e se transformará em filosofia. Em Israel, muito cedo o tesouro de experiência dos sábios foi vivificado pelo sopro da religião de Javé. Assumindo a experiência humana, Israel interpreta-a e aprofunda à luz de sua fé em Javé, senhor dos homens e da vida. E até mais: muitas vezes pertencem à revelação os dados sob os quais se inclina a reflexão sapiencial: a criação (Eclo 43), a história que torna patentes os caminhos de Deus (Eclo 44 – 50), os livros históricos, a Lei e os profetas (Eclo 3921ss). Sob a influencia dessa fé em Javé, a antítese sabedoria – loucura torna-se progressivamente uma oposição entre justiça e iniqüidade, piedade e impiedade. Sábio é quem cumpre a lei de Deus (Eclo 15,1;19,20;24,23; Eclo 12,13), pois toda sabedoria provém de Deus (Prov 2,6). Somente ele a possui plenamente; manifesta-a em suas obras e comunica-a aos que o amam )Eclo 1,8-10; Sab 9,4; Jó 28,12-27). A sabedoria, como a palavra, saiu da boca do Altíssimo; agia nas origens da criação e veio estabelecer-se em Israel (Eclo 24,3-31). Assim a sabedoria se identifica finalmente com a palavra de Deus, criadora e reveladora (Sab 7-9).
8º. O saltério, formado aos poucos, ao longo de toda uma historia, é principalmente uma resposta à revelação; mas é também revelação, pois a oração dos homens, pelos sentimentos que manifesta, dá à revelação toda a sua dimensão. A grandeza, a majestade, a potencia, a fidelidade, a santidade de Javé reveladas pelos profetas, refletem-se nas atitudes do crente e na intensidade de sua oração. Espelhos da revelação, os salmos são também sua reatualização cotidiana no culto do templo. Não nos admiremos, pois, se ali reencontramos os diferentes aspectos da palavra já indicados. Muitas vezes a palavra de Javé indica os preceitos impostos por Deus a seu povo (Sl 17,4;107,11). O salmo 119 amplia essa visão celebrando a torá como a encarnação de toda a revelação divina, que às vezes ordena, ameaça às vezes ou faz promessas. Há também no saltério oráculos que são recordação dos compromissos anteriormente assumidos por Javé (Sl 99,7; 85,9; 89,20; 12,6; 62,12; 60,8; 105,11; 68,23). O salmista põe ainda em evidencia a veracidade, a fidelidade da palavra de Javé, segura e sem mescla. Mesmo quando o dabar não é proferido em forma oracular, tem muitas vezes o valor de uma promessa. Assim, no salmo 56, põe o fiel sua esperança na palavra de Javé cuja veracidade jamais falha. Finalmente, muitos salmos celebram a palavra criadora de Javé: o mundo surge do nada ao som da palavra que produz, organiza e governa (Sl 33,6.9). os elementos naturais, mesmo o tufão, obedecem à ordens de Deus (Sl 147,15-18; 107,25; 148,8). Em resumo: para os salmistas a palavra de Deus é ao mesmo tempo promessa e potencia que se exerce em a natureza e na história.
9º. Concluindo este esboço, ponhamos em evidencia o papel da escritura na história da revelação. O processo que levou à fixação da palavra foi inicialmente muito lento. Até ao fim da época dos reis, foi principalmente de forma ocasional que se escreveram as antigas tradições e os oráculos proféticos. Nem parece que pretendesse formar um cânon. Após o exílio somente é que se constituíram essas grandes compilações, redigidas em camadas sucessivas, com dados muito antigos, chamadas código deuterocanônico e código sacerdotal. Assim fixada, foi possível ler e meditar a palavra de Deus e contemplar a fiel realização de suas promessas. Reveste-se a palavra de Deus de caráter duradouro de eternidade: ela permanece irrevogável e infalível. Por outro lado, fixando-se, corre o risco de perder um tanto do dinamismo que tivera nos profetas; será preciso também atualiza-la sempre, aplicando-a à novas situações históricas,numa releitura constante que por si mesma será um aprofundamento.
3. Valor Noético e dinamismo da palavra de Deus
O esboço de historia da revelação já nos dá uma idéia sobre o sentido e o valor da palavra de Deus em Israel. Se é contestada a etimologia do termo dabar[3], seu uso dá-nos a conhecer seu alcance preciso. Dabar é “o que sai da boca” (Num 30,13) ou “dos lábios” (Jer 17,16) do homem, mas que tem sua fonte no coração. O dabar exprime, exterioriza o que o homem já proferiu em seu coração (Gen 17,17; Sl 14,1) ou que lhe vem ao coração (Jer 3,16; Is 65,17), ou ao seu espírito (Ez 11,5;20,32). A palavra não é, pois, a simples expressão de idéias abstratas; está carregada de sentido, tem um conteúdo noético que vem da concentração do coração sobre um objeto ou de pensamentos que dele se apossam, traduzindo ao mesmo tempo um estado de alma, que de algum modo impregna a palavra pronunciada, articulada. Pedersen tem razão quando afirma que “a palavra... é a expressão corporal do conteúdo da alma...; por detrás da palavra subsiste a totalidade da alma que a criou. Se quem proferiu a palavra é uma alma enérgica, então sua palavra exprimirá mais realidade que a de uma alma fraca. Quem dirige uma palavra a outro, faz nascer um pouco de sua própria alma na alma do outro”[4]. Por isso a palavra é eficaz, agindo como um prolongamento da energia física de quem a proferiu.
Para Israel a palavra tem duplo valor: noético e dinâmico. É expressão de pensamento, intenções, projetos, decisões; é discurso inteligível; esclarece o sentido dos acontecimentos; ela “nomeia” as coisas, pois o nome é a realidade enquanto inteligível. Por outro lado, é uma força ativa, um poder que realiza o que significa; opera o que o homem medita e decide em seu coração. Palavra de desejo, de promessa, de preceito, permanece sua ação enquanto dura o processo que desencadeou. Sua eficácia é tanto maior, quanto mais potente a vontade que lhe deu origem (como a dos reis, de Deus) ou mais profunda a fonte de que jorrou (amor, ódio). A palavra libera uma energia que não poderá ser recuperada: sua eficácia aparece principalmente nas mudanças de nome que determinam uma nova atribuição ou vocação (Gen 27; Jz 17,1-2; 2Sam 12,1-8; Num 5,12-13). O realismo da palavra é confirmado ainda pelo fato de dabar designar não apenas a palavra, mas também a coisa, a realidade, o acontecimento que ela suscita (Gen 22,1;24,66; 2Rs 11,41). Em resumo, a palavra é uma força atuante cujo dinamismo se fundamenta no dinamismo mesmo de quem a pronunciou. Mal se distingue da pessoa, cujo modo de ser e de agir ela é. Por isso é reveladora. Ninguém fala sem se revelar.
Assim a palavra de Javé, é ao mesmo tempo noética e dinâmica; discurso do Deus de verdade e ato salvador do Deus vivo; anúncio e realização da salvação; luz e poder. A palavra de Deus cria o mundo, impõe a lei, suscita a historia; a mesma palavra manifesta ao homem a vontade de Deus, seu desígnio salvífico. A palavra de Deus realiza infalivelmente o que ela diz. Envia-a Deus como se envia um mensageiro vivo e está atento para que se cumpra. A palavra de Deus permanece para sempre, fiel e eficaz.
4. Revelação cósmica e revelação histórica
Só tardiamente a reflexão teológica de Israel se ocupa com a palavra criadora (se bem que a idéia da criação possa ter surgido e circulado muito antes de aparecer nos textos sagrados). Principalmente através da historia é que Israel conhece Javé, quando no Egito experimentou seu poder libertador. Meditando continuamente sobre esse poder ilimitado de Javé, que utilizava os elementos naturais na salvação de seu povo (pragas do Egito, travessia do mar, teofania do Sinai), chegou à crença na criação, após maturação orgânica e homogênea influenciada pelo meio ambiente. Compreendeu Israel que o mesmo Deus que o suscitara do nada da escravidão, também do nada fizera surgir o cosmos. Sua soberania é universal. Gen 1 afirma que Deus tudo criou por sua palavra: dá nome aos seres, e a seu chamado eles surgem do nada; a palavra de Deus dá-lhe existência e subsistência. O salmo 33 é ainda mais expressivo: “Uma palavra do Senhor criou os céus, e um alento de sua boca a todos ornou... porque ele diz, e é criado, ele ordena e tudo existe” (Sl 33,6.9). uma vez que a criação é o que foi dito por Deus, ela é também revelação. Os seres são um eco da palavra daquele que os nomeou, manifestam sua presença, sua majestade, sua sabedoria (Sl 19,2-5; Jó 25,7-14; Prov 8,22-31; Eclo 42,15-43, 33, Sab 13,1-9). Deus aparece como que velado numa nuvem (Ex 13,21), abrasador como fogo ardente (Ex 3,2; Gen 15,17), atroante na tempestade (Ex 19,16; Sl 29,2ss), suave como a brisa leve (1Rs 19,12ss)[5]. E ainda mais: a fonte sacerdotal, que repensa a criação em termos litúrgicos, vê o universo como a expressão da vontade de Deus que, pelos astros e estações, regula os tempos litúrgicos, os sábados e as festas (Gen 2,2-3). Também por sua palavra governa Deus os fenômenos da natureza: a neve, a geada, os ventos (Sl 107,25; 147,15-18; 148,8; Jó 37,5-13), as águas do abismo (Is 44,27; 50,2). As suas ordens astros e elementos combatem por Israel (Sl 46,7; 106,9-12; 107,25). Afora a revelação primitiva narrada nos primeiros capítulos do Gênesis, a revelação histórica (para distingui-la da cósmica) começa com Abraão, Moisés e os profetas. Torna-se então a palavra plenamente inteligível. Dirige-se Deus ao homem, interpela-o, torna-o participante de seu desígnio, fala-lhe. Torna-se a revelação mistério de um encontro pessoal entre o Deus vivo e o homem. A Lei e a palavra profética são as formas privilegiadas dessa revelação.
A palavra, quando se impõe às coisas, é criadora; quando se impõe aos homens, torna-se lei. As “dez palavras” do Sinai (Ex 34,28; Dt 4,13;10,4), pronunciadas por Javé sobre a montanha, por entre fogo, constituem uma revelação da vontade do Deus da Aliança; Javé afirma-se então como o Senhor. O termo palavra aplicada aos costumes do Código da aliança (Ex 20,22-23,19), significa que tudo na vida cotidiana dos hebreus está submetido à vontade de Javé e se passa na sua presença. O Deuteronômio depois aplica o termo palavra a todas as prescrições da Aliança, de tal modo que a palavra serve para designar toda a Lei mosaica (Dt 28,69). Por fim, o conjunto dos livros sagrados, principalmente a Lei, serão considerados como palavra de Deus. nesse estágio, a Lei absorve tudo: lei, sabedoria, profecia. Expressão da vontade divina, é o caminho de vida e de salvação (Dt 30,14;32,47;8,3). Conforme for aceita ou recusada será perdão ou julgamento, vida ou morte.
A revelação profética é a outra forma da revelação histórica. A expressão “palavra de Javé”, em 225 casos num total de 241, serve para designar a palavra recebida ou proferida pelo profeta. Devido à sua importância, essa forma de revelação exige um tratamento especial.
4.1. A revelação profética
A revelação do Sinai constitui sempre o bloco central da revelação; mas, se perdurou no Antigo Testamento, principalmente através da época dos reis e do exílio, se foi aprofundada e desenvolvida, foi mérito principalmente dos profetas. Quando retornam as leis e exigências da aliança, fazem-no de maneira tão vigorosa que nos dão a impressão de criar coisas inteiramente novas, como se fossem arautos de uma religião que transcende e quase se opõe à da Lei. É que eles têm uma fonte secreta. De fato, a autoridade e originalidade do profeta vêm de sua experiência privilegiada: ele conhece Javé, pois Javé lhe falou e confiou sua palavra. Foi admitido a uma intimidade toda especial junto de Deus: chamado a partilhar do seu conhecimento, seus desígnios, suas vontades, para interpreta-los junto aos homens. Semelhante aos anjos que participam do conselho divino (Jó 1,6;2,1; Zac 1,11ss), o profeta “assiste ao conselho de Javé” (Jer 23,18.22; 1Rs 22,19-23) que lhe revelou seus desígnios (Am 3,7). Conhece os segredos do altíssimo (Num 24,16-17), pois ouviu as palavras de Javé (1Sam 15,16). Possui a palavra de Javé que lhe falou.
Essa é a experiência fundamental do profeta. Nele está a palavra de Javé (Jer 5,13). Foi colocada em sua boca (Jer 1,9;5,14), ele a engoliu como um alimento (Ez 3,1-3). Diversas vezes repete Jeremias que na posse da palavra reside a diferença decisiva entre o verdadeiro e o falso profeta (Jer 23,16-31). “Assim fala Javé” é habitualmente a introdução da mensagem profética, ou: “ouvi a voz do Senhor” (Is 6,8), ou “assim me falou Javé” (Is 8,11; Jer 11,21;15,1), ou “meus ouvidos receberam esta revelação” (Is 22,14), ou: “veio a mim a palavra de Javé”[6]. Que essa palavra seja no profeta um pensamento como que repentino ou uma idéia lentamente formada, ela sempre lhe “é dada”, “veio a ele”. Vinda que é um acontecimento sobrenatural. A experiência da palavra produz no profeta a firme convicção de que está ouvindo uma palavra divina e não humana. Tem consciência de não ter criado essa palavra que nele está, mas dele não vem (Jer 1,4-10), e que tantas vezes, aliás, vai contra seus instintos e sentimentos naturais[7]. Diz Mowinckel: “O conhecimento especial de Deus, próprio aos profetas, consiste em terem recebido a palavra de Javé, conhecendo-lhe a vontade e os desígnios, e, portanto, a faceta de seu ser voltada para o mundo”.
O profeta recebeu a palavra não para guardá-la, mas para publicar e anunciar. É a boca de Javé (Jer 15,19; Ex7,1-2), como Aarão era profeta de Moisés cujas palavras proclamava (Ex 4,16). Jeremias é constituído profeta porque Deus o enviou e lhe pôs na boca suas palavras. O profeta é o arauto de Javé, escolhido, chamado para proclamar as palavras que dele recebeu e ouviu. É o homem da palavra (Jer 18,18). Está entre os homens como intérprete, autorizado por Deus, de tudo que acontece no mundo (Tempestades, cataclismos, penúria, prosperidades), na humanidade (pecados, mortes, obstinações) e na historia (derrotas, vitórias, sucessão de impérios). É preciso sublinhar o caráter objetivo e dinâmico da palavra. Javé dirige a palavra ao profeta: chega-lhe esta como realidade ativa, carregada da força que o próprio Deus lhe comunica. O primeiro efeito dessa palavra manifesta-se no próprio profeta que a recebe: é tomado por uma força de alegria extrema que o acomete de opróbrio (Jer 20,7-9), a palavra age como fogo devorador (Jer 20,8-9), como uma força irreprimível (Jer 6,11). Impossível escapar-lhe. Javé falou, o profeta deve testemunhar. Nele a palavra é como uma luz e uma energia. Foi essa a experiência de Amós (Am 3,8), de Jeremias (Jer 20,7-9), de Isaías (Is 8,11), de Ezequiel (Ez 3,14), de Elias (1Rs 18,46), de Eliseu (2Rs 3,15). O profeta está ligado a Deus por sua palavra.
A palavra de Deus, além da ação sobre o profeta, tem uma eficácia própria, independendo do profeta: um valor sacramental. Quando Javé lança sua palavra nada lhe pode barrar o movimento: segue seu caminho e realiza sua obra. Destruição, morte, fome, salvação, fuga de exércitos: tudo acontece segundo a palavra que é verdade (1Rs 15,29;16,12; 2Rs 1,17;7,16;9,26;10,17). A palavra do profeta, que é palavra de Deus em palavras humanas, participa dessa eficácia. Recebe Jeremias poder “sobre as nações e sobre os reis, para extirpar e abater, para destruir e demolir, para construir e plantar” (Jer 1,9-10; 1Sam 16,4; 2Rs 2,24). A palavra de Deus é como o martelo que despedaça as pedras (Jer 5,14;23,29), ou como a espada que mata (Os 6,5). Não é jamais estéril (Is 45,23;31,2). “Permanece perene” como o próprio Javé (Is 40,6-8). Não que seja uma força indomável. Deus continua sendo o Senhor e dirige-lhe os efeitos conforme seus planos; e esse plano revelado pouco a pouco é a salvação e a vida do homem. Por isso, principalmente no Antigo Testamento, Deus tem paciência, atende, deixa-se dobrar, perdoa e até mesmo se arrepende.
Campo de ação da palavra profética é a historia, da qual é criatura e intérprete. A revelação de Deus, com efeito, chegou ao povo hebreu pela experiência da ação divina em seu favor. Também a religião bíblica é essencialmente crença em fatos divinos, em intervenções de Deus na trama da historia humana. Tais fatos são principalmente os que marcaram o nascimento de Israel como nação: libertação do cativeiro do Egito, marcha pelo deserto, conquista da terra prometida. Por quarenta anos Javé caminhou com seu povo, conduziu-o como pastor. Só ele o protegeu, defendeu, salvou. Nesses acontecimentos apóia-se a fé de Israel, e seu credo consiste em recitá-los (Dt 26,5-10). Nos tempos seguintes, os profetas constantemente se referem a eles, seja para chamar Israel de volta à felicidade, à Aliança, seja durante o exílio, para anunciar um novo Êxodo, nova Aliança (Ex 36-37; Is 54-55).
A ação divina, que faz da historia uma obra de salvação ou de condenação, é duplamente o efeito da palavra: é a palavra de Javé que suscita e dirige os acontecimentos, como também é a palavra de Javé que lhes interpreta o sentido. Por sua palavra, antecipa-se Deus ao acontecimento, anuncia-o, pois Aquele que é o primeiro e o último sabe o que afinal acontecerá (Is 41,4;43,10;44,6;48,12). “Não, o Senhor nada faz sem revelar o seu segredo aos seus servos” (Am 3,7). Todas as etapas decisivas da historia de Israel foram precedidas pela palavra: criação (Gen 1,3), dilúvio (Gen 6,7), vocação de Abraão (Gen 12,1), vocação de Moisés e saída do Egito (Ex 3,14,30-31), marcha desde o Horeb até Canaã (Dt 1,6;6,2.18.31;3,1.27.28), vocação de Samuel (1Sam 3), realeza (1Sam 15,10;16,12), aliança com a dinastia de Davi na profecia de Nata (2Sam 7), divisão do reino de Israel (1Rs 11,31s), queda da casa de Acab (1Rs 21,17-24), o exílio (Jer 25,1-13), ruína de Jerusalém (Ez 1-23), retorno do cativeiro (Is 40,2;43,1-5; 44,21-23; 48,20-21). Para Israel, a historia é um processo que Javé dirige para um término que prefixou.
A palavra profética não apenas anuncia e suscita a historia, mas também a interpreta. Está o profeta imerso na historia de seu tempo e é na atualidade dessa historia que Deus lhe manifesta sua vontade e seu desígnio de salvação. O Deus do Antigo Testamento é um Deus de intervenções e o profeta é que as interpreta, percebe e proclama o seu valor salutar. Percebe o profeta o sentido divino dos acontecimentos e o dá a conhecer aos homens de seu tempo. Interpreta a história do ponto de vista de Deus. se a própria realização da salvação na historia já é palavra de Deus, seu conteúdo preciso torna-se inteligível apenas mediante a palavra do profeta. Revelação-acontecimento e revelação-palavra, são como que as duas faces da palavra de Deus. a historia da salvação é uma seqüência de intervenções divinas interpretadas pelo profeta. Para um israelita, narrar a historia é o mesmo que interpreta-la à luz do que Deus manifestou a seus confidentes. Foi através dos acontecimentos do Êxodo, interpretado por Moisés, que o povo hebreu conheceu Javé como o Deus vivo e pessoal, único, onipotente, fiel, que salva seu povo e com ele faz aliança para que, povo escolhido, lhe seja fiel na obra comum de salvação (Dt 6,20-24). Conseqüentemente, Deus, seus atributos, seus desígnios, se revelam, não abstrata, mas concretamente na história e pela historia. A mensagem de revelação está incorporada na historia. Há progresso no conhecimento de Deus, mas através dos acontecimentos que a palavra de Deus anuncia, realiza, interpreta.
4.2. Objeto da revelação
Podemos dizer que o objeto ou o conteúdo da revelação veterotestamentária é duplo: revelação do próprio Javé e revelação de seu desígnio de salvação. O Deus do Antigo Testamento revela-se inicialmente como um Deus vivo e pessoal, como Aquele que é (eficazmente), em oposição aos ídolos mudos e mortos. Como o Deus onipotente, senhor do cosmos e senhor das nações, que exige sejam obedecidas suas leis. Os profetas, aos poucos vão educando Israel para uma compreensão sempre mais profunda dos atributos divinos: Amós põe em evidencia sua justiça; Oséias, seu amor terno e ciumento; Isaias, sua grandeza e transcendência; Jeremias ensina uma religião mais interior; Ezequiel lembra as exigências da santidade de Deus; o Dêutero-Isaias leva para uma religião mais universalista. Ao mesmo passo que em Israel se percebe mais claramente a transcendência de Deus, mais também se percebe sua proximidade e sua intimidade. Porque o Altíssimo, o Deus três vezes santo e misterioso, é também um Deus que sai de seu mistério, que trava um diálogo com o homem: faz-se Emanuel e Esposo. Evolução patente no tema da Aliança, Entre o Deus transcendente e o Deus da Aliança, entre o Deus oculto e o Deus da palavra, há como que uma tensão constante que constitui, digamos, a dinâmica da revelação veterotestamentária. Ambos os pólos exercem igual atração. Resulta um delicado equilíbrio entre o Deus do mistério e o Deus da revelação. Da solução deste contraste é que resulta finalmente a harmonia do sentimento religioso do fiel do antigo Testamento.
O outro aspecto da revelação veterotestamentária é a salvação. Com efeito, a Aliança prende-se a um desígnio divino (a um mistério, como o dirá são Paulo) oculto até a plenitude dos tempos, mas cujos primeiros traços progressivamente os foi revelando Deus no Antigo Testamento. Uma promessa de salvação reluz desde o protoevangelho (Gen 3,15). Por ocasião do êxodo, o Deus que Israel conhece é um Deus que salva seu povo do cativeiro, combate a seu lado, entrega-lhe a terra prometida. Nasce a Aliança nesse clima de salvação. Posteriormente a idéia da Aliança se prolonga na idéia do reino. Pela profecia de Nata (2Sam 7,16), Javé conclui uma aliança eterna com Davi e sua dinastia. A experiência do reino, porém, como a da Aliança, acaba num fracasso. Pelo menos aparentemente. Pois Deus persiste em seu desígnio com uma continuidade misteriosa, manifestando no próprio fracasso uma nova dimensão da economia da salvação. Mesmo diante da infidelidade de Israel e de seus reis, Javé anuncia, pelos profetas, uma nova Aliança, um novo reino, um novo rei (Jer 11, 3.5;24,5-7; Ez 11,19-20; Jl 3,1-5; Zac 8,1-17;13,9; Is 2,3;11). Nos períodos de crise, é de um rei que Israel espera a salvação. Pensam alguns que o próprio Javé, sem nenhum rei humano, estabelecerá seu reinado; idéia que encontramos nos salmos do Reino (Sl 97;98; Zac 14,16). Segundo outros, a salvação virá com o misterioso filho de homem que vem sobre as nuvens do céu para receber investidura e missão.
Em alguns ambientes sacerdotais de Jerusalém e em Qumrân, espera-se um Messias de raça sacerdotal. Outros, finalmente, esperam a salvação pelo servo de Javé, profeta e rei, que salvará pelo sofrimento. Israel vive dessa esperança de uma salvação que virá.
4.3. Resposta do homem à revelação
Se Deus fala, o homem deve escutar. Não se recebe a revelação bíblica numa contemplação da divindade, como nos mistérios gregos e na gnose oriental, mas escutando a palavra. Nesta terra ninguém pode ver a Deus (Ex 33,20). Deus dá testemunho de si mesmo, pela palavra comunica-se ao homem, mas foge à visão. Em sua realidade profunda é sempre o Deus insondável, o Totalmente Outro: esquiva-se o seu mistério. Samuel responde a Deus que o interpela: “Fala, Senhor, que o teu servo escuta” (1Sam 3,10). Escutar indica a primeira atitude do homem ante a revelação: não de modo material e passivo, mas em disponibilidade totalmente ativa. A palavra ouvida deve ser assimilada pela fé e pela submissão, numa entrega de todo o ser, como o fez Abraão (Gen 15,6;24,7). Resposta à palavra deverá ser a docilidade do espírito e da conduta (Miq 6,8). Israel, pela revelação, conheceu a Deus, ou seja: foi admitido gratuitamente a uma comunhão de pensamento e vontade com Javé. Esse conhecimento exige como resposta de Israel um apego total a Javé pelos laços da fé, da obediência e do amor. Quem ouviu a palavra de Javé deve cumpri-la, vivendo segundo as exigências da Aliança. Foi essa a pregação constante dos profetas (Miq 6,8; Os 65,6; Jer 5,1-9;9,2-5;22,15ss). Conforme às mudanças de situação, deve o homem constantemente renovar essa fidelidade a Javé.
Revelação e fé são correlativas. A fé do Antigo Testamento, com efeito, corresponde exatamente ao tipo de revelação que lhe foi feita. No Antigo Testamento a revelação era essencialmente lei e promessa de salvação; a fé, principalmente obediência e confiança. Falando a Abraão, ordena-lhe Deus que abandone sua pátria, prometendo-lhe ao mesmo tempo uma numerosa posteridade (Gen 12,1-3;15,5-6). Deus empenha sua fidelidade ao mesmo tempo que dá sua lei ao povo de Israel (Ex 19,3-8). Desde então, para um hebreu, acreditar é obedecer e confiar; é reconhecer Javé como o único Deus Salvador de Israel, o que lhe deu a lei e prometeu a salvação; é aceitar a sua vontade e fiar-se em suas promessas. A fé em Maria, a flor do Antigo Testamento, é, pura obediência e pura confiança: obediência da serva do Senhor (Lc 1,38), confiança que exalta o Deus fiel a suas promessas[8].
4.4. Traços característicos da revelação
A revelação veterotestamentária tem traços específicos que a distinguem de qualquer outro tipo de conhecimento:
1º. A revelação é essencialmente interpessoal. Antes que manifestação de alguma coisa é manifestação de Alguém a alguém. É Javé ao mesmo tempo sujeito e objeto da revelação, Deus que revela e Deus revelado, Deus que se dá a conhecer e se faz conhecer. Javé, o deus vivo, estabelece com o homem relações de pessoa a pessoa. Alia-se-lhe como um Pai com seu servo; depois, progressivamente, como um Pai com seu filho, amigo com amigo, esposo com esposa. A palavra de Deus introduz o homem numa comunhão com Deus, para a salvação.
2º. A revelação bíblica é uma iniciativa divina. Não é o homem que descobre a Deus: é Javé que, antes, se manifesta, quando quer, a quem ele quer. Javé é liberdade absoluta. Foi ele quem primeiro escolheu, prometeu, fez Aliança. Sua palavra que contradiz a maneira humana e carnal de Israel julgar, faz brilhar ainda mais a liberdade e continuidade de seu desígnio. Manifesta-se ainda a liberdade divina na variedade de meios escolhidos para a revelação: a natureza, a existência humana, a historia; na variedade das pessoas escolhidas (sacerdotes, sábios, profetas, reis, aristocratas ou camponeses e pastores); na diversidade dos modos de comunicação (teofanias, sonhos, consultas, visões, êxtases, arrebatamentos); na diversidade dos modos de expressão ou de gêneros literários (oráculos, exortações, autobiografias, descrições, hinos, reflexões sapienciais).
3º. É a Palavra que dá unidade à economia da revelação. Essa primazia da palavra não é um postulado da fé, mas um fato perceptível pelo simples conhecimento histórico. As filosofias gregas e as religiões do período helênico procuram a visão da divindade. A religião do antigo Testamento, pelo contrário, é a religião da palavra ouvida. Deus revela e se revela pela palavra. Essa prevalência do ouvir sobre o ver é uma das características essenciais da revelação bíblica. Após o pecado, é pela fé na palavra que Deus traz a humanidade de volta à visão. Fala Deus ao profeta e envia-o para falar. O profeta comunica os desígnios e as vontades de Deus e o homem é convidado à obediência da fé. Mas, nem toda visão é excluída, pois, de algum modo e em graus diversos, a palavra já afasta os véus que obscurecem o espírito e preludia a visão. Se não chegam os homens até a intimidade do Mistério, pela palavra eles já podem, de algum modo, dele se aproximar. Notemos ainda que, se a palavra exige do homem mais atenção que a visão, ela indica um maior respeito da liberdade humana por parte de Deus: dirige-se ele ao homem, interpela-o, deixando-lhe a liberdade da aceitação ou da recusa. A palavra, que entre os homens é o intercambio mais espiritual, será também o meio por excelência para o intercambio espiritual entre Deus e o homem.
4º. Pela revelação o homem é posto em confronto com a palavra, uma palavra que exige fé e execução. O pecado, desde logo, será recusa-se a escutar, não responder aos apelos do Senhor, endurecer-se na resistência (Jer. 7,13; Os 9,17). Conforme for aceita ou recusada, a revelação será para o homem graça ou condenação, morte ou vida (Is 1,20). A sorte do homem dependerá da opção decisiva a favor ou contra a palavra. O objetivo, porém da revelação é a vida e a salvação do homem, sua comunhão com Deus (Is 55,2).
5º. A revelação é toda orientada para a esperança de uma salvação que há de vir. Toma impulso a partir da promessa feita a Abraão e tende para sua realização. Para o profeta o presente é apenas a realização parcial do futuro anunciado, esperado, preparado e prometido, mas ainda oculto. O presente não tem sentido pleno a não ser pela promessa, feita no passado, daquilo que será o futuro. Cada revelação profética marca uma realização da palavra, mas deixa, ao mesmo tempo, lugar para a esperança de uma realização ainda mais decisiva. O tempo bíblico não é, pois, tempo cíclico, mas linear: algo de novo acontece na historia sob a direção de Deus. a historia tende para a plenitude dos tempos, que será a realização dos desígnios de Deus no Cristo e pelo Cristo.
Considerações finais
A pesquisa que até agora fizemos possibilita-nos delimitar mais precisamente a noção de revelação veterotestamentária. Mostra-se-nos a revelação como a intervenção gratuita e livre do Deus santo e oculto que, progressivamente, se manifesta e torna conhecido seu desígnio salvífico de estabelecer uma aliança com Israel, e depois com todos os povos, para, afinal, realizar na pessoa de seu Ungido a promessa outrora feita a Abraão, abençoando em sua posteridade todos os povos da terra. Intervenção que se concretiza no âmbito da historia, relacionada com os acontecimentos da historia interpretados pela palavra dirigida aos profetas, numa comunicação que se revestiu de múltiplas formas. Em termos da mística profética, a revelação é a manifestação progressiva, em palavras, dos desígnios de graça de Javé que desposa seu povo, a humanidade toda, unindo-se-lhe para sempre na pessoa de seu Ungido. Agir esse conceituado como palavra de Deus que convida para a fé e a obediência; palavra de Deus que convida para a fé e a obediência; palavra essencialmente dinâmica, realização da salvação ao mesmo tempo que anúncio.
5. A revelação no Novo Testamento
A noção de revelação apresentada no Novo Testamento, maior complexidade e diversidade de tons que no Antigo Testamento. Entre ambas as Alianças deu-se um acontecimento de capital importância: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora a nossos pais, nos profetas; nestes últimos tempos falou a nós no Filho” (Heb 1,1). A Palavra intima de Deus, na qual totalmente se exprime e conhece tudo, fez-se homem em Jesus Cristo, tornou-se Evangelho, palavra de salvação para chamar o homem à salvação. Em Jesus Cristo, verbo encarnado, o Filho está presente entre nós. Em termos humanos que podemos compreender e assimilar, ele fala, prega ensina, atesta o que viu e ouviu no seio do Pai. O Cristo é o cume e a plenitude da revelação. Mistério inesgotável, cujo esplendor desvendam, revelam os escritores sagrados, cada qual se demorando num aspecto. A tradição sinótica descreve principalmente a economia da manifestação histórica do Cristo, ligando sua função de revelador a seu título de Messias, doutor e pregador. Os Atos apresentam os apóstolos como testemunhas e arautos do Cristo. São Paulo desenvolve a idéia da revelação a partir do tema do mistério e do Evangelho. A Epístola aos hebreus compara a economia de ambas as Alianças, exaltando as excelências da revelação em Cristo. Para São João, a função reveladora de Cristo radica-se na sua qualidade de Logos e Filho. As diversas tentativas de penetração no mistério são como os diversos ângulos de visão de uma só catedral, que permitem captar toda a realidade na sua unidade e complexidade.
5.1. O cristo como pregador
Pela sua pregação Cristo continua a tradição dos profetas, que eram os arautos de Deus, os mensageiros e interpretes de sua palavra (Ex 4,15-16; 7,1; Jer 1,9). Deus os envia para gritar aos ouvidos (Jer 2,2; Is 58,1), publicar, anunciar (Jer 4,5; 50,2; 1,14.17), proclamar o seu Dia, a sua vontade, suas intenções, promessas, ameaças. Jonas, arauto típico do antigo Testamento, prega (3,4) e como conseqüência Nínive decreta um jejum (3,5) e proclama a penitencia (3,7). João Batista, “o profeta do Altíssimo” (Lc 1,76-77), é a voz anunciada por Isaias (Is 40,3.6), que vai adiante de Javé anunciando sua chegada. Nele resplandece a palavra de Deus. sob a ação potente do Espírito “proclama um batismo de penitencia para remissão dos pecados” (Lc 3,3). É o arauto do Messias que vem (Mc 1,6-8; Mt 3,11-12; Lc 3,16-17).
Cristo inicia seu ministério à moda dos profetas e do Batista, pregando a Boa-nova do Reino, e a penitencia que introduz no Reino: “Começou Jesus a pregar e a dizer: convertei-vos, porque está próximo o reino dos céus” (Mt 4,17; Mc 1,14-15). Na sinagoga de Nazaré aplica a si mesmo as palavras do Dêutero-Isaías que mostram o Messias como profeta consagrado à evangelização dos pobres (Lc 4,18-19; Is 61,1-2). Em Mateus, Cristo da como sinal de sua autenticidade messiânica o fato de que “aos pobres é anunciada a Boa-nova” (Mt 11,5). Essencialmente sua pregação é o Evangelho do Reino ou do Reinado: Cristo anuncia a inauguração desse Reino cuja iminência fora anunciada pelo Batista (Mc 1,15).
Tendo reconhecido na pregação e nos milagres de Jesus o estilo dos grandes profetas, o povo o considera um deles. Exclamam as turbas após a ressurreição do filho da vivuva de Naim: “Surgiu entre nós um grande profeta” (Lc 7,16). Um, vêem nele João Batista; outros Ellias; outros, Jeremias ou alguns dos profetas (Mt 16,14). Os fariseus e sacerdotes tem medo de prende-lo, pois as multidões o consideram como um profeta (Mt 21,46). Os discípulos de Emaús falam de Jesus Nazareno como de um “profeta poderoso em obras e palavras” (Lc 24,19). Mais ainda, baseando-se em Dt 18,18, as turbas designam Jesus como o profeta esperado para o fim dos tempos (Mc 6,14s; 8,28; Mt 21,11). Conforme São João os que assistiram os milagres dos pães proclama: “Este é, na verdade, o profeta que deve vir ao mundo” (Jo 6,14).
Contudo, o Cristo quando fala de si mesmo não reivindica o título de profeta. Tgem consciência, sem dúvida, de sua afinidade com os profetas: como eles penetra os segredos de Deus (Mc 4,11), prevê, para si a sorte dos profetas (Mt 13,57; Lc 13,33). Como revelador, porém, pela excelência de sua pessoa, sobrepassa os profetas. É maior que Jonas (Mt 12,40), Moisés e Elias (Mc 9,2-10; Mt 17,1-13; Lc 9,28-36), Davi (Mc 12,35-37; Mt 22,41-46; Lc 20,41-44) e João Batista (Lc 7,18-23; Mt 11,2-6). Na parábola dos vinhateiros coloca-se acima dos profetas como o filho acima dos servos (Mc 12,1-12). Leva à perfeição a lei e os profetas (Mt 5,17). Ele não diz: “Assim fala Javé”, mas: “Eu, porém, digo-vos” (Mt 5,22.28.32).
O Cristo não somente prega, chama tembém outros a participar de sua missão: “E constituiu doze deles, para andarem com ele, e para os mandar pregar” (Mt 3,14). Envia-os “a pregar o reino de Deus e curar os enfermos” (Lc 9,2; Mt 10,7-8). Dá-lhes esse poder, já durante sua vida e principalmente após sua ressurreição: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15.20). o Evangelho não pode ficar oculto: “deve ser pregado a todas as gentes” (Mc 13,10), “em todo o mundo” (Mt 24,14). Os que acolherem a mensagem dos apóstolos serão salvos; os outros, condenados (Mc 16,16; Mt 10,14; Lc 10,12-17). Entre a pregação de Cristo e a dos apóstolos há continuidade.
5.2. O cristo como Filho do Pai
Se o Cristo é em si mesmo a mais alta manifestação profética possível, se ensina com tão grande autoridade, deve-se ao fato de ser ele o filho único, o herdeiro (Mc 12,6), a quem o Pai tudo confiou (Mt 11,27), e que o Pai envia depois de seus servidores, os profetas (Mc 12,6). Como um filho amado (Mc 1,11;12,6) ele chama a Deus “meu pai” (Mt 7,21;10,32-33;11,27;12,50). “...Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,25-27). Ninguém conhece com aquele conhecimento que é também experiência, a vida intima e profunda do Filho, senão o Pai; e ninguém conhece a vida intima, e profunda do Pai, senão o Filho. Ambos conhecem-se pelo simples fato de estarem face a face, como duas grandezas iguais e da mesma ordem. E ninguém pode participar desse mistério de conhecimento mútuo sem uma revelação gratuita. O Cristo, que é o Filho, é o perfeito Revelador do Pai; só ele conhece o Pai e seus segredos, cujo conhecimento comunica a quem bem lhe apraz”. Aos discípulos escolhidos “foi dado”, como uma graça, conhecer os mistérios do Reino dos céus (Mt 13,11; Mc 4,10-12).
Também o Pai revela o Filho: aos “pequenos”, que reconhecem sua indigência diante de Deus, ele revela o mistério da pessoa do Cristo; foi por revelação do Pai que Pedro reconheceu a Cristo pelo que é na realidade (Mt 16,17). Ambas as revelações completam-se: a do Pai faz acolher a de Jesus sobre o Pai e os mistérios do Reino. Em vão soa a palavra de Jesus se o Pai não dá às almas a compreensão do que ele diz. O Filho não pode ser reconhecido pelo que é sem uma luz concedida pelo Pai: graça recusada ao orgulho dos “sábios”. A aceitação da revelação divina é obra da graça.
5.3. Sinóticos: A fé, resposta do homem
O Novo Testamento se divide em:
1- Evangelhos sinóticos (os de Mateus, Marcos e Lucas);
2- Atos e Epístolas;
3- Escritos Joânicos (Evangelho de João, suas Cartas e Apocalipse).
A revelação de Jesus Cristo se dá, de fato, na sua própria Pessoa, com a sua vinda ao mundo, nascendo, sofrendo, morrendo e ressuscitando.
Mas, tal aparecimento real do Messias, em carne e osso, ficaria incompleto, se Ele não se revelasse, por suas palavras, explicando o sentido de seus gestos e de sua vida. Certo que para as turbas Ele se vela num “segredo messiânico”, pois, do contrário, seria arrebatado pela multidão que o faria um rei temporal, frustrando-se, assim, o plano divino da redenção pela cruz. Mas, embora velasse a sua Pessoa e encobrisse a mensagem com parábolas e símbolos (que, aos poucos, pedagogicamente, Ele ia-se mostrando, até revelar-se totalmente, inclusive declarando abertamente ao Sinédrio ser Ele o Cristo, o Filho de Deus (Mt 26,63-64).
Os apóstolos, introduzidos por Cristo no mistério do Pai e do Filho, acolheram com fé sua palavra. Resposta condizente com a pregação da Boa-nova é a fé (Mc 16,15-16). São os homens convidados a escutar e compreender (Mt 13,23), isto é, a aceitar na fé a palavra de Deus e viver de acordo (Mc 4,20; Mt 7,24-27; Lc 6,47-49; 8,21;11,28). Cristo faz a oposição entre os que ouvem a palavra e a põem em pratica e os que ouvem sem passar a vive-la: casa alicerçada sobre rocha e casa alicerçada sobre areia (Mt 7,24-27).
Para muitos, infelizmente, a palavra é estéril (Mc 4,15-19). Com efeito, Deus revela-se de forma tão desorientadora que a revelação se pode tornar para os homens pedra de escândalo, ocasião de incredulidade. Os habitantes de Nazaré rejeitam a Cristo por que conhecem sua origem modesta (Mc 6,3). As palavras de Cristo sobre o perigo das riquezas (Mc 10,23-27), o Messias sofredor (Mc 8,31; 9,31), são incompreensíveis até para os discípulos. A sua atitude ante os costumes judaicos (Mc 7,1ss; Lc 11,38-40), ante o sábado (Mc 3,1-6; Lc 13,10-17; 14,1-6), seu relacionamento com os publicanos e pecadores (Mt 11,19; Lc 7,34; Mc 2,16), sua pretensão de perdoar os pecados (Mc 2,5s; Lc 7,48), sua morte na cruz (Mc 15,29-32): são outras tantas pedras de tropeço.
Cada qual será julgado por sua atitude diante da palavra. Sendo a revelação anuncio de salvação, coloca os homens diante de uma opção da qual depende sua salvação ou condenação: “...pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem não crer será condenado” (Mc 16,15-16). O anuncio do Reino está, pois, ligado ao apelo à conversão, ou seja, a uma volta completa de todo ser a Deus. jesus assim começa sua pregação: “...está próximo o Reino de Deus; convertei-vos e acreditai na Boa-nova” (Mc 1,15; Mt 3,2; 4,17). Tiro e Sidônia, no dia do juízo, serão julgadas com menos severidade que as cidades da Galiléia que aos milagres de Cristo opuseram sua recusa (Mt 11,20-24; Lc 10,13-15). Erguer-se-ão os ninivistas para condenar os judeus que rejeitaram quem é maior que Jonas e Salomão (Mt 12,41; Lc 11,31). No dia do julgamento os pregadores testemunharão contra os que não quiseram escutar sua mensagem (Mc 6,11; 13,9; Mt 10,15; Lc 10,12).
Considerações finais
Na tradição sinótica, portanto, Cristo é o Revelador enquanto proclama a Boa-nova do Reino dos céus e ensina com autoridade a palavra de Deus. Afinal, se ele revela, é por ser o Filho que conhece os segredos todos do Pai. Quando Cristo tiver terminado sua obra, os apóstolos deverão, por sua vez, revelar o que o Mestre lhes confiou; em outras palavras, deverão pregar o Evangelho da salvação, ensinar, convidar os homens à fé. A fé, dom de Deus, revelação do Pai, é a resposta do homem à pregação do Evangelho. O conteúdo essencial da revelação é a salvação oferecida à humanidade sob a imagem do Reino de Deus, anunciado e instaurado por Cristo. Chegou o tempo à sua plenitude: em Jesus Cristo está presente e atuante o Reino de Deus. O Cristo é, ao mesmo tempo, quem anuncia o Reino e aquele em quem o Reino se realiza.
5.4. Atos: a fé resposta do homem
Os Atos dos Apóstolos, narram a revelação que vai se espalhando pela Igreja em todas as partes do mundo então conhecido, sob a ação do Espírito Santo, que, desde o dia de Pentecostes, foi revelando aos Apóstolos todo o sentido da vida cristã.
A resposta conveniente ao querigma e ao testemunho é a fé. Os Atos descrevem o aumento continuo dos crentes sob a ação da palavra (At 2,41; 4,4; 5,14; 6,7; 9,42; 11,21; 13,43. 48; 14,1). Na origem da fé está a pregação que lhe apresenta seu objetivo (At 11,20-21). Crer, é “acolher a palavra” (At 2,41; 11,1), a “Boa-nova do Reino” (At 8,12), a “Boa-nova do Senhor Jesus” (At 11,20), a “Boa-nova de Jesus” (At 8,35). Pedro foi escolhido para que dele ouvissem os pagãos a “palavra da Boa-nova e cressem” (At 15,7). Paulo e Barnabé, em Icônio, “falaram de tal maneira que grande multidão de judeus e gregos abraçaram a fé” (At 14,1). Muitos coríntios “prestando ouvidos, creram e foram batizados” (At 18,8; 17,11-12.34;13,48).
A fé, segundo os Atos, é algo de global: é uma absoluta e total adesão ao Cristo: é a fé no Senhor Jesus (At 16,31), no Senhor Jesus Cristo (At 9,42;11,17), em o nome de Jesus (At 3,16). É doação ao Cristo: aceita-o totalmente, com tudo que isso implica. Comporta também uma “conversão”: quem acredita no Senhor, converte-se (At 11,21).
A fé não é simples obra humana. Ao mesmo tempo que ressoa externamente o apelo de uma pregação amplificada pelos sinais que a acompanham e credenciam como divina, internamente age Deus para torna-la assimilável à alma. O apóstolo prega, mas internamente é Deus que pela sua graça dá a possibilidade de acolher a palavra pela adesão da fé. Lídia ouvia a pregação de Paulo: “O Senhor abriu-lhe o coração de sorte que aderiu ao que Paulo dizia” (At 16,14). A partir de Pentecostes, os apóstolos e o Espírito, a Igreja e o Espírito, colaboram para o aumento da Igreja (At 9,31). O mistério do crescimento da Igreja é fruto da palavra da pregação fecundada pelo Espírito. Isso porque o Cristo, fazendo os apóstolos suas testemunhas e mensageiros, juntou à deles a missão do Espírito (At 1,8).
O drama está em que o homem pode fechar-se em seus caminhos e resistir à palavra: como o fariseu que voluntariamente se faz cego (At 4,16) e tampa os ouvidos para não ouvir (At 7,57), ou o grego que zomba do mistério (At 17,18.32), ou o devasso que resiste à fé (At 26,28), ou o governador que sem pureza suficiente de alma nada vê além de seus interesses (At 24,25-26), ou o judeu que aceita o universalismo do plano divino (At 14,2). A auto - suficiência, seja de natureza religiosa, filosófica ou cultural, faz nascer o desprezo, o desdém, a desatenção. O apelo divino exige uma atitude de aceitação. Cornélio (At 10,1-2), lídia (At 16,14), o procônsul Sérgio Paulo (At 13,7-12): todos eles ouvem, acolhem, obedecem. A palavra divina põe a descoberta o coração do homem forçando-o a se julgar. Trágica opção que salva ou condena. Drama de luz e trevas desencadeado pela vinda e encontro de Cristo.
Considerações finais
Os Atos descrevem a atividade apostólica como uma continuação da obra de Cristo. Os apóstolos ouviram-no falar, pregar, ensinar, revelar (tradição sinótica). Dele receberam a missão de atestar sua ressurreição e sua obra, pregar, ensinar o que ele prescrevera e ensinara. Fiéis à sua missão, apresentaram-se como testemunhas do Cristo ressuscitado, Messias e Senhor; pregaram o Evangelho da salvação, anunciaram a Boa-nova, ensinaram a doutrina do Mestre. Sua função era a de testemunhas e arautos. Seu depoimento constitui o objeto de nossa fé. A revelação confiada à Igreja é esse testemunho apostólico que nos convida a crer que o Cristo disse e fez. A fé, resposta a essa pregação, é obra divina, despertada pelo Espírito que interiormente age e fecunda a palavra externamente ouvida.
5.5. São Paulo
As Epístolas não visam a divulgar as palavras e ditos do Senhor Jesus, como fazem os Evangelhos, mas tem por fim expor a teologia da Pessoa de Jesus Cristo, com sua morte e ressurreição.
São Paulo para penetrar no âmago da idéia de revelação usa as categorias de mistério e de Evangelho. Ele é apóstolo para anunciar a Boa-nova do mistério revelado por Deus.
O mistério Paulino
A teologia de São Paulo é uma soteriologia, cuja intuição fundamental se exprime com o conceito mistério. Principalmente nas epístolas do cativeiro é que o termo aparece em toda sua plenitude: indica, então, o plano divino da salvação manifestado e realizado pelo Cristo. Essa significação, contudo, já aparece em 1Cor 2,7-8 e Rom 16,25. na Epístola aos coríntios evidencia são Paulo o caráter “misterioso” da sabedoria que presidiu a economia da salvação: sabedoria secreta, oculta em Deus e totalmente sobrenatural, cujo objeto são os bens esplendidos que Deus destinou para seus escolhidos. Na Epístola aos romanos, concentra-se sua atenção na participação dos gentios, pela fé, nesses bens (Rom 16,25-27). Os pagãos outrora estavam como que banidos da salvação, reservada aos judeus. O desígnio divino de salvação também a eles, de chamá-los “à esperança da gloria”, pela união com Cristo, finalmente foi revelado (Col 1,25-28). O mistério, agora desvendado, é que “os gentios são co-herdeiros e membros do mesmo corpo e co-participantes das promessas em Cristo Jesus por meio do Evangelho” (Ef 3,6). O capítulo primeiro da Epístola aos efésios amplia ainda mais essa visão: o mistério é a reunião de tudo em Cristo, a submissão de todos os seres ao Cristo, “as coisas que estão no céu e as que estão na terra” (Ef 1,10). Reunindo os elementos desses diversos textos, podemos dizer que o mistério, de que fala Paulo, é o plano divino da salvação,oculto desde toda a eternidade e agora revelado, pelo qual Deus estabeleceu a Cristo como o centro da nova economia, constituindo-o, pela sua morte e ressurreição, único princípio de salvação tanto para os gentios como para os judeus,cabeça de todos os seres, anjos e homens. É o plano divino total (encarnação, redenção, eleição para a glória) que em última análise se concentra no Cristo, com suas riquezas insondáveis (Ef 3,8), seus tesouros de sabedoria e ciência (Col 2,2-3). Concretamente o mistério é o Cristo (Rom 16,25; Col 1,26-27; 1Tim 3,16). O mundo, criado na unidade, pelo Cristo Salvador e Cabeça, volta à unidade. Assim pois, inicialmente, ao descrever o mistério Paulo acentua a vocação dos gentios; em seguida, nas epístolas do cativeiro, o mistério passa a ser principalmente Cristo e a participação no Cristo. Recapitula-se tudo no Cristo: na sua manifestação, nos bens que representa, no caminho que nos traça para Deus[9].
5.5.1. As etapas na revelação do mistério
Pode-se considerar o mistério em diversos planos: no plano da intenção (o mistério de Deus); no plano da realização, no Cristo e pelo Cristo (o mistério do Cristo); no plano do encontro pessoal (o mistério do Evangelho, da palavra, e da fé); no plano da sua extensão à humanidade (o mistério da Igreja). Faz-se a revelação do mistério em etapas que correspondem a esses diversos planos e traçam a história da salvação.
Na fase inicial, o mistério está oculto em Deus: segredo de infinita sabedoria (1Cor 2,7), envolto em silêncio desde a eternidade (Rom 16,25), oculto às gerações passadas (Ef 3,5; Col 1,26), oculto mesmo aos espíritos celestes (Ef 3,9-10). Sabedoria inacessível, conhecimento reservado.
Mas, “agora”, o mistério outrora oculto está manifesto, revelado (Rom 16,25; Col 1,26). Pela vida, morte e ressurreição do Cristo o mistério entrou em sua fase de realização; em Jesus Cristo cumpre-se e ao mesmo tempo revela-se o desígnio salvífico de Deus (Ef 1,7-9); o mistério torna-se acontecimento da historia (1Tim 3,16). Segundo a divina economia, o mistério é inicialmente comunicado a testemunhas privilegiadas: os apóstolos e profetas (Ef 3,5; Col 1,26). São eles os mediadores e os arautos do mistério (Ef 3,5). Tornam-se, por sua pregação, o alicerce da Igreja, cuja pedra angular é o Cristo (Ef 1,22-23; 2,20-21). Paulo faz parte desse grupo privilegiado: é “ministro da Igreja” (Col 1,25-26), e na revelação do mistério tem um papel de primeiro plano. O mistério, no que se refere aos gentios, foi-lhe revelado de forma especial: “A mim, sim, ao mais pequenino de todos os santos, foi concedida esta graça de anunciar aos gentios as incompreensíveis riquezas de Cristo, e de expor à luz, a dispensação do mistério” (Ef 3,8-9). Foi chamado por Deus e “posto à parte” (Rom 1,1) para ser “pregador e apostolo..., doutor dos pagãos na fé e na verdade” (1Tim 2,7), “sacerdote do Evangelho de Deus, para que os pagãos se tornem oferenda agradável, santificada no Espírito Santo” (Rom 15,16). Em vista dessa vocação, recebeu uma altíssima inteligência do mistério (Ef 3,3-4).
Revelado a testemunhas escolhidas, o mistério é dado a conhecer a todos os chamados à Igreja. O encargo dos apóstolos é proclamar o conteúdo do mistério ou Evangelho. São Paulo estabeleceu uma equivalência “concreta” entre Evangelho e mistério (Rom 16,25; Col 1,25-26; Ef 1,9-13;3,5-6). Em ambos os casos temos a mesma realidade, isto é: plano divino de salvação considerado porém, sob ângulos diversos. Sob um aspecto, é um segredo, desvendado, revelado, manifestado, transmitido ou comunicado; sob outro, é a Boa-nova, uma mensagem anunciada, proclamada. Dá-se a conhecer o Evangelho como se comunica o mistério; as pessoas podem ter parte no Evangelho (Ef 3,6) da mesma forma como podem participar no mistério (Col 1,27). Plano divino oculto e revelado, plano divino proclamado: Evangelho e mistério tem o mesmo objeto e conteúdo. Objeto duplo: soteriológico, isto é: a economia da salvação pelo Cristo (Ef 1,1-10), e escatológico, ou seja: a promessa da glória com todos os bens destinados aos escolhidos, frutos da cruz e da morte do Cristo (Col 1,28;1Cor 2,7; Ef 1,18). O mistério notificado aos homens pela pregação e pelo evangelho vem a ser o plano da salvação levado ao último estágio do acontecimento pessoal.
A Boa-nova da salvação é chamada por São Paulo de Evangelho, simplesmente (1Tes 2,4), ou de o “Evangelho de Deus” (Rom 1,1;15,16; 2Cor 11,7; 1Tes 2,2.8-9), pois Deus é seu autor e seu objeto[10], ou, como o mesmo sentido, “o Evangelho de Cristo” (Rom 15,19-20; 1Cor 2,12;9,13;10,14; Gal 1,7; Flp 1,27), “o Evangelho de nosso Senhor Jesus” (2Tes 1,8), “o Evangelho da glória do Cristo” (2Cor 4,4).
Em vez de Evangelho, mas com o mesmo sentido técnico de mensagem cristã, Paulo usa também o termo palavra (Col 1,25-26; 1Tes 1,6), ou palavra de Deus (1Tes 2,13; Rom 9,6; 1Cor 14,36), ou palavra do Senhor (1Tes 1,8;4,15; 2Tes 3,1), ou palavra do Cristo (Rom 10,17). Com essa palavra, que é mensagem divina em lábios humanos, é sempre Deus que fala e interpela a humanidade (Rom 10,14). Paulo dá graças a Deus porque os tessalonicenses acolheram, mas, qual realmente é, palavra de Deus” (1Tes 2,13). Palavra que por ser divina, é ativa. É “palavra de salvação” (Ef 1,13). “Palavra de vida” (Flp 2,16), “palavra de verdade” (2Cor 6,7; Col 1,5; 2Tim 2,15), “palavra de reconciliação” (2Cor 5,19), não só porque tem por objeto a verdade, a vida, a reconciliação e a salvação, porque introduz na vida (Rom 1,16; Cor 1,21; 1Tes 2,13; Ef 1,13). É dupla a obra divina: ao mesmo tempo que a reconciliação do mundo pelo Cristo,Deus estabeleceu a “palavra de reconciliação” (2Cor 5,18-19). “Paralelamente ao que se faz pelo Cristo, aparece o que é feito pela palavra. Ambas as operações são obras salvíficas do Cristo”.
Sendo o mistério a reunião em Cristo dos judeus e dos gentios, num mesmo organismo de salvação, aparece a Igreja como o termo final do mistério, a brilhante realização da economia divina, sua expressão visível e estável. O plano da salvação é não apenas revelado, proclamado pelo Evangelho, mas também efetivamente realizado na Igreja. O estabelecimento objetivo da Igreja, que é a manifestação do mistério, revela às potencias celestes a infinita sabedoria do desígnio de Deus (Ef 3,10) e indica que chegou o tempo da submissão de todas as coisas ao Cristo (Col 1,16). Assim como no Cristo se torna visível o mistério de Deus, assim na Igreja se torna visível o mistério de Cristo.
5.5.2. Resposta do homem
É pela fé que se tem acesso ao mistério, ao Evangelho, à palavra. De fato, é pela fé que o homem reconhece como verdadeiro o plano da salvação, realizado por Deus na morte e ressurreição do Cristo, adere inteiramente a esse plano, se bem que desconcertante para a humana sabedoria (1Cor 1,17-30; 2,1-4). A pregação do Evangelho ou do mistério revelado tem por finalidade conseguir a “obediência da fé” (Rom 16,26; 2Cor 10,5). Fé que é a resposta específica do homem à palavra do Evangelho. “isso o que pregamos, isso o que acreditastes”, relembra Paulo aos coríntios (1Cor 15,11). Tendo ouvido a “palavra de verdade”, a “Boa-nova” de sua “salvação”, os efésios acreditaram (Ef 1,13). É pela fé na mensagem que os cristãos se abrem para a salvação.
A palavra exige ser escutada, acolhida, guardada. Seguindo a tradição sinótica e dos Atos, a Boa-nova destina-se aos homens que não se consideram auto-suficientes, conscientes de sua fraqueza e indigência, abertos para o dom que se lhes oferece. Não é possível a fé senão a quem esteja pronto a ouvir a palavra da verdade (Rom 10,18) e obedecer-lhe (Rom 10,16). A fé, para são Paulo, é a acolhida da palavra (Rom 10,16; Gal 3,5) e a obediência ao Evangelho (Rom 1,5; 16,26).
Adesão e submissão à mensagem evangélica que não seria possível de forma meramente natural. É preciso um dom da graça: uma “iluminação” que venha de Deus como a criação da luz no primeiro dia (2Cor 4,5-6), uma “unção” divina (2Cor 1,21-22), que despertem a fé nos corações dos que ouvem o Evangelho. A palavra de Deus não é simplesmente um enunciado de verdades; é principalmente uma apresentação da pessoa do Cristo, Senhor e Salvador, e do que ele significa para todo homem. A pregação do Evangelho é escândalo, pedra em que tropeçam (Rom 9,32-33; 1Cor 1,23; Gal 5,11), loucura (1Cor 1,18.21.23). Permanece velado (2Cor 4,4). Os incrédulos, os indóceis à verdade (Rom 2,8;10,21; 11,30-32; 15,31), sem ouvidos para escutar o Evangelho da salvação (Rom 11,7-10), estão a caminho da perdição (1Cor 1,18; 2Cor 4,3). Todos os que não acreditam, mas aderem à iniqüidade, serão condenados (2Tes 2,11). O Evangelho só exerce seu poder de salvação e de vida para aqueles que crêem (Rom 1,16-17; Gal 3,11; 1Cor 1,18.20; Flp 2,16; 2Tim 1,10). A pregação do Evangelho é, pois, desde agora o prelúdio da separação final.
Considerações finais
Segundo são Paulo, podemos pois definir a revelação como a ação livre e gratuita de Deus que, no Cristo e pelo Cristo, manifesta ao mundo a economia da salvação, isto é: seu eterno desígnio de reunir tudo no Cristo, Salvador e Cabeça da nova criação. A comunicação desse desígnio se faz pela pregação do Evangelho, confiada aos apóstolos e profetas do Novo Testamento. A obediência da fé é a resposta do homem à pregação evangélica, sob a iluminação do Espírito Santo; não é uma exigência tirânica de Deus, mas uma adesão amorosa ao plano de sua infinita sabedoria e caridade. A fé dá começo a um processo de crescimento contínuo no conhecimento do mistério que só atingirá seu termo na revelação de visão.
5.5.3. Revelação da Antiga e da Nova aliança na Epístola aos Hebreus.
O paralelo entre a revelação em ambas as Alianças apresenta-se desde o primeiro versículo: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus aos nossos pais, nos profetas; nestes últimos tempos, falou a nós no Filho, a quem conferiu o domínio de todas as coisas” (1,1-2). Evidencia esse versículo a autoridade da revelação do N. Testamento, e também a relação histórica entre ambas as fases da história da salvação. Entre ambas as economias há relação de continuidade (Deus falou), diferença (tempo, modo, mediadores, destinatários) e excelência (superioridade da nova economia).
Os elementos de continuidade entre ambas as revelações são Deus e sua palavra, sendo a palavra do Filho a continuação e a perfeição da palavra cujos instrumentos foram os profetas. A continuidade transparece nas próprias palavras: falou Deus. palavra que, sendo intervenção de Deus na historia para manifestar sua vontade e seu desígnio de salvação, é palavra de autoridade, que deve ser ouvida com atenção (Heb 2,1;12,25), crida (3,12-19;4,2-3;10,22.38-39;11;13,7-9), obedecida (10,36;11,8;12,9). A palavra de Deus no A. Testamento anunciava e preparava a palavra do Filho, mais eloqüente que o sangue de Abel (12,24).
Entre a revelação da antiga e a da Nova Aliança existe uma continuidade e semelhança, mas também diferença e superação. Principalmente diferença de época: o mesmo Deus, que fala outrora num passado já longínquo, falou-nos também nesta etapa final da historia em que vivemos, “no final destes dias”. Em segundo lugar, há diferença nos modos de revelação: palavra sucessiva, parcial, fragmentário no Antigo Testamento, trazendo cada comunicação apenas uma frase do discurso, não manifestando senão uma parte do desígnio de Deus, pelo contrário, palavra única e total do Filho em o Novo Testamento. Palavra multiforme, no Antigo Testamento, sob a forma de promessas, ordens, ameaças; teofanias terríveis ou familiares; oráculos, sonhos e visões, ritos e instituições. Essa multiplicidade de formas dissolve-se, em o Novo Testamento, na unidade da pessoa do Filho encarnado, que se exprime segundo os modos da carne, isto é, por gestos, palavras, ação. Há uma terceira diferença: os destinatários. No Antigo Testamento, Deus falara aos Pais, ou seja: ao povo eleito, aos nossos antepassados na fé, que nos transmitiram as promessas de que eram depositários. Agora, é a nós que Deus fala, a todos aos quais se dirige o Evangelho do Cristo, pregadores e ouvintes. Quarta diferença: os mediadores da revelação. De uma parte a multidão dos inspirados: os profetas e todos aqueles pelos quais Deus guiara seu povo. O próprio Deus falara neles, depositando neles sua palavra, usando-os como intérpretes. Doutra parte, só o Filho; Filho que se qualifica imediatamente como herdeiro de tudo, por quem Deus fez os séculos, irradiação de sua glória, efígie de sua substancia (Heb 1,2-3). Filho que é o mediador único da Nova Aliança, tanto no plano de revelação como do sacerdócio. Ele em pessoa é o Revelador único e definitivo. Dirá são João: “A Deus ninguém jamais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que está no seio do Pai” (Jo 1,18). É a pessoa do filho que, em última análise, constitui a superioridade da revelação nova sobre a antiga.
O tema da excelência da nova revelação reaparece na parenese (exortação) do capítulo 2,1-4, que, tendo uma colocação particular, continua na mesma linha da introdução. Lá, o paralelo é entre os profetas e o Filho; aqui, entre os anjos e o Senhor. É a revelação do Antigo Testamento, feita pelo intermédio dos anjos, e a revelação do Novo Testamento, feita pelo Filho e suas testemunhas. Para mais claramente marcar a mudança de economia, de um a outro testemunho, o autor opõe a palavra proclamada por anjos e a salvação proclamada pelo Senhor (Heb 2,2-3). O Cristo, de fato, trouxe-nos mais que uma palavra: a própria salvação inaugurada por sua pregação mesma. Salvação que, realizada e notificada pelo Senhor, nos foi atestada pelos ouvintes imediatos do Cristo (2,3; Lc 1,2), sendo o testemunho deles apoiado pelos sinais da intervenção divina, prodígios ou acontecimentos extraordinários, obras do poder de Deus, e pelos carismas visíveis da comunicação do Espírito (2,4). Assim está descrita toda a economia da revelação nova: a revelação é a palavra de salvação proclamada pelo Senhor ou Filho, recolhida e atestada por suas testemunhas imediatas, confirmada pelo próprio Deus com sinais e carismas.
Outros testos, finalmente, põem em realce o quanto a revelação veterotestamentária continua ainda presa ao plano cósmico, ou seja: ligada a um mediador que pertence ao mundo terrestre (Heb 12,21), a fenômenos cósmicos (montanha, fogo, trevas, tempestade; 12,18-21.25-26), a um templo cósmico e construído (9,1), cuja insuficiência os próprios ritos revelam (9,8-10). A nova revelação, pelo contrário, vem do céu (12,22-24), por um mediador celeste, Jesus (12,24), que inaugura “caminho novo e vivo”, através do véu de sua carne (10,20).
5.6. Jesus Cristo, Palavra de Deus e Filho de Deus em São João.
Nos Sinóticos, nos atos dos Apóstolos e nas epístolas de são Paulo, palavra de Deus é a designação que se dá à mensagem evangélica. A grande novidade de são João é a equação que estabelece entre Cristo, Filho do Pai, e o Logos. O Cristo é a Palavra eterna, subsistente, pessoal; realiza-se a revelação porque essa Palavra se fez carne para nos falar do Pai.
Já conhecia o antigo Testamento a Sabedoria e a Palavra. Em jó, Provérbios, Eclesiástico, e principalmente no livro da Sabedoria, a Sabedoria está junto de Deus: preside à criação e à organização do mundo (Sab 7-8); tudo vê, tudo penetra (Sab 9,11), tudo governa (Sab 8,1); instrui os homens (Sab 8,7;9,11) e assiste-os (Sab 9,10) promana de Deus, é seu reflexo e sua imagem (Sab 7,25-26). O antigo Testamento conhecia também a Palavra criadora (Sl 33,9) e reveladora, enviada à terra para revelar os segredos de Deus, a ele retornando uma vez cumprida sua missão (Is 55,10-11). Mas o Antigo Testamento não entendia (e dificilmente o poderia, pelo seu monoteísmo radicalmente distinta. Sob a ação do Espírito, são João reconheceu na pessoa do Cristo histórico essa Sabedoria e essa Palavra de Deus de que está cheio o Antigo Testamento. Jesus Cristo é a Palavra eterna de Deus, como criadora e reveladora, mas enquanto Pessoa. Em Jesus Cristo encontra sua perfeição plena a palavra de Deus que cria o universo, impõe a lei, anuncia a salvação e interpela a humanidade. Para João o Logos é uma Pessoa, que mantém com o Pai o mais intimo comércio, dele distinta, Deus, no entanto, como ele mesmo, Verbo de Deus, Palavra de Deus (Jo 1,1). Palavra que, encarnada entre os homens (Jo 1,14) é o Filho do Pai, o Monogenes, unigênito, como termo que é de uma geração plenamente fecunda. Toda a revelação refere-a João a esse Filho único que vive no seio do Pai (Jo 1,18) como a Palavra interior de Deus. é em Jesus Cristo que ela faz ouvir fora e entender pelo homem.
5.6.1. A Gesta do Logos
Apresenta-se o prólogo do Evangelho de são João como a Gesta do Logos, um resumo da historia das manifestações de Deus por sua Palavra. Podemos distinguir três etapas nessa economia. A primeira manifestação de Deus é a criação. “Tudo criaste com tua palavra” (Sab 9,1). Escreveu o autor de Sabedoria. São Paulo, por sua vez, afirma: “nele foi criado tudo que há...tudo foi criado por ele e para ele” (Col 1,15-16). Em são João encontramos o eco: “Todas as coisas foram feitas por ele, e, sem ele, coisa alguma foi feita” (Jo 1,3). Porque o mundo criado pelo Logos (e no Logos, pois Deus vê e concebe tudo em seu Logos que é a sabedoria de Deus), a Palavra está no mundo com seu poder e sua sabedoria. Sendo o mundo o que foi proferido por Deus, manifesta a presença e as perfeições invisíveis do Deus que fala. Deveriam, portanto, os homens reconhecer e glorificar o autor e artífice do mundo (Sab 13,1-9; Rom 1,18-23). Mas, de fato, o homem permaneceu surdo à mensagem da criação. Essa primeira manifestação de Deus foi um fracasso: “O Logos estava no mundo, e o mundo por ele feito, mas o mundo não o conheceu” (Jo 1,10)[11]. Por isso Deus escolheu um povo e se lhe manifestou pela Lei e pelos profetas; mas essa revelação, como a primeira, malogrou: “O Logos veio para sua casa e os seus não o receberam” (Jo 1,11). Finalmente, depois de ter falado pelos profetas, fala-nos Deus por seu Filho (Heb 1,1): “O Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14). “A Deus ninguém jamais o viu; manifestou-no-lo o Unigênito de Deus, que está no seio do Pai” (Jo 1,18). Jesus Cristo é a Palavra substancial de Deus, o Filho único do Pai. Realiza-se a revelação porque a Palavra se fez carne e assim se tornou mensagem divina, contando-nos em termos e proposições humanas os segredos do Pai, principalmente o mistério de seu amor por seus filhos. Três elementos fazem de Cristo o perfeito Revelador do Pai: sua preexistência como Logos de Deus (Jo 1,1-2), a encarnação do Logos (Jo 1,14), a intimidade de vida permanente do Filho com o Pai, antes e depois da encarnação (Jo 1,18). João dá à revelação o máximo de extensão e de significação justamente porque vê no Cristo a Palavra encarnada, o Filho que vive no seio do Pai. O Cristo está ontologicamente qualificado como o único revelador perfeito: sua missão de revelação baseia-se na sua própria vida no seio da Trindade, já é a Palavra e a Sabedoria de Deus, torna-se, na economia concreta da encarnação, fonte de luz e de verdade para os homens. Dá-nos assim são João a última palavra sobre a função de Cristo como revelador.
5.6.2. A revelação no vocabulário joanino
No Evangelho de João, nota-se, desde o inicio, que é o Verbo encarnado, o Filho de Deus que manifesta o Pai, a quem revelou aos homens (Jô 1,18) a ponto de, nas vésperas de sua partida, falar claramente e sem figuras (Jô 16,29).
Nem todos aceitam essa Luz. Muitos preferem as trevas (Jô 3,19ss). Mas, virá um dia em que Jesus Cristo se manifestará em sua glória, quando de sua vinda (1Jo 2,28). Então, no reino escatológico da outra vida, “seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é” (Jô 3,2), ou na frase mais conhecida de São Paulo: “então O veremos face a face” e das três virtudes teologais só permanecerá a maior delas: a Caridade (cf. 1Cor 13,12-13). Finalmente, o livro do Apocalipse, o último da Bíblia, que, por definição, é uma “revelação” (Ap1,1) orienta-se não mais para a vida terrestre de Jesus Cristo, mas para a sua manifestação final, terminando com o desejo patético “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22,20) encerrando-se, assim a revelação bíblica.
Desta visão preliminar, sintética da revelação, já se verifica ser ela sobrenatural, pois não é exigida pela natureza nem pode ser descoberta pela razão; histórica, pois é no desenrolar da história que Deus fala ao homem e ensina-lhe os ministérios do seu Ser divino e os destinos transcendentes do ser humano; progressiva, pois chegou-nos por etapas sucessivas, culminando com a vinda de Cristo, revelação total do Pai.
Para João o Cristo é a Palavra de Deus: essa novidade repercute na própria linguagem e provoca uma reorganização dos vocábulos. Com efeito, os termos que traduzem a visão interior de João prendem-se, em sua maioria, à idéia de revelação: palavra, testemunho, luz, verdade, glória, sinal, conhecer, saber, ver, manifestar, mostrar, dar a conhecer, ensinar, testemunhar, dizer, falar, interpretar.
Segundo os Sinóticos, Cristo ensina, prega e anuncia a Boa-nova do Reino. Em João, ele fala, testemunha: é o Filho que fala sobre o Pai (Jo 1,18), a Testemunha que declara o que viu e ouviu no seio do Pai. Por duas vezes no Apocalipse o Cristo é chamado Testemunha fiel (Apoc 1,5;3,14). A noção joanina de revelação prende-se, pois, à de testemunho. Testemunhar é afirmar a realidade de um fato, dando à afirmação toda a solenidade exigida pelas circunstâncias. Um processo, uma contestação, formam o contexto natural do testemunho. No testemunho estão implícitos dois aspectos que podem ser mais ou menos separados. Há em primeiro lugar uma comunicação referente a acontecimentos dos quais a testemunha tem conhecimento por excelência. Em segundo lugar, essa declaração geralmente é feita em função de uma pessoa determinada: a testemunha, com seu depoimento, toma partido a favor ou contra alguém. Em João, testemunhar inclui ambos os aspectos. Cristo ao testemunhar declara a experiência de realidades e fatos dos quais só ele tem experiência (principalmente da vida íntima do Pai e do Filho), e essa declaração tem caráter solene, jurídico[12]. O Cristo é a Testemunha perfeita e seu testemunho apresenta-se como depoimento público no vasto processo que o opõe ao mundo. Em favor de Cristo existem os testemunhos de João Batista (Jo 1,7), do Apóstolo (Jo 19,35;21,24), da Escritura (Jo 5,39), do Pai (Jo 5,32.37;8,18) e do Espírito (Jo 15,26). Os homens, contudo, preferem as trevas à verdade. Os judeus, que representavam o conjunto do mundo hostil, confrontados com Cristo rejeitam seu testemunho e julgam-se a si mesmos. O testemunho de Cristo faz a discriminação entre os homens (Jo 9,39).
Do mesmo modo, falar tem em João o sentido intensivo de testemunhar e caracterizar a palavra autorizada do Filho de Deus: “Eu, eu vos digo a verdade que ouvi de Deus” (Jo 8,40.26.38). Significa o texto que o Cristo proclama a verdade revelada; sua palavra é, de forma absoluta, a palavra de Deus que salva e que julga (Jo 12,48-49).
5.6.3.O Cristo, testemunha do Pai
O Cristo fala como Testemunha qualificada, pois é a Palavra de Deus (Jo 1,1-2) e o Filho do Pai (Jo 1,18); só ele conhece o Pai porque vem de junto dele (Jo 6,46; 7,29;8,55;16,27;17,8); conhece o Pai (jo 7,29) como o Pai o conhece (Jo 10,15), porque está no Pai e o Pai nele está (Jo 10,30;17,21.23); ele em Pessoa é a Luz (Jo 1,8;9,5) e a Verdade (Jo 14,6). Pode assim testemunhar sobre o Pai e sobre a missão de salvação que dele recebeu. Sua palavra é afirmação de quem viu e ouviu pessoalmente: “Nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não recebeis o nosso testemunho” (Jo 3,11). “Eu ensino o que vi junto do Pai” (Jo 8,38). “Aquele que me enviou é veraz e eu anuncio ao mundo o que dele ouvi” (Jo 8,26.40). “Aquele que vem do céu... dá testemunho de tudo que viu e ouviu” (Jo 3,32). Quando de sua paixão, Cristo declara diante de Pilatos: “Para isto é que vim ao mundo: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37), isto é: para proclamar a revelação definitiva recebida do Pai. São Paulo refere-se ao belo testemunho dado por Cristo ante Pilatos (1Tim 6,13); os homens, porém, não aceitaram seu testemunho (Jo 3,32;1,11). O essencial de seu testemunho é que o Cristo é o Filho do Pai, o Enviado do Pai, o Salvador do mundo e que, pela fé nele depositada, é que os homens poderão chegar à vida eterna (Jo 3,16;17,3; 1Jo 5,10-11). O testemunho pois é sobre o próprio Cristo, a natureza misteriosa de sua pessoa e sua missão salvífica.
Os apóstolos, por sua vez, eles que viveram na intimidade do Cristo, que estiveram com ele “desde o começo”, dão o seu testemunho sobre ele (Jo 15,27). João, que vira manar a água e o sangue, atesta a salvação realizada (Jo 19,35-37). Porque vira, ouvira, tocara o Cristo, dá o seu testemunho sobre o Filho, Salvador do mundo” (1Jo 4,14; Jo 20,30-31).
5.6.4. O Cristo, Deus que revela e Deus revelado
Para com a revelação e a fé, é inteiramente única a posição do Cristo. Porque é, em pessoa, a Palavra de Deus, o Filho do Pai, o Cristo é ao mesmo tempo o Deus que revela e o Deus revelado. Sua doutrina é de Deus, mas não como a do profeta que recebe a revelação e a anuncia. Em nosso caso, a revelação parte do Cristo ao mesmo tempo que do Pai. Cristo ensina a única religião agradável ao Pai (Jo 4,23), mas ao mesmo tempo ele é o objeto da revelação, o Deus revelado. Afinal, o que revela Cristo, senão o desígnio de Deus, isto é: o próprio Cristo, o Filho enviado pelo Pai Ijo 5,38), aquele em quem é anunciado e reconhecido o Deus verdadeiro (Jo 17,3)? O Cristo é pois, ao mesmo tempo, o Deus que fala e o Deus do qual se fala, quem revela o mistério e é o próprio mistério. Não apenas comunica a palavra e a verdade: ele é a Palavra e a verdade (Jo 1,1;14,5-6), é em pessoa o que ele ensina e proclama. Por isso são João pode dizer da doutrina de Cristo o mesmo que afirma de sua pessoa. Devemos crer no Cristo (Jo 1,12;10,26), receber o Cristo (Jo 5,43), vir ao Cristo (Jo 5,40;6,35.37.44.65;7,37), permanecer no Cristo (Jo 15,4.7). da mesma forma, devemos crer em sua palavra (Jo 5,24), receber suas palavras (Jo 12,48;17,8), aceitar o seu testemunho (Jo 3,11), permanecer em sua palavra (Jo 8,31.51). Tanto quanto a Pessoa de Cristo, a sua Palavra é vida e verdade (Jo 6,63;17,17). Ter fé em Cristo é ao mesmo tempo aderir a ele e a sua palavra. Crer é receber o Cristo (Jo 5,43), e ao mesmo tempo reconhecer a verdade divina (Jo 3,33) tendo por verdadeiras as afirmações de seu Enviado (Jo 3,36;14,10;16,27.30;20,31; 1Jo 5,10); é aceitar como verdadeiras a filiação divina do Cristo e sua missão de salvação.
Considerações finais
João entende a revelação como a Palavra de Deus feita carne, e por essa carne, palavra e testemunho formulados humanamente, dirigida imediatamente aos apóstolos e por eles a toda a humanidade, para atestar a caridade do Pai, que envia seu Filho entre os homens, para que, acreditando nele, tenham a vida eterna. A fé é a resposta ao testemunho exterior do Cristo e, ao mesmo tempo, à atração interior do Pai e ao testemunho do Espírito. Dimensão dupla da única palavra do amor de Deus.
Depois dessa pesquisa na tradição sinótica, nos Atos, São Paulo e São João, podemos agora tentar uma descrição da revelação tal como aparece nos escritos do Novo Testamento. A revelação é a ação, sumamente livre e amorosa, pela qual Deus, numa economia de encarnação, já de alguma forma iniciada no antigo Testamento (pela instrumentalidade da palavra profética), dá-se a conhecer em sua vida íntima e no desígnio amoroso que eternamente formou de salvar e reconduzir a si todos os homens pelo Cristo. Ação que se realiza pelo testemunho exterior do Cristo e dos apóstolos e pelo testemunho interior do Espírito que opera internamente a conversão dos homens ao Cristo. Esse testemunho do Cristo e dos apóstolos é ampliado e confirmado pelos sinais de poder. Dessa forma, pela ação conjunta do Filho e do Espírito, o Pai manifesta e realiza seu desígnio de salvação.
[1] Contudo, encontra-se sonhos no gênero apocalíptico (Daniel, Zacarias), quando então eles tem uma significação e se tornam também palavra.
[2] G. von Rad, Studies in Deuteronomy (London, 1956), p. 77.
[3] O. Procksch e E. Jacob dão-lhe o sentido radical de “estar por detrás e empurrar”. Diz Jacob: “le dabar pourrait être defini comme la projection em avant de ce qui est à l’arrière, c’est-à-dire lê passage à l’acte de ce qui est d’abord dans lê coeur” (teologie de l’Ancien Testament, p. 104). E O. Procksch diz: “O dabar é o pano de fundo de uma coisa, o sentido que lhe é proprio; é esse sentido que é expresso pela palavra... Cada palavra contém, não apenas um sentido, mas também uma energia” (Teologie dês Alten Testaments, p. 469). A seus olhos essa explicação justifica o aspecto noético e dinâmico da palavra.
[4] J. Pedersen, Israel, its Life and culture (London, 1946). P. 107.
[5] Israel, porém, não confunde Deus e a tempestade, Deus e a nuvem etc. a palavra de Deus nem sempre é inteligível, mas é sempre manifestação do Deus pessoal. A nuvem, a tempestade, o fogo, a brisa leve, manifestam a presença do Senhor e suas propriedades.
[6] É evidente que nessas expressões é preciso levar em conta as fórmulas redacionais; porem, já a sua freqüência é significativa. Os profetas afirmam que Deus lhes falou e que sua palavra chegou até eles. Devemos notar também que o termo palavra de Deus não se verifica sempre do mesmo modo, nem com a mesma intensidade. Na vida dos profetas há momentos privilegiados, quando a palavra de Deus apodera-se deles de forma mais intensa. O momento mais importante é o de sua vocação. Por várias razoes não podemos identificar sempre a palavra de Deus com revelações diretas e formais. Essas razoes são as seguintes: a) Os oráculos recebidos pelos profetas podem ter sido muito curtos, assim como também uma visão pode exigir uma longa explicação. b) Normalmente o profeta deve, ainda sob o impulso recebido, comentar a palavra de Deus. c) Às vezes se trata de nova tomada de consciência de verdades já conhecidas, em vista de situação nova. D) Acontece que ás vezes os profetas reelaboram verdades já comunicadas a outros profetas; um profeta pode depender espiritualmente de outro, como Jeremias de Oséias. Alguns tiveram discípulos que retomaram e explicitaram os oráculos do mestre. E) A palavra recebida atualiza-se muitas vezes por ocasião de fatos concretos, em função de acontecimentos da historia. A palavra do profeta ilumina a historia, seja voltado ao passado de Israel, principalmente sobre a eleição e a Aliança, seja estabelecendo uma relação entre a historia de Israel e a de outros povos, seja manifestando o escopo visado por Deus. quanto a isso, cf. C. Larcher, “La parole de Dieu em tant que révélation dans l’Ancien Testament”, em La Parole de Dieu em Jésus-Christ, pp. 56-58.
[7] S. MOWINGKEL, “La connaissance de Dieu chez lês prophètes de l’Ancien Testament”, Ver. D’hist. Et de phil. Rel., 22 (1942), 81-83. O critério subjetivo que garante ao profeta ter ele sido verdadeiramente objeto de uma comunicação divina é a própria experiência da palavra. Essa experiência impõe-se-lhe com força tal que ele, num julgamento intuitivo e imediato, reconhece a palavra e ao mesmo tempo a Deus como seu autor. Alguém fala nele, ao passo que ninguém fala nos falsos profetas (Jer 5,13;14,14;23;29,8-9; Ez 13,1-16). O critério é dado junto com a palavra. Sem raciocínio explicito, o profeta percebe no efeito em si produzido a causa divina; na palavra reconhece o seu autor. A origem divina da palavra não é deduzida, mas experimentada vivencialmente, de modo imediato, simultâneo.
[8] P. DEMANN, “Foi juive et foi chrétienne”, Cabiers Sioniens, 6 (1952), 89-103. quanto a isso, a fé do Novo Testamento apresenta mudança de acentuação. Permanece o aspecto de obediência, mas o desconfiança não se manifesta com a mesma intensidade. Em o Novo Testamento ansiava por uma salvação prometida, ainda obscura, objeto de esperança e de confiança. Com a vinda de Cristo, essa salvação é fato consumado. Desde então nossa fé tem um conteúdo explicito e atual: o Cristo é o Filho de Deus, enviado pelo Pai, que sofreu, morreu por nós, ressuscitou, está à direita do Pai, donde enviou seu Espírito. Tudo isso é objeto, não apenas de esperança e de confiança, mas objeto de conhecimento e de reconhecimento. Para o Novo Testamento, crer, é aceitar a pregação dos apóstolos referente a esses acontecimentos; a fé é aceitação do querigma cristão como verdadeiro (At 2,44;4,4.32;8,13). Em consequencia, pois, da vinda de Cristo, a fé do Novo Testamento tem caráter mais explicito e mais doutrinal que a fé do Antigo Testamento. Cf. J. Alfaro, “Fides in terminologia bíblica”, Gregorianum, 42 (1961), 504 – 505. Cf. também P. Grelot, Sens cbrétien de l’Ancien Testament, pp. 142-145.
[9] J. COPPENS, “Lê mystère dans la theologie paulinienne et ses parallèles qumrâniens”, em Littérature et theologie pauliniennes, p. 143. Em 1Tim 3,16, as etapas da historia do Cristo coincidem com as fasessucessivas do mistério. Assim como no mistério Deus medita um plano de salvação, manifesta-o aos homens e leva-os à gloria, assim também o Cristo preexistente foi manifestado pela carne, pregado e crido entre os homens, e finalmente volta glorioso aos céus. Cfr. C. SPICG, Lês Épitres pastorales, p. 119.
[10] Com efeito, o Evangelho é a revelação de Deus nosso Pai (1Tes 1,3; 2Tes 1,1; Rom 1,7), rico em misericórdia (Ef 2,4), que nos chama para seu reino e sua glória (1Tes 2,12). É o Evangelho do amor de Deus (1Tes 1,4). Nesse Evangelho Deus revela aos homens a eleição gratuita de que foram objetos e convida-os a se voltarem totalmente para ele (2Tes 2,13-16). Cfr. D. MOLLAT, “Évangile”, Dict. De Spir. 4: 1756.
[11] É a interpretação proposta por M. E. BOISMARD, em Lê Prologue de S. Jean, (Paris, 1953), p. 114. outros exegetas, porém, julgaram que nesse versículo está em questão o ministério histórico do Verbo encarnado. Segundo Spitta, Zahn, Loisy, a perspectiva histórica já começaria no versículo 4 do Prólogo; segundo B.Weiss, no versículo 5; segundo Heitmuller, Bernard, Buchsel, Holzmann, Harnack, W. Bauer, Lagrange, começaria no versículo 9. quanto a isso, cfr. R. Schnackenburg, “Logos-Hymnus und johanneischer Prolog”, Bibl. Zeitschrift, 1 (1957): 69-109.
[12] Encontramos em S. João todo um vocabulário tomado à linguagem jurídica: convencer, acusar, defensor, julgar, julgamento, testemunhar, testemunho. A obra de Jesus é apresentada num cenário de contestação e de defesa (I DE LA POTTERIE, “La notion de témoignage dans S. Jean”, Sacra Pagina,pp, 195-196).
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