INTRODUÇÃO
1 O Pai
Nenhuma crença ou religião tem um Deus como o nosso. Se formos analisar cada uma delas, veremos que o Senhor, nosso Deus, é o que mais se comunica, o que mais se torna disponível ao toque, ao contato, à sintonia. Nas religiões politeístas, por exemplo, o sentido da revelação das divindades é puramente naturalista e, como tal, sujeito a diversos aspectos, que podem variar conforme suas peculiaridades religiosas.
Mesmo nas religiões monoteístas, como o judaísmo, o islamismo e outras, de cunho protestante ou pentecostal de bases fundamentalistas, constata-se um Deus restritivo, castigador, sujeito a humores, de comportamento instável, que tanto perdoa como castiga e impõe, por meio de seus prepostos, proibições como não beber (alguns proíbem até refrigerantes gasosos), não cortar o cabelo, não usar calças compridas (para mulheres) ou não comer determinada comida.
Nosso Deus não é assim! Conforme A.M.Galvão:
Nosso Deus é um Deus revelado, que colocou toda a natureza e toda a criação nas mãos do homem, para delas usufruir com liberdade e respeito, sem maiores proibições ou ameaças, excerto naquilo que fere o amor, a fraternidade, a convivência entre os homens e a natureza, casa original do ser humano.
O Pai, na pedagogia trinitária, é aquele que gera. É a primeira pessoa da trindade, citado em primeiro lugar no “sinal-da-cruz” e a quem a piedade popular chama mais especificamente de Deus, reservando os termos Filho ou Jesus Cristo para a Segunda Pessoa e o Espírito Santo para a terceira Pessoa – embora todas sejam igualmente Deus, com poder, glória e majestade análogos.
Deus existe desde o “princípio” (cf. Gn 1,1; Jô 1,1), e essa existência se impõe como um fato fundamental que dispensa qualquer explicação. Desse modo, não tem origem nem devir. O Antigo Testamento ignora as teogonias, que nas antigas religiões, especialmente palestinas, explicavam a construção do mundo por meio da gênese dos deuses.
Na patrística encontramos, segundo Taciano (+ 192), um discípulo de São Justino, que afirmou existir em Deus dois logos (ou formas de comunicação). O primeiro, o logos proforikós, retrata sua relação para fora, com a criação (Diatesseron, II, 3).
Por ser “primeiro e último” (cf. Is 41,4; 44,6; 48,12; Ap 1,17), Deus, e no caso de nossa análise presente, o Pai, não tem que se apresentar. Impõe-se ao espírito do homem pelo simples fato de ser Deus. Conhecer a Deus é ser conhecido por ele (cf. Am 3,2) e descobri-lo na origem da própria existência. Fugir dele é ainda sentir-se perseguido por seu olhar (cf. Gn 3,10; Sl 138,7).
Mesmo assim, no episódio da “sarça ardente”, durante o cativeiro do Egito, ele se apresenta a Moisés, no inicio de um grande projeto libertário:
Eu sou, ajuntou ele, o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Moisés escondeu o rosto, e não ousava olhar para Deus (Ex 3,6).
Desse modo, não podemos dizer “Só pelo fato de um existir, não posso afirmar que Deus me conhece”, como se diz na relação com qualquer outra pessoa humana, mas “eu existo porque Deus me conhece”. Aí ocorre um nexo causal.
Por ser o Pai quem é, revelando-se por meio de Jesus Cristo e agindo pelo Espírito, dá a conhecer nitidamente sua personalidade (se é correto usar essa expressão), seus projetos e seus desígnios. Por pouco ainda que se saiba sobre ele, desde o instante em que é descoberto, sabe-se que ele quer algo de precioso e que sabe exatamente aonde vai e o que faz.
A absoluta anterioridade do Pai (junto com o filho e o Espírito) está expressa nas tradições do Pentateuco e de suas versões específicas. A tradição J (javista) põe em cena Yahweh (latinizado Javé) que, desde o início do mundo (Gn 2,4b), bem antes da já mencionada ocasião da “sarça ardente” (Ex 3,15), mostra-se ocupado em perseguir seu projeto: “Meu Pai continua agindo até agora...” (Jô 5,17).
A tradição P (Priester kodex, sacerdotal), pelo contrário, sublinha a novidade trazida pela revelação do culto a Deus a partir da Aliança no Sinai. Ao aproximar-se à era Cristã, Israel começa a adquirir a consciência de que Deus é Pai de seu povo e de cada um de seus fiéis. A designação de Pai é mais freqüente nos escritos rabínicos tardios, nos quais se encontra a fórmula “Pai nosso que estais nos céus...” tal e qual foi ensinada por Jesus a seus discípulos (cf. Mt 6,9).
O pai é aquele que gera (cf. Gn 1,27; 2,7), doador da vida (cf. Lc 1,35), amor por excelência (cf. Jô 3,16; 1Jo 4,8-16), rico em misericórdia (cf. Ef 2,4), libertador de seu povo (cf. Ex 3,7s) e cumpridor de suas promessas (Lc 1,55; At 13,33). A oferta do amor de Deus é gratuita. Ele não nos ama por causa de nossos “méritos”, mas porque ele é essencialmente amor e rico em misericórdia. O que salva é o amor de Deus.
Pelos atos de piedade o homem chega perto de Deus. São múltiplas e variadas as formas de piedade, como oração, boas obras, conversão, caridade, sacrifícios oferecidos como tal, recepção dos sacramentos e diversos atos de louvor e adoração. Por piedade define-se a vida cristã vivida, conforme o estado de cada um, de forma plena e fiel. Na prática da piedade, ainda que de forma imperfeita, o crente imita a Deus, e com isso revela ao mundo a fisionomia do Pai que está no céu.
Deus Pai é pleno de amor, capaz de, na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4) dar seu Filho para nos salvar e assim resgatar toda a criação decaída pelo pecado. Santo Agostinho afirma: “Ó feliz culpa de Adão, que com seu pecado ensejou a vinda de Cristo” (O Felix culpa!). Por mais que amemos a Deus ou se tenha amor por suas criaturas, é salutar recordar que ele nos ama muito mais, “e nos amou primeiro” (cf. 1Jo 4,19). O Pai se revelou assumindo nossa humanidade, na encarnação em Nazaré. Ali Deus se humanizou para que o homem se divinizasse.
No Novo Testamento há várias doxologias de ação de graças à Santíssima Trindade (2Cor 1,21s; Gl 4,6; Ap 1,4s), das quais destacamos a contida na Segunda epístola de São Paulo à Igreja da Tessalônica:
Nós, porém, devemos dar incessante graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, a quem desde o princípio Deus escolheu para salvar pela santificação do Espírito e pela fé verdadeira. Por meio de nossa evangelização, ele também vos chamou para alcançardes a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo. (2Ts 2,13s).
Em Santa Tereza de Ávila encontramos uma séria advertência a respeito da obrigação de amarmos a Deus:
As almas dos justos sabem e crêem que Deus sempre dá provas de maior amor. Quem se recusa a crer jamais terá a experiência desse amor. Isso posso garantir. O Senhor gosta muito de quem não põe limites às suas obras.
A presença de Deus no mundo, na vida das pessoas e em todos os salutares projetos humanos, é penhor de segurança, de amor e de providência. O rei Davi, enaltecendo essa proteção divina, elaborou um dos mais belos poemas que a inteligência humana conseguiu criar, salmo aberto com afirmação reveladora e imanente: “O Senhor é meu pastor, nada me faltara” (Sl 22,1).
Mesmo nas desgraças, Deus se faz presença consoladora. É um equívoco, senão uma blasfêmea, afirmar, diante do sinistro ou morte, que aquilo é “vontade de Deus”. Deus não quer o mal do homem. Se este ocorre, devemos perquirir antes nossa fragilidade corpórea, alguma negligência humana ou fato de alguém ter usado de forma indevida sua liberdade. Deus não quer a morte, mas que o ser humano se converta e viva (cf. Ez 33,11). Até em suas quedas e transgressões o homem recebe os socorros e as graças especiais que vêm de Deus. É o que diz A..M.Galvão (1999): Mesmo caído, ele pode perceber, no meio do pó de seu pecado, a voz amorosa do Pai a consola-lo; seu braço forte está pronto para ergue-lo, se ele quiser ser erguido.
Vigorosamente, retrata-se então a misericórdia de Deus, que Jesus traduziria na parábola do “Pai Misericordioso” que acolhe carinhosamente o filho que partiu e não teve sucesso (cf. Lc 15,11-32).
No salmo 138, numa homenagem à presença de Deus junto ao ser humano, o rei-poeta Davi elaborou um hino de louvor e gratidão à ciência e à providência divina.
Senhor, vós me perscrutais e me conheceis,
Sabeis tudo de mim, quando de sento ou me levanto,
De longe penetrais meus pensamentos.
Quando ando e quando repouso, vós me vedes,
Observais todos os meus passos.
A palavra ainda me não chegou à língua,
E já, Senhor, a conheceis toda.
Vós me cercais por trás e pela frente,
E estendeis sobre mim a vossa mão.
Conhecimento assim maravilhoso me ultrapassa,
Ele é tão sublime que não posso atingi-lo.
Para onde irei, longe de vosso Espírito?
Para onde fugir, apartado de vosso olhar?
Se subir até os céus, ali estareis;
Se descer à região dos mortos, lá vos encontrareis também.
Se tomar as asas da aurora,
Se me fixar nos confins do mar,
É ainda vossa mão que lá me levará
E vossa destra que me sustentará.
Se eu dissesse: “Pelo menos as trevas me ocultarão”,
E a noite, como se fora luz, me há de envolver.”
As próprias trevas não são escuras para vós:
E a noite vos é transparente como dia,
E a escuridão, clara como a luz.
Foste vós que plasmastes as entranhas de meu corpo,
Vós me tecestes no seio de minha mãe.
Sede bendito por me haverdes feito de modo tão maravilhoso.
Pelas vossas obras tão extraordinárias,
Conheceis até o fundo a minha alma (Sl 138,1-14).
O aspecto mais sublime da dignidade humana está nesta vocação do homem à comunhão com Deus. Este convite que Deus dirige ao homem, de dialogar com ele, começa com a existência humana. Pois se o homem existe é porque Deus o criou por amor e, por amor, não cessa de dar-lhe o ser, e o homem só vive plenamente, segundo a verdade, se reconhecer livremente este amor e se entregar ao seu Criador (GS 19).
1.1 O diálogo entre Deus e os homens
“Adão, onde estás?” A voz do Todo-Poderoso ressoou no paraíso. Deus buscava o homem, a quem havia plasmado à sua imagem e semelhança. Queria falar com ele, como todos os dias, quando “passeava pelo jardim” (Gn 3,8). Adão-o homem - havia desobedecido a seu Criador e se escondera. O pecado do homem destruiu brutalmente a familiaridade com Deus na qual havia sido criado. Isto é o que quer nos dizer o Gênesis em suas primeiras páginas.
O homem perdeu a parrhesía, essa doce e inteira liberdade de expressão que lhe permitia falar a Deus como um filho fala a seu pai, como um amigo fala com seu amigo.O homem perdeu Deus, seu criador e pai, e Deus perdeu o homem, sua imagem, seu filho, seu interlocutor. E desde então Deus procurou o homem, e o homem tem que procurar a Deus.
‘Buscar a Deus’ é uma ocupação arrebatadora. Abarca toda a vida e toda a pessoa. É como o amor a Deus: “Ouve, Israel! O senhor nosso Deus é o único Senhor! Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força”(Mc 12, 29-30). Acaso não é o amor, o desejo que tem sua origem no amor, o que impulsiona nossa busca? Não seriam amor e busca de Deus dois conceitos tão próximos um do outro que se completam?
Há que se buscar Deus onde ele está: nas pessoas, nos acontecimentos, na Eucaristia, no intimo de nosso próprio ser... Onde Deus não esta? Devemos busca-lo, evidentemente, no cumprimento de sua vontade:
Felizes os íntegros em seu caminho, os que andam conforme a lei de Iahweh!
Felizes os que guardam seus testemunhos, procurando-o de todo o coração!
(Sl 118,1-2)
Entretanto, a busca pessoal de Deus e o encontro pessoal com Deus se verificam no diálogo. O diálogo como acentuou energicamente Martin Buder-é o lugar privilegiado para o qual convergem os desejos do “verdadeiro Deus” e do “verdadeiro homem”. O “verdadeiro Deus”. O
Deus vivo”, que fala e a quem se pode falar; o Deus pessoal que quer comunicar-nos a plenitude da existência pessoal e se abaixa para elevar-nos a seu próprio nível. O “verdadeiro homem”, “imagem de Deus”, aparição de Deus, que torna visível o Deus invisível, e quer encontrar seu criador, de quem se havia afastado. Assim convergem a sede de Deus de encarnar-se no homem, e a sede de infinito que atormenta o coração humano, o Deus desiderans e o Deus desideratus, como diziam os autores medievais. O Deus que nos persegue porque nos deseja, e o homem que busca ansiosamente ao Deus de quem necessita.
Para a tradição cristã primitiva, o diálogo com Deus tem dois tempos: a leitura e a oração. Já São Cipriano de Cartago aconselhava a Donato: “sê assíduo tanto à oração como à leitura. Ora falas tu com Deus, ora fala Deus contigo” (Ad Donatum, 15).
São Jerônimo diz do anacoreta Bonoso: “Ora ouves a Deus quando percorre pela leitura os livros sagrados, ora falas com Deus quando fazes oração ao Senhor” (Ep. 3,4) Santo Ambrósio de Milão escreve: “A Deus falamos quando oramos, a Deus escutamos quando lemos suas palavras (De officiis ministrorum 1,20,88). Santo Agostinho, comentando o Salmo 85, diz: "Tua oração é um diálogo com Deus. Quando lês, Deus te fala; Quando oras, tu falas a Deus “(Enarr. In ps. 85,7). Mas a mais bela formulação do diálogo entre Deus e o homem é a de São Jerônimo, quando escreve à sua discípula Eustóquia, a nobre virgem romana:” Seja tua guarda o segredo de teu aposento, e lá dentro recreie-se contigo teu Esposo. Quando oras, falas a teu Esposo; quando lês, ele fala contigo” (Ep. 22,25).
Os mesmos conceitos se encontram repetidos inumeráveis vezes nos autores antigos e medievais. Assim, por exemplo, em uma carta sobre a vocação monástica: “Fala a Deus orando, e escuta lendo a Deus que te fala”. E Bernardo Aygler, abade de Monte Cassino: “Da mesma forma como falamos com Deus quando oramos, Deus fala conosco quando lemos a Sagrada Escritura. Por isso SãoBento não só nos exorta a entregar-nos à oração, mas também quer que nos ocupemos assiduamente com a leitura”. Em nossos dias, o concílio vaticano II cita o texto de Santo Ambrósio: “Lembrem-se que a leitura da Sagrada Escritura deve acompanhar a oração para que se realize o diálogo de Deus com o homem, pois ‘a Deus falamos quando oramos, e a Deus escutamos quando lemos suas palavras”’.(Dei verbum, 25). E o congresso dos abades beneditinos de 1967 expressava a mesma idéia, ainda que mais profusamente e menos poeticamente que São Jerônimo: “Como todos os batizados, mas de modo muito especial, o monge está sempre atento à Palavra de Deus, para recebe-la, guarda-la, prestar-lhe obediência e vive-la, e entrar assim na salvação que ela oferece. O monge faz retornar a Deus essa palavra em oração”, Tanto particular como conventual”.
Para orar, não é preciso fazer nada além de ler, escutar, ruminar e em seguida voltar a dizer a Deus tudo o que Ele mesmo nos disse antes, imprimindo nestas palavras todo o nosso pensamento, todo o nosso amor, toda a nossa vida. Desse modo, a Palavra de Deus se converte em lugar e meio de encontro com Ele. Lectio, meditatio e oratio, mais que atos distintos, são diversos aspectos de um mesmo gesto: o do homem que fala com Deus tendo ante os olhos-ou ao menos em mente-a Palavra de Deus escrita.
1.1.2 Objeto da “leitura divina”
Vamos tratar agora do conceito mesmo de lectio divina, seu objetivo, sua natureza, suas características mais notáveis.
Lectio, como “leitura”, é um substantivo ambíguo, podendo designar tanto a ação de ler como o escrito que se lê. Divina é um adjetivo que qualifica o substantivo lectio. E significa “de Deus”. A expressão lectio divina quer dizer, literalmente, “leitura divina”, “leitura de Deus”. Ou seja, significa uma leitura que tem a Deus por objetivo. Lemos a Cervantes ou Marx; na lectio divina lemos Deus. Porque Deus é o autor de um livro, ou, mais exatamente, de uma biblioteca: a coleção de escritos de naturezas diversas que formam o antigo e o novo testamento. São Gregório Mágno chama a Escritura scripta Dei (os escritos de Deus), scripta Redemptoris nostri (os escritos de nosso Redentor), e a considera uma carta que Deus nos enviou.
A Bíblia contem a Palavra de Deus escrita. Portanto, a matéria específica, imediata, da lectio divina, não pode ser outra além da Escritura. Somente por ter como objeto a Palavra de Deus contida na Bíblia, pode chamar-se “leitura divina”, “leitura de Deus”. Um crítico avisado, A. Mundo observava que os monges antigos, diferentemente de muitos modernos, davam a lectio divina “um sentido estritíssimo”, a saber: “a leitura da Palavra de Deus contida nos livros da Sagrada Escritura, e por concomitância os comentários sobre ela”. Só “por concomitância”, subsidiariamente, enquanto ajudavam a compreender melhor a Escritura, se admitiam como matéria da lectio divina os comentários dos Padres da Igreja.
Por ser a Bíblia seu objeto próprio, a lectio divina tomou sua forma específica, já que não se pode ler a Deus como se lê a um autor qualquer. A “leitura de Deus” não pode ser como as demais leituras. E assim, à medida que se foram acumulando experiências pessoais desse contato com a Palavra de Deus, à medida que se conheceram as maneiras dos homens envolvidos com a Palavra de penetrar em suas profundezas insondáveis, para saboreá-la, para assimilá-la e pôla em prática, foram sendo definidos os diversos traços característicos que configuram a “leitura divina”.
1.2 Deus está na Bíblia
Pelágio e a Regra dos Quatro Padres não usam a expressão lectio divina, mas servem-se de uma fórmula equivalente: vacare Deo, “dedicar-se a Deus”. Porque, como comenta A de Vogue, “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”. É uma frase feliz. Como também o é a de G Bessiére quando chama a Escritura de “o livro dos que buscam a Deus”. Se Deus se encontra na Bíblia, a “meta da lectio divina” não pode ser outra senão “a busca de Deus em sua Palavra escrita”, como declaravam os abades beneditinos no congresso de 1967, ou, como diz Yeomans com um jogo de palavras: “a reverente, piedosa busca da Palavra na palavra”.
Como “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”, compreende-se como aqueles que buscavam a Deus se lançassem à Bíblia com verdadeira paixão. Assim sucedeu com os monges, considerados como os profissionais da procura de Deus. Desde as origens até os fins da idade média, quando aconteceu a grande decadência dos mosteiros e a lectio foi abandonada e logo substituída pela “leitura espiritual”, a Bíblia desfrutou entre eles de prestígio incomparável. A leitura e a “meditação” da Escritura constituiu, para gerações e gerações de monges, uma ocupação assídua e das mais essenciais e estimadas. A Bíblia era para eles não somente a regra suprema de vida, um espelho onde contemplar-se, o livro de edificação por excelência, o alimento da alma – um manjar tão nutritivo que, segundo São João Crisóstomo, às vezes basta uma só palavra da Escritura “como alimento para todo caminho da vida”; não só era um “porto seguro”, um “muro intransponível, uma torre inabalável, glória que ninguém pode roubar, arma que nunca falha, segurança absoluta, prazer inefável e quanto de bom se pode pensar”, segundo assegura São Basílio de Cesaréia; não só constituía “remédio divino” para as feridas da alma, uma “armadura” protetora contra os dardos dos inimigos, as “ferramentas” próprias do ofício de cristão, um “tesouro” inesgotável que não deve enterrar-se, no dizer de São João Crisóstomo;pão de vida, vinho que embriaga, força na provação, luz na noite e fogo que consome o coração, segundo São Gregório Magno...Era também, e sobretudo, um lugar privilegiado de encontro com Deus. “Nas Escrituras” – escreveu Orígenes –“com rosto descoberto contemplamos a glória do Senhor”. A Bíblia, assegura o biógrafo de Santo Odilon de Cluny, é “o livro da contemplação de Deus”.
... A interpretação das coisas visíveis e invisíveis, da vida e da história humana, “do ponto de vista de Deus” que a leitura da Bíblia oferece; o conhecimento do desígnio de Deus sobre a humanidade e sobre cada um dos homens –desígnio que consiste no desejo de comunicar-se ao homem, unir-se a ele, prolongar até ele a comunhão de vida que constitui o mistério intimo de Deus -, produz na alma uma grande paz. O leitor devoto e assíduo das Escrituras sabe, com certeza inabalável, que alguém sai ao seu encontro, que alguém está com ele. Sua alma se sente fortalecida como na presença de um Amigo. Tudo isso, é claro, fomenta uma vida de união consciente, intensa, com Deus.
Mais ainda: a lectio divina, praticada com fidelidade, produz a experiência de Deus.
“Experiência” é uma expressão utilizada abusivamente nos dias de hoje. Na realidade, não implica em nada esotérico. Significa simplesmente a “graça da oração íntima”, o affectus divinae de que fala São Bento, o provar e saborear as realidades divinas, como ensina constantemente a tradição patrística. É um sentimento de estar unido a Deus por meio de Cristo na oração.
A oração, a oração viva e verdadeira, que brota do contato com a Palavra de Deus, é um de seus melhores frutos. Ou melhor, faz parte da lectio.Como também é elemento constitutivo dela a meditatio, com a qual criamos em nosso espírito um espaço onde ressoe a Palavra de Deus.
L.Alonso Schoekel resume a tradição patrística e monástica quando escreve: “Que ao ecoar essa Palavra, o espaço de nosso espírito se dilate para dar lugar a uma ressonância maior. Nesse espaço interior Deus está presente com sua palavra. Então o nosso espírito toma outra palavra de Deus, para responder-lhe, em forma de hino e oração, e outra vez a deixa ressoar inteiramente, para que essa palavra, agora nossa, chegue a Deus no espaço interior. Assim continua o diálogo, a união com Deus, que é graça e salvação, a união pessoal em uma palavra, que é verdadeiramente divina e humana. Deus falando em nossa língua, de modo humano, nos procurou e nos encontrou; e ao sermos encontrados por Deus, também nós o encontramos, no mistério de sua Palavra”.
1.2.1 Cristo esta na Bíblia
Abrir a Bíblia – poderia dizer-se igualmente – é encontrar a Cristo. Os Padres estavam persuadidos disso. E o Vaticano II ensina que Cristo “esta presente em sua palavra, pois quando se lê na Igreja a Sagrada Escritura, é Ele quem fala” (Sacro-sanctum Concilium, 7).
São Jerônimo tem uma fase famosa: “Ignoratio scripturarum, ignoratio Chriti est” (In Is., prol., 1): desconhecer a Bíblia é desconhecer a Cristo. Cristo está na Bíblia. Paul Evdokimov escreve: “pode-se afirmar que para os Padres a Bíblia é Cristo, pois cada uma de suas palavras nos conduz até Ele, que as pronunciou, e nos põe em sua presença (...). Consome-se ‘eucaristicamente’a ‘palavra misteriosamente partida’ com vistas à comunhão com Cristo”. Todos os antigos assinalam a íntima relação existente entre Bíblia e Eucaristia: Clemente, Orígenes, Santo Agostinho, São João Crisóstomo, São Jerônimo... “Ao ler a Bíblia, os Padres não liam os textos, mas a Cristo vivo, e Cristo lhes falava; consumiam a Palavra se oferecida com a profundidade de Cristo”.
As Escrituras são a carne e o sangue de Cristo. “Eu creio” – diz São Jerônimo –“que o Evangelho é o corpo de Cristo (...) E ainda que as palavras ‘Quem não come minha carne e beber meu sangue’ possam entender-se também do mistério [da Eucaristia], contudo, as Escrituras, a doutrina divina, são verdadeiramente o corpo e o sangue de Cristo” (Tr.de os. 131). E em outro lugar: “E nosso dever conhecer as veias e carnes da Escritura” (Tr. In Marci Evang.,4). São Gregório Magno, com realismo impressionante, dizia ao povo: “Vós que tendes o costume de assistir aos divinos mistérios, sabeis bem que é necessário conservar com sumo cuidado e respeito o corpo de nosso Senhor que recebeis, para não perceber dele nenhuma partícula, a fim de que nada do que tenha sido consagrado caia por terra. Pensais vós acaso que seja um delito menor tratar com negligência a palavra de Deus, que é seu corpo?” (Hom. In Ez. 13,3).
A comparação Escritura-Eucaristia é, como se vê, constantemente na tradição cristã. Ambas contêm o Verbo de Deus. O Pe. Congar nota que, se o homem não vive só de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus, a Bíblia é, como a Eucaristia, o pão da vida descido do céu, e que se Deus atua para unir-nos a Ele nos sacramentos da Igreja, atua também, e não com menor eficácia, no sacramento de sua Palavra. A celebração Eucarística consta de duas partes: Eucaristia e Palavra de Deus, que formam um sacramento completo. Na Bíblia, como na Eucaristia, encontramos o verdadeiro pão da vida eterna, aquele de que devem alimentar-se os que foram chamados a viver além deste mundo a vida mesma de Deus. E o vaticano II destacou, e de certo modo consagrou essa relação íntima entre Escritura e Eucaristia quando declara: “A Igreja sempre venerou a Sagrada Escritura, como o fez com o corpo de Cristo, pois sobretudo na sagrada liturgia nunca cessou de tomar e repartir a seus fiéis o pão da vida, que oferece a mesa da Palavra de Deus e do corpo de Cristo” (Dei Verbum, 21). E também: “Como pela assídua freqüência do mistério eucarístico se incrementa a vida da Igreja, assim é de se esperar um novo impulso da vida espiritual a partir da progressiva veneração da Palavra de Deus, que permanece para sempre” (n. 26).
1.3 Deus falou, Deus me fala
Deus falou diretamente a homens escolhidos, privilegiados. E através deles a todo o seu povo, à humanidade inteira. Esses homens foram, no sentido amplo do termo, os profetas. Tiveram os profetas clara consciência de que Deus se comunicava com eles. De diversos modos, segundo cada caso. Quando queria e como queria. Tinham a sensação de que a Palavra de Deus se apoderava deles, até fazer-lhes violência. Em outros casos – o caso dos sábios de Israel, especialmente – a Palavra de Deus se manifestava por vias aparentemente mais próximas da psicologia normal. Profetas e sábios, em comunicação direta com o Deus vivo, nos transmitiram mensagens divina. Deus falou através de profetas e sábios, Deus foi manifestando sua vontade, revelando o sentido das coisas e da vida, prometendo e anunciando o futuro. Deus foi se revelando. Essa revelação alcançou o ápice em Jesus Cristo. “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos” (Hb. 1,1-2). Poder que opera, luz que revela, Jesus enquanto Filho se identifica com a Palavra de Deus, é Ele mesmo a Palavra de Deus.
Na divina Biblioteca encontramos a Palavra de Deus. Aqueles que procuram a Deus têm seu Livro: a Sagrada Escritura. Na Bíblia encontramos a Deus. Porque a Biblia é o lugar que o próprio Deus escolheu para seu encontro com o homem. Dietrich Bonhoffer tem a esse respeito algumas linhas preciosas: “Se fosse eu que tivesse que determinar onde encontrar a Deus, encontraria sempre um Deus que estivesse de acordo com minha maneira de ser. Mas, se é Deus que estabelece o lugar do encontro, nesse caso não será um lugar para agradar a natureza humana, um lugar conforme o meu gosto. Este lugar é a cruz de Cristo. E todo aquele que quiser encontrá-lo deverá correr ao pé da cruz, como o exige o Sermão da Montanha. Isso em nada agrada à nossa natureza, mas lhe é inteiramente contrário. Tal é a mensagem bíblica, não somente no Novo Testamento, mas também no Antigo (...).
A característica primeira e fundamental da lectio divina é a fé que deve anima-la. Sem fé viva, radical, em que Deus escreveu a Bíblia, em que o autor último, principal e verdadeiro da Escritura é o próprio Deus, como seria possível “ler a Deus”?
Mas não basta estar persuadido de que Deus escreveu, de que Deus falou. É preciso fazer um ato de fé em Deus que continua falando. Não se lêem suas palavras como as de um autor de outros tempos. Deus não esta morto. É o “Deus vivo”. Sua palavra está viva. “A Palavra de Deus é viva, eficaz”, diz a Carta aos Hebreus (4,12). Sem crer firmemente que “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”, que “nos livros sagrados, o Pai que está nos céus sai amorosamente ao encontro de seus filhos para conversar com eles”, que “Cristo está presente em sua palavra”, a verdadeira “leitura de Deus” resulta completamente impossível.
Deus está presente na Escritura. Cristo está presente na Escritura. Por isso escrevia Paulo Giustiniani, reformador dos camaldulenses: “O monge deve aproximar-se da Palavra, não para entreter-se, nem para estudar, mas como se subisse ao altar de Deus, com grandes preparativos de alma e corpo, com profundíssimo respeito”.
Deus falou; Deus fala; Deus me fala. Dirige-se a mim, pessoalmente, aqui e agora. Assim pensavam os monges antigos, profissionais da “leitura divina”. Estavam convencidos de que cada um dos vocabulários contidos na Escritura é uma palavra que Deus dirige a cada um dos leitores para sua salvação e santificação. Sendo a Bíblia “ciência de salvação”, acreditavam sem a menor vacilação que tudo tem nela um valor pessoal, atual, para a vida presente e com vista à vida eterna.
Deus dirige a cada um de seus leitores uma mensagem pessoal e única. Esta mensagem pessoal está contida na grande mensagem universal, endereçada à comunidade dos homens. São Gregório Magno já o explicou: Deus nos disse tudo. Falou uma vez, e é suficiente. Não há que se esperar outra revelação. “Deus não responde ao coração de cada um por revelações particulares, porque preparou uma palavra que pode solucionar todos os problemas. Na Palavra de sua Escritura, com efeito, se soubermos procurar, encontraremos resposta para cada uma de nossas necessidades. Para dar um só exemplo: se estamos afligidos por um sofrimento qualquer ou por uma enfermidade corporal, encontramos alívio quando conhecemos suas causas ocultas. Como em cada uma de nossas provações não somos respondidos em particular, recorremos à Sagrada Escritura. Aí encontramos Paulo que, tentado pela fragilidade da carne, ouve esta resposta: ‘Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder’(2Cor 12,9). Deus recolheu na Escritura Santa tudo o que pode suceder a cada um de nós e nos deu por modelo os exemplos dos que nos precederam” (Mor. 23, 19, 34). Admirável lição sobre a atualidade da Palavra de Deus.
É claro que Deus não está aprisionado na Bíblia. Deus é um Deus vivo que fala, “ora pela Escritura, ora por uma inspiração secreta”. Mas a norma de toda “inspiração secreta com a eminente verdade da Eucaristia Santa”. Até aqui, São Gregório Magno.
A “leitura de Deus” tenta individualizar e interiorizar a grande mensagem dirigida a todos os homens. Com muita precisão escreveu David Stanley: “Por meio de minha reação de fé, amor e esperança, o mistério se converte em evento par mim. Acontece comigo”. Diz um documento da antiguidade cristã, a Carta a Diogneto (11,4): “Aquilo que se nos apresenta como novo, que descobrimos que existe desde sempre e que renasce diariamente nos corações dos fiéis”,... O objetivo da lectio divina é na realidade o que Santo Inácio denomina “um conhecimento interno do Senhor, que por mim se fez homem para que mais o ame e siga” (Exercícios, 104). O autor do Deuteronômio expressou muito bem a profunda percepção de Israel de como nas Escrituras o acontecimento do passado se converte em experiência contemporânea. Ainda que compondo seu livro quinhentos ou seiscentos anos depois do acontecimento da Aliança no monte Sinai, é capaz de representar a Moisés falando, através dos séculos, a seus próprios contemporâneos (do autor): “Ouve, ó Israel, os estatutos e as normas que hoje proclamo aos vossos ouvidos (...). Iahweh nosso Deus concluiu conosco uma Aliança no Horeb. Iahweh não concluiu essa Aliança com nossos pais, mas conosco, conosco que estamos hoje aqui, todos vivos” (Dt 5, 1-3). “É justamente para criar uma experiência semelhante, contemporânea e pessoal, em mim, como membro do povo de Deus, que foi instituída a lectio divina”.
Continua dizendo o Pe. Stanley: “Por conseguinte (e este é o segundo passo), deve-se refletir com fé sobre o sentido literal já descoberto, para escutar o que Cristo ressuscitado me diz através de seu Espírito, quando leio uma passagem em dado momento”. Trata-se de escutar a Cristo para prestar-lhe a “obediência da fé” (Rn 1,5). A lectio divina é o defrontar-se com Deus em Cristo. Que me diz Deus hoje nesta passagem da Bíblia? “Abertos nossos olhos à luz de Deus, escutemos atentos o que diariamente nos admoesta a voz divina que clama” (RB Prol.,9).
O caso de Santo Antão ilustra essa doutrina. Antão, como é bem conhecido, era um jovem copta, bom e piedoso. Um dia, dirigia-se à igreja e pelo caminho ia pensando na vida que levava m os primeiros cristãos de Jerusalém, segundo a descrevem os Atos dos Apóstolos. Formavam uma comunidade maravilhosa: perseveravam na doutrina dos apóstolos, na fração do pão e na oração; possuíam tudo em comum; tinham um só coração e uma só alma... Antão chegou atrasado à Escritura, quando já se estava proclamando o Evangelho do jovem rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me”, A passagem evangélica acaba mal: o jovem rico recusou o convite de Jesus, “pois possuía muitos bens”. Mas Antão o aceitou. O Espírito Santo o fez compreender que as palavras do Evangelho se dirigiam a ele pessoalmente. Daí em diante toda a vida de Antão não será outra senão uma resposta a essa voz.
Outro exemplo. Alexandre, que com o tempo fundaria o célebre mosteiro dos Acemetas, próximo de Constantinópla, também se sentiu chamado à vida monástica enquanto lia o Evangelho. E no Evangelho continuou inspirando-se, muito concretamente, e ao longo de sua vida. “Padre” – costumava perguntar ao arquimandrita Elias – “ é verdade tudo o que está escrito no Evangelho?” E se é verdade, por que não o cumprimos?” Alexandre optou finalmente por empreender, com não poucos companheiros, a santa aventura de viver como os pássaros do céu e os lírios do campo, louvando a Deus continuamente.
Terceiro e ultimo exemplo: Santa Teresa do Menino Jesus. “Sou demasiado pequena” – escreve – “para subir a rude escada da perfeição... Procurei nos livros santos e ali estas palavras saídas da Sabedoria eterna: ‘Se alguém é pequeno, que venha a mim’... Havia encontrado o que procurava... Continuei procurando e encontrei esta frase: ‘Como mãe acaricia se filho, assim eu os consolarei, e os levarei no colo e os embalarei sobre meu joelho’. Nunca palavras tão ternas, tão melodiosas alegraram minha alma. O elevador que deve levar-me até o céu são teus braços, ó Jesus. Portanto, não tenho necessidade de crescer; ao contrario, o que preciso é continuar sendo pequena, esforçar-me em sê-lo cada vez mais”. As palavras de Isaias, como se vê, foram a inspiração e a base da definição perfeita da “infância espiritual”, tal como Santa Teresa a entender e Cristo a exige: “Ser criança é reconhecer seu próprio nada, esperar tudo de Deus, como o menino pequeno espera tudo de seu pai”. Teresa do Menino Jesus soube individualizar e interiorizar a mensagem da Escritura. Descobriu que a voz de Deus se dirigia a ela pessoalmente. E assim nasceu sua doutrina da “infância espiritual”, que ela foi a primeira a viver, e que tanto bem fez e continua fazendo na Igreja.
A “leitura divina” não procura uma finalidade cientifica, não se propõe alcançar um objetivo puramente – nem sequer principalmente – de tipo intelectual. A Bíblia não é um tratado de teologia, um estudo sobre Deus. É muito mais: é a grande mensagem que Deus nos deixou. A lectio consiste, por conseguinte, em escutar e saborear essa mensagem. É sentar-se, como Maria, aos pés de Jesus, e não perder uma única das palavras saídas de seus lábios.
Comumente, costumamos ler, não para ler, mas para ter lido. Isto é, buscamos em nossas leituras um fim prático, utilitário: ampliar nossos conhecimentos, seja lá por que razão for. A “leitura divina” é, neste sentido, uma leitura completamente desinteressada, gratuita. Dela poderia dizer-se o que São Bernardo diz sobre o amor: “o amor não busca sua justificação fora de si mesmo. O amor é suficiente em si mesmo, é agradável em si mesmo. O amor é seu próprio mérito e sua própria recompensa; não busca uma causa fora de si mesmo nem outro resultado a não ser o amor mesmo. O fruto do amor é o amor”. E acrescenta que esse caráter auto-suficiente do amor se explica porque tem a Deus por origem e volta a ele como a seu fim, porque Deus é o Amor. O mesmo ocorre com a “leitura de Deus”. A pessoa lê a Deus simplesmente para estar com Ele, para escutar sua voz. É ler por ler (...).
A “leitura divina” busca não tanto obter um conhecimento tão exaustivo quanto seja possível da verdade – tarefa própria da teologia especulativa – como chegar a um contato direto com Deus, a um estar com Deus, a um escutar a Deus que fala pessoalmente, aqui e agora, a cada um dos homens que abre com fé as Escrituras.
Com efeito, Deus nos fala. Mais ainda: Deus nos abre seu coração e nos convida a penetrar nele, a esquadrinhá-lo, a conhecê-lo (...).
Quanto a lectio divina se pratica como ensina a tradição, isto é, quando a “leitura divina” é verdadeiramente “leitura divina” e não mera “leitura espiritual” nem está dominada por preocupações intelectuais ou utilitárias; quando a lectio é atenção a Deus e contato pessoal e íntimo com sua Palavra, a oração brota espontânea e irresistivelmente. E mais, a oração torna-se parte da lectio. Com efeito, não se lê a Deus como a um autor qualquer. Muito se tem insistido em que ler é colocar-se em íntima comunicação com o autor, e é verdade. Para ler bem, para que um autor nos comunique de verdade seu pensamento e responda às nossas interrogações, é preciso considerar que estamos conversando com ele. Claro que isso é uma ficção, porque o autor não nos conhece nem esta presente, e portanto não pode responder às nossas perguntas, mas enquanto as respostas já estão contidas em seu texto. Com a Bíblia é diferente. Deus, que está presente nela, é um Deus vivo, um Deus que não só falou, mas que fala, que me fala. Por isso, “leitura de Deus” equivale uma “conversação com Deus”.
2 Um povo que caminha
Estas linhas que se seguem agora são uma primeira introdução à leitura da Bíblia. Destina-se ás nossas comunidades eclesiais de base, Círculos Bíblicos e outros grupos que querem fazer um primeiro estudo da Bíblia. Mas dirigem-se também a todos que querem aprofundar-se no assunto através de uma leitura pessoal.
A Biblia é o livro mais conhecido do mundo inteiro. Já foi traduzido para 1685 línguas. Mesmo assim, continua um livro desconhecido. Muita gente a tem em casa, mas não a abre.
Hoje em dia, a Bíblia desperta, cada vez mais, o interesse do povo cristão. Especialmente nas nossas Comunidades Eclesiais de Base e nos Círculos Bíblicos orienta a reflexão sobre a vida.
De onde vem a Bíblia? Quem a escreveu? Quando? Por que é um livro tão importante? São, em geral, as primeiras perguntas que surgem.
A Bíblia surge no meio de um povo do Oriente, o Povo de Israel. Este povo cria uma literatura que relata sua história, suas reflexões, sua sabedoria, sua oração. Toda essa literatura é inspirada pela sua fé no único Deus que lhes revela: “Estou sempre com vocês!”
O Povo da Bíblia mora perto do Mar Mediterrâneo, no Oriente Médio.
Inicialmente, é um grupo de migrantes, vindos da Mesopotâmia (hoje Iraque). São chamados HEBREUS e descendem de Abraão.
Muita gente quer ser dona da terra onde moram esses hebreus. Os Cananeus, outros moradores de lá, a chamam de CANAÃ. Os Israelitas a chamam de ISRAEL. Mais tarde será chamada PALESTINA: terra dos Filisteus.
Com Abraão se inicia a história do Povo da Bíblia.
Abraão sai da Mesopotâmia, à procura de uma nova terra. Sai com sua família e vai morar em Canaã. Isto se dá lá pelo ano 1850 antes de Cristo (1850 a.c).
Em Canaã nascem os filhos, os netos. A família vai se multiplicando.
Abraão, Isaque e Jacó são chamados Patriarcas. Eles são os primeiros pais e fundadores do Povo da Bíblia. (Jacó é também chamado ISRAEL).
Muita gente se muda para o Egito, onde a terra é mais fértil. Entre eles estão Jacó e sua família.
Com o passar dos tempos, os faraós (reis) do Egito, começam a escravizar o povinho, e, entre outros, aos Hebreus.
Surge no meio do povo um líder que chefia um movimento de libertação. Com a ajuda de Deus, faz o povo fugir da opressão dos reis do Egito. Este líder é Moisés.
O povo caminha pelo deserto durante 40 anos, de volta a Canaã. Moises morre antes de o povo entrar naquela terra. Em seu lugar fica JOSUÉ, como principal líder do povo.
Depois da morte de Josué, o povo é liderado por outros chefes, chamados JUÍSES. O ultimo deles é SAMUEL.
Na atual organização da Biblia, o fator principal da fé em Deus é a libertação do Egito, por meio de seu servo Moisés. É nesse contexto que Deus é conhecido como herói, como pastor, como aquele que está com seu povo e mostra sua presença nos sinais, nem sempre agradáveis para os egípcios. Ele é o resgatador, que liberta o povo da escravidão e vinga os filhos mortos pela morte dos primogênitos do Egito. Mas ele é, sobretudo o Deus da Aliança – ainda que este tema não tenha sempre sido cultivado.
A Aliança remonta a Moisés. O antigo culto de Israel era a celebração da renovação da Aliança (Js 24!). Talvez a história do Bezerro de ouro, da quebra das tábuas da lei e da segunda promulgação seja uma forma narrativa de inculcar que Israel é um povo pecador e necessita de uma iniciativa de Deus e de seu profeta para renovar a Aliança, sempre... Mas o fato é que a tematização da Aliança se dá, sobretudo no tempo dos profetas e do Deuteronômio... depois que ela fora quebrada inúmeras vezes.
A Aliança é evocada em Êxodo 19-23 em três momentos: a eleição do povo, a promulgação das exigências, a celebração do sacrifício. “Vós mesmos vistes o que fiz ao Egito, como vos carreguei sobre asas de águia e vos fiz chegar até mim. Agora, pois, se ouvirdes minha voz e guardardes minha Aliança, sereis minha parte pessoal entre todos os povos, sereis para mim um reino de sacerdotes, uma nação santa” (Ex 19,4-6)...
(...) Quando da primeira renovação da Aliança (as segundas tábuas da lei), Deus num texto antigo, se declara: “YHWH, YHWH, Deus misericordioso e benevolente, lento para a cólera, cheio de fidelidade e lealdade...” (Ex 34,6 J).
“Quando Israel era menino, eu o amei; do Egito chamei meu filho” (Os 11,1). Oséias, o profeta da infidelidade do povo, é também cheio de ternura. É o profeta da ahabá, o amor de opção que Deus demonstra a seu povo: amor de Aliança. Deus é o esposo traído, mas maior que a traição: ele é Deus, não um mesquinho ser humano (Os 11,9).
O Deuteronônio é o documento-mor desse amor de Aliança. Deus quis amar um povo. Quis mostrar, num povo, sua presença no mundo como presença de amor. Escolhe o povo não por ser forte, mas por ser fraco e pequeno, necessitado do amor de quem decide com braço estendido e mão forte, YHWH, a rocha e fortaleza (Dt 7,7-8).
É o Deus da misericórdia leal e fiel, hésed wa’ émet (Sl 103,8-18; cf. o refrão do Sl 136).
2.1 Deus Caminha com o seu povo
Deus chama pessoalmente, pelo nome, a cada homem, mas, desde o princípio, “aprouve a Deus santificar e salvar os homens não singularmente, sem nenhuma conexão uns com os outros, mas constituindo-os num povo que o conhece na verdade e santamente servisse”. Quis escolher entre as nações da terra o povo de Israel para manifestar-se a Si próprio e revelar os desígnios da sua vontade. Estabeleceu uma Aliança com ele, que foi renovada diversas vezes.
“Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra os seus opressores e conheço os seus sofrimentos”.
Por isso desci para liberta-lo do poder dos egípcios e para faze-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa (Ex 3,7-8).
Neste texto podemos perceber a atenção e a resposta de Deus ao clamor do povo (Ex 2,23-35). Ele se revela como alguém presente na vida do povo e conhecendo bem a situação. A sua descida é para estar no meio do povo e, aliado com ele, construir uma nova história.
A intenção especifica desse Deus é tomar partido do oprimido contra o opressor. Dessa forma, ficamos sabendo que Deus YHWH é partidário e se solidariza apenas com a causa daqueles que estão esmagados na história. Essa parcialidade de Deus mostra que os seus seguidores também devem ser parciais, isto é, solidários e comprometidos com a causa dos fracos e oprimidos. Moisés pôde experimentar esse Deus porque já havia se solidarizado com seus irmãos escravizados.
A tradição sacerdotal nos é mais bem conhecida em sua fase tardia, graças ao trabalho de compilação do tetrateuco (Gn – Nm), que culminou na redação final do Pentateuco (incluindo Dt). Não há de se admirar que o Deus sacerdotal seja centro e objeto de elaborado culto. O que impressiona é a facilidade como a visão sacerdotal integra elementos de majestade e de universalismo encontrados na Mesopotâmia, terra do exílio de Judá (depois de 722 ac., Israel desaparecera como nação).
A majestade e a universalidade não são completamente novas. Em muitos textos antigos transparece a representação de uma corte divina. E os anjos do egoísta entram no mesmo esquema. Mas o contato com a Babilônia, durante o Exílio, leva o profeta-sacerdote Ezequiel a multiplicar os anjos e a magnificência da corte celestial. Maneira de realçar a transcendência? Pode ser. Mas talvez sejam mais significativos o universalismo e a versatilidade de Deus. Tanto Ezequiel como Segundo Isaías reagem à convivência com os deuses da Babilônia insistindo na universalidade de Deus. Para Ezequiel, “YHWH Sebaot” não significa o “Deus dos Exércitos” no sentido das tribos de Israel (como no deuteronômista, 1 Sm 1,3.11...; 2Sm 7,8.26...), mas no sentido dos exércitos celestes. “Os céus são os céus de YHWH!” (Sl 115,16). Nenhum poder celestial escapa a seu domínio. Ele fez a historia de Israel e também o mundo (Is 44,24...).
Na convivência com outros povos deve ficar claro onde Deus está: em todo lugar onde faz acontecer sua obra, em Israel e na criação!
Mas impressiona também a veracidade de Deus. Ele tem quatro rodas! E, ainda que seja difícil compreender como funcionam, pois giram para todos os lados ao mesmo tempo (Ez 1,17), menos difícil é perceber para que servem: para que a Santidade e a Glória de Deus possam deslocar desde o templo para o lugar onde se encontra seu povo exilado (10,18-22; 12,22-24) e, de lá, com ele voltar para sua morada (43,1-12), na Jerusalém renovada, que leva nome semelhante ao do Emanuel: “O Senhor está aí” (Ez 48,35).
Logo depois do Exílio, o terceiro Isaías tecerá em torno desse tema da renovada Jerusalém as mais belas descrições da utopia de Deus, não receando retornar a antiga linguagem de hierogamia – agora inócua, pois Baal e Astate pertencem ao passado. O esposo é agora o Senhor, e a esposa, Jerusalém ou o povo do Senhor (Is 61,10-62,5).
2.2 Deus fala pelos acontecimentos e pelas palavras
A Bíblia é “o livro dos que buscam a Deus”; a “leitura divina”, uma tarefa própria dos que buscam a Deus. Ora, buscar supõe sempre algum esforço. Ainda que repousada e aprazível, a lectio divina requer freqüentemente uma notável, uma perseverante dedicação.
A Bíblia é o reflexo de uma vivência do povo com seu Deus, de Deus com seu povo. Deus está na história do povo, e, por isto, está na Bíblia. Por sua vez, a Bíblia vai ajudar o povo a viver. É Deus, através da Bíblia, que anima e orienta seu povo para continuar a lutar e viver e nunca desanimar.
É por tudo isso que dizemos que a Bíblia é a Palavra de Deus, Revelação de Deus.
O povo da Bíblia vai descobrindo, cada vez mais, quais os laços que o ligam a Deus. Dizem: Deus nos ama.
Os profetas gostam de comparar a Deus com um marido todo dedicado à sua esposa. Deus é o Esposo; o povo, a comunidade, é a esposa.
Também gostam de outra comparação: o povo de Israel, em vez de procurar aliar-se a um Império poderoso, faz aliança com o próprio Deus.
Nós, hoje, chamamos de “Aliança” o anel de casamento. É porque o anel lembra o compromisso do casal: AMOR E FIDELIDADE ATÉ Á MORTE. Assim é o amor de Deus para com seu povo.
Por isto chamamos a Bíblia o “Livro da Aliança”.
(Na tradução para outras línguas, a palavra “Aliança” foi substituída por “pacto” e, depois, menos exatamente, por “testamento”. Daí o uso das expressões “Antigo e Novo Testamento” para indicar a Antiga e a Nova Aliança).
... “Apesar da nossa infidelidade, Deus continua o Esposo que vai educando sua esposa à fidelidade. Sempre espera a nossa volta. Sempre nos dá uma nova chance. Sempre perdoa e começa de novo”.
2.2.1 Deus continua a dialogar com os homens em Cristo
Depois de ter falado pelos Profetas, Deus quer falar ainda mais de perto. Quer revelar-se ainda melhor. Ele o faz através de seu Filho JESUS.
Jesus é o profeta por excelência, o grande enviado de Deus, o seu grande mensageiro, o Filho. Muito mais do que os profetas, ele pode falar de Deus, mostrar quem é Deus.
Jesus mostra o Deus da Aliança, o Deus de amor que se dá até o fim. A bondade de Jesus, a sua misericórdia, a sua exigência, a sua doação até a morte, mostra o amor do seu Pai. “Deus quis que Cristo tomasse “o corpo no qual suas palavras ressoassem autenticamente como palavras de vida.
Jesus, como não poderia deixar de ser, é o ponto central do cristianismo, quando Deus se encarna, tornando-se homem para livrar a humanidade da servidão do pecado. Em muitos lugares, nas leituras profanas e mesmo religiosas, há perguntas sobre a essência do cristianismo, aquilo em que, em última análise, pode ser resumida a religião cristã.
Nesse particular, e vamos nos amparar no teólogo Romano Guardini, todas as respostas formuladas se resumem em uma única palavra: Cristo. Á essência do cristianismo, afirma o teólogo, é Jesus Cristo, e ser cristão, segundo a mesma fonte, consiste em acolher de fato a Cristo como Deus, a palavra (o logos) que se fez homem, padeceu, morreu e ressuscitou. Acolhe-lo como nosso salvador faz parte de nossa inserção ao mistério divino.
No Filho, descobrimos o mistério da comunicação divina, rico em presença, entrega e libertação. Ele é a total revelação do Pai. Sob esse aspecto, vemos que o Filho e o Espírito Santo descobrem a inascibilidade do Pai, e a revelam aos homens. Só podemos entender o mistério de Jesus se o compreendermos como os evangelhos o apresentam, inserido na comunhão trinitária.
(...) porquanto é por ele que ambos temos acesso junto ao Pai num mesmo espírito (Ef 2,18).
O Filho, professamos no Credo, é gerado, não criado. Gerado amorosamente na interioridade trinitária e também por obra do Espírito, como homem no seio de Maria, na encarnação. É não criado visto que é co-eterno com o Pai e o Espírito. Ao gerar o Filho, o Pai lhe entrega tudo. “Tudo o que o Pai possui é meu (...)” (cf. Jô 16,15); Toda autoridade me foi dada no céu e na Terra. (...)” (Mt 28,18).Por isso o Pai lhe entrega a mesma natureza, e dessa natureza dos Dois Divinos (Pai e Filho) vai proceder o Espírito Santo. A relação do Espírito com o Pai e o Filho é de procedência. Segundo P. Evdokimov, “embora o modo próprio de cada uma das Pessoas, há uma condição de comunhão substancial entre os três”.
Justino, em uma de suas apologias, ensina que o Pai é aguenétos, isto é, não gerado. Possui divindade como essência, ou seja, sua divindade não é derivada. “O Filho é Deus por derivação: sua divindade deriva da do Pai, não por criação mas por geração”, diz F.A. Figueiredo (cf. 2Apol 6,1).
Ao entrar no mistério do Filho, é prudente, como Moisés, tirar as sandálias dos pés, em atitude de apofática adoração. Tirar as sandálias é render-se ao mistério, é assumir atitude de oração, calar a imaginação, cerrar os olhos às coisas sensíveis, ligando os ouvidos no silêncio de Deus. E ali, no santuário do coração, onde mora o Espírito Santo, falar com Deus, sentindo o seu amor, entregando-se a Cristo. Adorar a Deus, agradecendo pelo grande dom do Filho, deve ser a primeira atitude do fiel. O centro do mistério cristológico está, sem duvida, no amor do Pai e na missão redentora do Filho (A.M. Galvão, 1994).
Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna (Jô 3,16).
1 O Pai
Nenhuma crença ou religião tem um Deus como o nosso. Se formos analisar cada uma delas, veremos que o Senhor, nosso Deus, é o que mais se comunica, o que mais se torna disponível ao toque, ao contato, à sintonia. Nas religiões politeístas, por exemplo, o sentido da revelação das divindades é puramente naturalista e, como tal, sujeito a diversos aspectos, que podem variar conforme suas peculiaridades religiosas.
Mesmo nas religiões monoteístas, como o judaísmo, o islamismo e outras, de cunho protestante ou pentecostal de bases fundamentalistas, constata-se um Deus restritivo, castigador, sujeito a humores, de comportamento instável, que tanto perdoa como castiga e impõe, por meio de seus prepostos, proibições como não beber (alguns proíbem até refrigerantes gasosos), não cortar o cabelo, não usar calças compridas (para mulheres) ou não comer determinada comida.
Nosso Deus não é assim! Conforme A.M.Galvão:
Nosso Deus é um Deus revelado, que colocou toda a natureza e toda a criação nas mãos do homem, para delas usufruir com liberdade e respeito, sem maiores proibições ou ameaças, excerto naquilo que fere o amor, a fraternidade, a convivência entre os homens e a natureza, casa original do ser humano.
O Pai, na pedagogia trinitária, é aquele que gera. É a primeira pessoa da trindade, citado em primeiro lugar no “sinal-da-cruz” e a quem a piedade popular chama mais especificamente de Deus, reservando os termos Filho ou Jesus Cristo para a Segunda Pessoa e o Espírito Santo para a terceira Pessoa – embora todas sejam igualmente Deus, com poder, glória e majestade análogos.
Deus existe desde o “princípio” (cf. Gn 1,1; Jô 1,1), e essa existência se impõe como um fato fundamental que dispensa qualquer explicação. Desse modo, não tem origem nem devir. O Antigo Testamento ignora as teogonias, que nas antigas religiões, especialmente palestinas, explicavam a construção do mundo por meio da gênese dos deuses.
Na patrística encontramos, segundo Taciano (+ 192), um discípulo de São Justino, que afirmou existir em Deus dois logos (ou formas de comunicação). O primeiro, o logos proforikós, retrata sua relação para fora, com a criação (Diatesseron, II, 3).
Por ser “primeiro e último” (cf. Is 41,4; 44,6; 48,12; Ap 1,17), Deus, e no caso de nossa análise presente, o Pai, não tem que se apresentar. Impõe-se ao espírito do homem pelo simples fato de ser Deus. Conhecer a Deus é ser conhecido por ele (cf. Am 3,2) e descobri-lo na origem da própria existência. Fugir dele é ainda sentir-se perseguido por seu olhar (cf. Gn 3,10; Sl 138,7).
Mesmo assim, no episódio da “sarça ardente”, durante o cativeiro do Egito, ele se apresenta a Moisés, no inicio de um grande projeto libertário:
Eu sou, ajuntou ele, o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Moisés escondeu o rosto, e não ousava olhar para Deus (Ex 3,6).
Desse modo, não podemos dizer “Só pelo fato de um existir, não posso afirmar que Deus me conhece”, como se diz na relação com qualquer outra pessoa humana, mas “eu existo porque Deus me conhece”. Aí ocorre um nexo causal.
Por ser o Pai quem é, revelando-se por meio de Jesus Cristo e agindo pelo Espírito, dá a conhecer nitidamente sua personalidade (se é correto usar essa expressão), seus projetos e seus desígnios. Por pouco ainda que se saiba sobre ele, desde o instante em que é descoberto, sabe-se que ele quer algo de precioso e que sabe exatamente aonde vai e o que faz.
A absoluta anterioridade do Pai (junto com o filho e o Espírito) está expressa nas tradições do Pentateuco e de suas versões específicas. A tradição J (javista) põe em cena Yahweh (latinizado Javé) que, desde o início do mundo (Gn 2,4b), bem antes da já mencionada ocasião da “sarça ardente” (Ex 3,15), mostra-se ocupado em perseguir seu projeto: “Meu Pai continua agindo até agora...” (Jô 5,17).
A tradição P (Priester kodex, sacerdotal), pelo contrário, sublinha a novidade trazida pela revelação do culto a Deus a partir da Aliança no Sinai. Ao aproximar-se à era Cristã, Israel começa a adquirir a consciência de que Deus é Pai de seu povo e de cada um de seus fiéis. A designação de Pai é mais freqüente nos escritos rabínicos tardios, nos quais se encontra a fórmula “Pai nosso que estais nos céus...” tal e qual foi ensinada por Jesus a seus discípulos (cf. Mt 6,9).
O pai é aquele que gera (cf. Gn 1,27; 2,7), doador da vida (cf. Lc 1,35), amor por excelência (cf. Jô 3,16; 1Jo 4,8-16), rico em misericórdia (cf. Ef 2,4), libertador de seu povo (cf. Ex 3,7s) e cumpridor de suas promessas (Lc 1,55; At 13,33). A oferta do amor de Deus é gratuita. Ele não nos ama por causa de nossos “méritos”, mas porque ele é essencialmente amor e rico em misericórdia. O que salva é o amor de Deus.
Pelos atos de piedade o homem chega perto de Deus. São múltiplas e variadas as formas de piedade, como oração, boas obras, conversão, caridade, sacrifícios oferecidos como tal, recepção dos sacramentos e diversos atos de louvor e adoração. Por piedade define-se a vida cristã vivida, conforme o estado de cada um, de forma plena e fiel. Na prática da piedade, ainda que de forma imperfeita, o crente imita a Deus, e com isso revela ao mundo a fisionomia do Pai que está no céu.
Deus Pai é pleno de amor, capaz de, na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4) dar seu Filho para nos salvar e assim resgatar toda a criação decaída pelo pecado. Santo Agostinho afirma: “Ó feliz culpa de Adão, que com seu pecado ensejou a vinda de Cristo” (O Felix culpa!). Por mais que amemos a Deus ou se tenha amor por suas criaturas, é salutar recordar que ele nos ama muito mais, “e nos amou primeiro” (cf. 1Jo 4,19). O Pai se revelou assumindo nossa humanidade, na encarnação em Nazaré. Ali Deus se humanizou para que o homem se divinizasse.
No Novo Testamento há várias doxologias de ação de graças à Santíssima Trindade (2Cor 1,21s; Gl 4,6; Ap 1,4s), das quais destacamos a contida na Segunda epístola de São Paulo à Igreja da Tessalônica:
Nós, porém, devemos dar incessante graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, a quem desde o princípio Deus escolheu para salvar pela santificação do Espírito e pela fé verdadeira. Por meio de nossa evangelização, ele também vos chamou para alcançardes a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo. (2Ts 2,13s).
Em Santa Tereza de Ávila encontramos uma séria advertência a respeito da obrigação de amarmos a Deus:
As almas dos justos sabem e crêem que Deus sempre dá provas de maior amor. Quem se recusa a crer jamais terá a experiência desse amor. Isso posso garantir. O Senhor gosta muito de quem não põe limites às suas obras.
A presença de Deus no mundo, na vida das pessoas e em todos os salutares projetos humanos, é penhor de segurança, de amor e de providência. O rei Davi, enaltecendo essa proteção divina, elaborou um dos mais belos poemas que a inteligência humana conseguiu criar, salmo aberto com afirmação reveladora e imanente: “O Senhor é meu pastor, nada me faltara” (Sl 22,1).
Mesmo nas desgraças, Deus se faz presença consoladora. É um equívoco, senão uma blasfêmea, afirmar, diante do sinistro ou morte, que aquilo é “vontade de Deus”. Deus não quer o mal do homem. Se este ocorre, devemos perquirir antes nossa fragilidade corpórea, alguma negligência humana ou fato de alguém ter usado de forma indevida sua liberdade. Deus não quer a morte, mas que o ser humano se converta e viva (cf. Ez 33,11). Até em suas quedas e transgressões o homem recebe os socorros e as graças especiais que vêm de Deus. É o que diz A..M.Galvão (1999): Mesmo caído, ele pode perceber, no meio do pó de seu pecado, a voz amorosa do Pai a consola-lo; seu braço forte está pronto para ergue-lo, se ele quiser ser erguido.
Vigorosamente, retrata-se então a misericórdia de Deus, que Jesus traduziria na parábola do “Pai Misericordioso” que acolhe carinhosamente o filho que partiu e não teve sucesso (cf. Lc 15,11-32).
No salmo 138, numa homenagem à presença de Deus junto ao ser humano, o rei-poeta Davi elaborou um hino de louvor e gratidão à ciência e à providência divina.
Senhor, vós me perscrutais e me conheceis,
Sabeis tudo de mim, quando de sento ou me levanto,
De longe penetrais meus pensamentos.
Quando ando e quando repouso, vós me vedes,
Observais todos os meus passos.
A palavra ainda me não chegou à língua,
E já, Senhor, a conheceis toda.
Vós me cercais por trás e pela frente,
E estendeis sobre mim a vossa mão.
Conhecimento assim maravilhoso me ultrapassa,
Ele é tão sublime que não posso atingi-lo.
Para onde irei, longe de vosso Espírito?
Para onde fugir, apartado de vosso olhar?
Se subir até os céus, ali estareis;
Se descer à região dos mortos, lá vos encontrareis também.
Se tomar as asas da aurora,
Se me fixar nos confins do mar,
É ainda vossa mão que lá me levará
E vossa destra que me sustentará.
Se eu dissesse: “Pelo menos as trevas me ocultarão”,
E a noite, como se fora luz, me há de envolver.”
As próprias trevas não são escuras para vós:
E a noite vos é transparente como dia,
E a escuridão, clara como a luz.
Foste vós que plasmastes as entranhas de meu corpo,
Vós me tecestes no seio de minha mãe.
Sede bendito por me haverdes feito de modo tão maravilhoso.
Pelas vossas obras tão extraordinárias,
Conheceis até o fundo a minha alma (Sl 138,1-14).
O aspecto mais sublime da dignidade humana está nesta vocação do homem à comunhão com Deus. Este convite que Deus dirige ao homem, de dialogar com ele, começa com a existência humana. Pois se o homem existe é porque Deus o criou por amor e, por amor, não cessa de dar-lhe o ser, e o homem só vive plenamente, segundo a verdade, se reconhecer livremente este amor e se entregar ao seu Criador (GS 19).
1.1 O diálogo entre Deus e os homens
“Adão, onde estás?” A voz do Todo-Poderoso ressoou no paraíso. Deus buscava o homem, a quem havia plasmado à sua imagem e semelhança. Queria falar com ele, como todos os dias, quando “passeava pelo jardim” (Gn 3,8). Adão-o homem - havia desobedecido a seu Criador e se escondera. O pecado do homem destruiu brutalmente a familiaridade com Deus na qual havia sido criado. Isto é o que quer nos dizer o Gênesis em suas primeiras páginas.
O homem perdeu a parrhesía, essa doce e inteira liberdade de expressão que lhe permitia falar a Deus como um filho fala a seu pai, como um amigo fala com seu amigo.O homem perdeu Deus, seu criador e pai, e Deus perdeu o homem, sua imagem, seu filho, seu interlocutor. E desde então Deus procurou o homem, e o homem tem que procurar a Deus.
‘Buscar a Deus’ é uma ocupação arrebatadora. Abarca toda a vida e toda a pessoa. É como o amor a Deus: “Ouve, Israel! O senhor nosso Deus é o único Senhor! Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força”(Mc 12, 29-30). Acaso não é o amor, o desejo que tem sua origem no amor, o que impulsiona nossa busca? Não seriam amor e busca de Deus dois conceitos tão próximos um do outro que se completam?
Há que se buscar Deus onde ele está: nas pessoas, nos acontecimentos, na Eucaristia, no intimo de nosso próprio ser... Onde Deus não esta? Devemos busca-lo, evidentemente, no cumprimento de sua vontade:
Felizes os íntegros em seu caminho, os que andam conforme a lei de Iahweh!
Felizes os que guardam seus testemunhos, procurando-o de todo o coração!
(Sl 118,1-2)
Entretanto, a busca pessoal de Deus e o encontro pessoal com Deus se verificam no diálogo. O diálogo como acentuou energicamente Martin Buder-é o lugar privilegiado para o qual convergem os desejos do “verdadeiro Deus” e do “verdadeiro homem”. O “verdadeiro Deus”. O
Deus vivo”, que fala e a quem se pode falar; o Deus pessoal que quer comunicar-nos a plenitude da existência pessoal e se abaixa para elevar-nos a seu próprio nível. O “verdadeiro homem”, “imagem de Deus”, aparição de Deus, que torna visível o Deus invisível, e quer encontrar seu criador, de quem se havia afastado. Assim convergem a sede de Deus de encarnar-se no homem, e a sede de infinito que atormenta o coração humano, o Deus desiderans e o Deus desideratus, como diziam os autores medievais. O Deus que nos persegue porque nos deseja, e o homem que busca ansiosamente ao Deus de quem necessita.
Para a tradição cristã primitiva, o diálogo com Deus tem dois tempos: a leitura e a oração. Já São Cipriano de Cartago aconselhava a Donato: “sê assíduo tanto à oração como à leitura. Ora falas tu com Deus, ora fala Deus contigo” (Ad Donatum, 15).
São Jerônimo diz do anacoreta Bonoso: “Ora ouves a Deus quando percorre pela leitura os livros sagrados, ora falas com Deus quando fazes oração ao Senhor” (Ep. 3,4) Santo Ambrósio de Milão escreve: “A Deus falamos quando oramos, a Deus escutamos quando lemos suas palavras (De officiis ministrorum 1,20,88). Santo Agostinho, comentando o Salmo 85, diz: "Tua oração é um diálogo com Deus. Quando lês, Deus te fala; Quando oras, tu falas a Deus “(Enarr. In ps. 85,7). Mas a mais bela formulação do diálogo entre Deus e o homem é a de São Jerônimo, quando escreve à sua discípula Eustóquia, a nobre virgem romana:” Seja tua guarda o segredo de teu aposento, e lá dentro recreie-se contigo teu Esposo. Quando oras, falas a teu Esposo; quando lês, ele fala contigo” (Ep. 22,25).
Os mesmos conceitos se encontram repetidos inumeráveis vezes nos autores antigos e medievais. Assim, por exemplo, em uma carta sobre a vocação monástica: “Fala a Deus orando, e escuta lendo a Deus que te fala”. E Bernardo Aygler, abade de Monte Cassino: “Da mesma forma como falamos com Deus quando oramos, Deus fala conosco quando lemos a Sagrada Escritura. Por isso SãoBento não só nos exorta a entregar-nos à oração, mas também quer que nos ocupemos assiduamente com a leitura”. Em nossos dias, o concílio vaticano II cita o texto de Santo Ambrósio: “Lembrem-se que a leitura da Sagrada Escritura deve acompanhar a oração para que se realize o diálogo de Deus com o homem, pois ‘a Deus falamos quando oramos, e a Deus escutamos quando lemos suas palavras”’.(Dei verbum, 25). E o congresso dos abades beneditinos de 1967 expressava a mesma idéia, ainda que mais profusamente e menos poeticamente que São Jerônimo: “Como todos os batizados, mas de modo muito especial, o monge está sempre atento à Palavra de Deus, para recebe-la, guarda-la, prestar-lhe obediência e vive-la, e entrar assim na salvação que ela oferece. O monge faz retornar a Deus essa palavra em oração”, Tanto particular como conventual”.
Para orar, não é preciso fazer nada além de ler, escutar, ruminar e em seguida voltar a dizer a Deus tudo o que Ele mesmo nos disse antes, imprimindo nestas palavras todo o nosso pensamento, todo o nosso amor, toda a nossa vida. Desse modo, a Palavra de Deus se converte em lugar e meio de encontro com Ele. Lectio, meditatio e oratio, mais que atos distintos, são diversos aspectos de um mesmo gesto: o do homem que fala com Deus tendo ante os olhos-ou ao menos em mente-a Palavra de Deus escrita.
1.1.2 Objeto da “leitura divina”
Vamos tratar agora do conceito mesmo de lectio divina, seu objetivo, sua natureza, suas características mais notáveis.
Lectio, como “leitura”, é um substantivo ambíguo, podendo designar tanto a ação de ler como o escrito que se lê. Divina é um adjetivo que qualifica o substantivo lectio. E significa “de Deus”. A expressão lectio divina quer dizer, literalmente, “leitura divina”, “leitura de Deus”. Ou seja, significa uma leitura que tem a Deus por objetivo. Lemos a Cervantes ou Marx; na lectio divina lemos Deus. Porque Deus é o autor de um livro, ou, mais exatamente, de uma biblioteca: a coleção de escritos de naturezas diversas que formam o antigo e o novo testamento. São Gregório Mágno chama a Escritura scripta Dei (os escritos de Deus), scripta Redemptoris nostri (os escritos de nosso Redentor), e a considera uma carta que Deus nos enviou.
A Bíblia contem a Palavra de Deus escrita. Portanto, a matéria específica, imediata, da lectio divina, não pode ser outra além da Escritura. Somente por ter como objeto a Palavra de Deus contida na Bíblia, pode chamar-se “leitura divina”, “leitura de Deus”. Um crítico avisado, A. Mundo observava que os monges antigos, diferentemente de muitos modernos, davam a lectio divina “um sentido estritíssimo”, a saber: “a leitura da Palavra de Deus contida nos livros da Sagrada Escritura, e por concomitância os comentários sobre ela”. Só “por concomitância”, subsidiariamente, enquanto ajudavam a compreender melhor a Escritura, se admitiam como matéria da lectio divina os comentários dos Padres da Igreja.
Por ser a Bíblia seu objeto próprio, a lectio divina tomou sua forma específica, já que não se pode ler a Deus como se lê a um autor qualquer. A “leitura de Deus” não pode ser como as demais leituras. E assim, à medida que se foram acumulando experiências pessoais desse contato com a Palavra de Deus, à medida que se conheceram as maneiras dos homens envolvidos com a Palavra de penetrar em suas profundezas insondáveis, para saboreá-la, para assimilá-la e pôla em prática, foram sendo definidos os diversos traços característicos que configuram a “leitura divina”.
1.2 Deus está na Bíblia
Pelágio e a Regra dos Quatro Padres não usam a expressão lectio divina, mas servem-se de uma fórmula equivalente: vacare Deo, “dedicar-se a Deus”. Porque, como comenta A de Vogue, “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”. É uma frase feliz. Como também o é a de G Bessiére quando chama a Escritura de “o livro dos que buscam a Deus”. Se Deus se encontra na Bíblia, a “meta da lectio divina” não pode ser outra senão “a busca de Deus em sua Palavra escrita”, como declaravam os abades beneditinos no congresso de 1967, ou, como diz Yeomans com um jogo de palavras: “a reverente, piedosa busca da Palavra na palavra”.
Como “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”, compreende-se como aqueles que buscavam a Deus se lançassem à Bíblia com verdadeira paixão. Assim sucedeu com os monges, considerados como os profissionais da procura de Deus. Desde as origens até os fins da idade média, quando aconteceu a grande decadência dos mosteiros e a lectio foi abandonada e logo substituída pela “leitura espiritual”, a Bíblia desfrutou entre eles de prestígio incomparável. A leitura e a “meditação” da Escritura constituiu, para gerações e gerações de monges, uma ocupação assídua e das mais essenciais e estimadas. A Bíblia era para eles não somente a regra suprema de vida, um espelho onde contemplar-se, o livro de edificação por excelência, o alimento da alma – um manjar tão nutritivo que, segundo São João Crisóstomo, às vezes basta uma só palavra da Escritura “como alimento para todo caminho da vida”; não só era um “porto seguro”, um “muro intransponível, uma torre inabalável, glória que ninguém pode roubar, arma que nunca falha, segurança absoluta, prazer inefável e quanto de bom se pode pensar”, segundo assegura São Basílio de Cesaréia; não só constituía “remédio divino” para as feridas da alma, uma “armadura” protetora contra os dardos dos inimigos, as “ferramentas” próprias do ofício de cristão, um “tesouro” inesgotável que não deve enterrar-se, no dizer de São João Crisóstomo;pão de vida, vinho que embriaga, força na provação, luz na noite e fogo que consome o coração, segundo São Gregório Magno...Era também, e sobretudo, um lugar privilegiado de encontro com Deus. “Nas Escrituras” – escreveu Orígenes –“com rosto descoberto contemplamos a glória do Senhor”. A Bíblia, assegura o biógrafo de Santo Odilon de Cluny, é “o livro da contemplação de Deus”.
... A interpretação das coisas visíveis e invisíveis, da vida e da história humana, “do ponto de vista de Deus” que a leitura da Bíblia oferece; o conhecimento do desígnio de Deus sobre a humanidade e sobre cada um dos homens –desígnio que consiste no desejo de comunicar-se ao homem, unir-se a ele, prolongar até ele a comunhão de vida que constitui o mistério intimo de Deus -, produz na alma uma grande paz. O leitor devoto e assíduo das Escrituras sabe, com certeza inabalável, que alguém sai ao seu encontro, que alguém está com ele. Sua alma se sente fortalecida como na presença de um Amigo. Tudo isso, é claro, fomenta uma vida de união consciente, intensa, com Deus.
Mais ainda: a lectio divina, praticada com fidelidade, produz a experiência de Deus.
“Experiência” é uma expressão utilizada abusivamente nos dias de hoje. Na realidade, não implica em nada esotérico. Significa simplesmente a “graça da oração íntima”, o affectus divinae de que fala São Bento, o provar e saborear as realidades divinas, como ensina constantemente a tradição patrística. É um sentimento de estar unido a Deus por meio de Cristo na oração.
A oração, a oração viva e verdadeira, que brota do contato com a Palavra de Deus, é um de seus melhores frutos. Ou melhor, faz parte da lectio.Como também é elemento constitutivo dela a meditatio, com a qual criamos em nosso espírito um espaço onde ressoe a Palavra de Deus.
L.Alonso Schoekel resume a tradição patrística e monástica quando escreve: “Que ao ecoar essa Palavra, o espaço de nosso espírito se dilate para dar lugar a uma ressonância maior. Nesse espaço interior Deus está presente com sua palavra. Então o nosso espírito toma outra palavra de Deus, para responder-lhe, em forma de hino e oração, e outra vez a deixa ressoar inteiramente, para que essa palavra, agora nossa, chegue a Deus no espaço interior. Assim continua o diálogo, a união com Deus, que é graça e salvação, a união pessoal em uma palavra, que é verdadeiramente divina e humana. Deus falando em nossa língua, de modo humano, nos procurou e nos encontrou; e ao sermos encontrados por Deus, também nós o encontramos, no mistério de sua Palavra”.
1.2.1 Cristo esta na Bíblia
Abrir a Bíblia – poderia dizer-se igualmente – é encontrar a Cristo. Os Padres estavam persuadidos disso. E o Vaticano II ensina que Cristo “esta presente em sua palavra, pois quando se lê na Igreja a Sagrada Escritura, é Ele quem fala” (Sacro-sanctum Concilium, 7).
São Jerônimo tem uma fase famosa: “Ignoratio scripturarum, ignoratio Chriti est” (In Is., prol., 1): desconhecer a Bíblia é desconhecer a Cristo. Cristo está na Bíblia. Paul Evdokimov escreve: “pode-se afirmar que para os Padres a Bíblia é Cristo, pois cada uma de suas palavras nos conduz até Ele, que as pronunciou, e nos põe em sua presença (...). Consome-se ‘eucaristicamente’a ‘palavra misteriosamente partida’ com vistas à comunhão com Cristo”. Todos os antigos assinalam a íntima relação existente entre Bíblia e Eucaristia: Clemente, Orígenes, Santo Agostinho, São João Crisóstomo, São Jerônimo... “Ao ler a Bíblia, os Padres não liam os textos, mas a Cristo vivo, e Cristo lhes falava; consumiam a Palavra se oferecida com a profundidade de Cristo”.
As Escrituras são a carne e o sangue de Cristo. “Eu creio” – diz São Jerônimo –“que o Evangelho é o corpo de Cristo (...) E ainda que as palavras ‘Quem não come minha carne e beber meu sangue’ possam entender-se também do mistério [da Eucaristia], contudo, as Escrituras, a doutrina divina, são verdadeiramente o corpo e o sangue de Cristo” (Tr.de os. 131). E em outro lugar: “E nosso dever conhecer as veias e carnes da Escritura” (Tr. In Marci Evang.,4). São Gregório Magno, com realismo impressionante, dizia ao povo: “Vós que tendes o costume de assistir aos divinos mistérios, sabeis bem que é necessário conservar com sumo cuidado e respeito o corpo de nosso Senhor que recebeis, para não perceber dele nenhuma partícula, a fim de que nada do que tenha sido consagrado caia por terra. Pensais vós acaso que seja um delito menor tratar com negligência a palavra de Deus, que é seu corpo?” (Hom. In Ez. 13,3).
A comparação Escritura-Eucaristia é, como se vê, constantemente na tradição cristã. Ambas contêm o Verbo de Deus. O Pe. Congar nota que, se o homem não vive só de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus, a Bíblia é, como a Eucaristia, o pão da vida descido do céu, e que se Deus atua para unir-nos a Ele nos sacramentos da Igreja, atua também, e não com menor eficácia, no sacramento de sua Palavra. A celebração Eucarística consta de duas partes: Eucaristia e Palavra de Deus, que formam um sacramento completo. Na Bíblia, como na Eucaristia, encontramos o verdadeiro pão da vida eterna, aquele de que devem alimentar-se os que foram chamados a viver além deste mundo a vida mesma de Deus. E o vaticano II destacou, e de certo modo consagrou essa relação íntima entre Escritura e Eucaristia quando declara: “A Igreja sempre venerou a Sagrada Escritura, como o fez com o corpo de Cristo, pois sobretudo na sagrada liturgia nunca cessou de tomar e repartir a seus fiéis o pão da vida, que oferece a mesa da Palavra de Deus e do corpo de Cristo” (Dei Verbum, 21). E também: “Como pela assídua freqüência do mistério eucarístico se incrementa a vida da Igreja, assim é de se esperar um novo impulso da vida espiritual a partir da progressiva veneração da Palavra de Deus, que permanece para sempre” (n. 26).
1.3 Deus falou, Deus me fala
Deus falou diretamente a homens escolhidos, privilegiados. E através deles a todo o seu povo, à humanidade inteira. Esses homens foram, no sentido amplo do termo, os profetas. Tiveram os profetas clara consciência de que Deus se comunicava com eles. De diversos modos, segundo cada caso. Quando queria e como queria. Tinham a sensação de que a Palavra de Deus se apoderava deles, até fazer-lhes violência. Em outros casos – o caso dos sábios de Israel, especialmente – a Palavra de Deus se manifestava por vias aparentemente mais próximas da psicologia normal. Profetas e sábios, em comunicação direta com o Deus vivo, nos transmitiram mensagens divina. Deus falou através de profetas e sábios, Deus foi manifestando sua vontade, revelando o sentido das coisas e da vida, prometendo e anunciando o futuro. Deus foi se revelando. Essa revelação alcançou o ápice em Jesus Cristo. “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos” (Hb. 1,1-2). Poder que opera, luz que revela, Jesus enquanto Filho se identifica com a Palavra de Deus, é Ele mesmo a Palavra de Deus.
Na divina Biblioteca encontramos a Palavra de Deus. Aqueles que procuram a Deus têm seu Livro: a Sagrada Escritura. Na Bíblia encontramos a Deus. Porque a Biblia é o lugar que o próprio Deus escolheu para seu encontro com o homem. Dietrich Bonhoffer tem a esse respeito algumas linhas preciosas: “Se fosse eu que tivesse que determinar onde encontrar a Deus, encontraria sempre um Deus que estivesse de acordo com minha maneira de ser. Mas, se é Deus que estabelece o lugar do encontro, nesse caso não será um lugar para agradar a natureza humana, um lugar conforme o meu gosto. Este lugar é a cruz de Cristo. E todo aquele que quiser encontrá-lo deverá correr ao pé da cruz, como o exige o Sermão da Montanha. Isso em nada agrada à nossa natureza, mas lhe é inteiramente contrário. Tal é a mensagem bíblica, não somente no Novo Testamento, mas também no Antigo (...).
A característica primeira e fundamental da lectio divina é a fé que deve anima-la. Sem fé viva, radical, em que Deus escreveu a Bíblia, em que o autor último, principal e verdadeiro da Escritura é o próprio Deus, como seria possível “ler a Deus”?
Mas não basta estar persuadido de que Deus escreveu, de que Deus falou. É preciso fazer um ato de fé em Deus que continua falando. Não se lêem suas palavras como as de um autor de outros tempos. Deus não esta morto. É o “Deus vivo”. Sua palavra está viva. “A Palavra de Deus é viva, eficaz”, diz a Carta aos Hebreus (4,12). Sem crer firmemente que “abrir a Bíblia é encontrar a Deus”, que “nos livros sagrados, o Pai que está nos céus sai amorosamente ao encontro de seus filhos para conversar com eles”, que “Cristo está presente em sua palavra”, a verdadeira “leitura de Deus” resulta completamente impossível.
Deus está presente na Escritura. Cristo está presente na Escritura. Por isso escrevia Paulo Giustiniani, reformador dos camaldulenses: “O monge deve aproximar-se da Palavra, não para entreter-se, nem para estudar, mas como se subisse ao altar de Deus, com grandes preparativos de alma e corpo, com profundíssimo respeito”.
Deus falou; Deus fala; Deus me fala. Dirige-se a mim, pessoalmente, aqui e agora. Assim pensavam os monges antigos, profissionais da “leitura divina”. Estavam convencidos de que cada um dos vocabulários contidos na Escritura é uma palavra que Deus dirige a cada um dos leitores para sua salvação e santificação. Sendo a Bíblia “ciência de salvação”, acreditavam sem a menor vacilação que tudo tem nela um valor pessoal, atual, para a vida presente e com vista à vida eterna.
Deus dirige a cada um de seus leitores uma mensagem pessoal e única. Esta mensagem pessoal está contida na grande mensagem universal, endereçada à comunidade dos homens. São Gregório Magno já o explicou: Deus nos disse tudo. Falou uma vez, e é suficiente. Não há que se esperar outra revelação. “Deus não responde ao coração de cada um por revelações particulares, porque preparou uma palavra que pode solucionar todos os problemas. Na Palavra de sua Escritura, com efeito, se soubermos procurar, encontraremos resposta para cada uma de nossas necessidades. Para dar um só exemplo: se estamos afligidos por um sofrimento qualquer ou por uma enfermidade corporal, encontramos alívio quando conhecemos suas causas ocultas. Como em cada uma de nossas provações não somos respondidos em particular, recorremos à Sagrada Escritura. Aí encontramos Paulo que, tentado pela fragilidade da carne, ouve esta resposta: ‘Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder’(2Cor 12,9). Deus recolheu na Escritura Santa tudo o que pode suceder a cada um de nós e nos deu por modelo os exemplos dos que nos precederam” (Mor. 23, 19, 34). Admirável lição sobre a atualidade da Palavra de Deus.
É claro que Deus não está aprisionado na Bíblia. Deus é um Deus vivo que fala, “ora pela Escritura, ora por uma inspiração secreta”. Mas a norma de toda “inspiração secreta com a eminente verdade da Eucaristia Santa”. Até aqui, São Gregório Magno.
A “leitura de Deus” tenta individualizar e interiorizar a grande mensagem dirigida a todos os homens. Com muita precisão escreveu David Stanley: “Por meio de minha reação de fé, amor e esperança, o mistério se converte em evento par mim. Acontece comigo”. Diz um documento da antiguidade cristã, a Carta a Diogneto (11,4): “Aquilo que se nos apresenta como novo, que descobrimos que existe desde sempre e que renasce diariamente nos corações dos fiéis”,... O objetivo da lectio divina é na realidade o que Santo Inácio denomina “um conhecimento interno do Senhor, que por mim se fez homem para que mais o ame e siga” (Exercícios, 104). O autor do Deuteronômio expressou muito bem a profunda percepção de Israel de como nas Escrituras o acontecimento do passado se converte em experiência contemporânea. Ainda que compondo seu livro quinhentos ou seiscentos anos depois do acontecimento da Aliança no monte Sinai, é capaz de representar a Moisés falando, através dos séculos, a seus próprios contemporâneos (do autor): “Ouve, ó Israel, os estatutos e as normas que hoje proclamo aos vossos ouvidos (...). Iahweh nosso Deus concluiu conosco uma Aliança no Horeb. Iahweh não concluiu essa Aliança com nossos pais, mas conosco, conosco que estamos hoje aqui, todos vivos” (Dt 5, 1-3). “É justamente para criar uma experiência semelhante, contemporânea e pessoal, em mim, como membro do povo de Deus, que foi instituída a lectio divina”.
Continua dizendo o Pe. Stanley: “Por conseguinte (e este é o segundo passo), deve-se refletir com fé sobre o sentido literal já descoberto, para escutar o que Cristo ressuscitado me diz através de seu Espírito, quando leio uma passagem em dado momento”. Trata-se de escutar a Cristo para prestar-lhe a “obediência da fé” (Rn 1,5). A lectio divina é o defrontar-se com Deus em Cristo. Que me diz Deus hoje nesta passagem da Bíblia? “Abertos nossos olhos à luz de Deus, escutemos atentos o que diariamente nos admoesta a voz divina que clama” (RB Prol.,9).
O caso de Santo Antão ilustra essa doutrina. Antão, como é bem conhecido, era um jovem copta, bom e piedoso. Um dia, dirigia-se à igreja e pelo caminho ia pensando na vida que levava m os primeiros cristãos de Jerusalém, segundo a descrevem os Atos dos Apóstolos. Formavam uma comunidade maravilhosa: perseveravam na doutrina dos apóstolos, na fração do pão e na oração; possuíam tudo em comum; tinham um só coração e uma só alma... Antão chegou atrasado à Escritura, quando já se estava proclamando o Evangelho do jovem rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me”, A passagem evangélica acaba mal: o jovem rico recusou o convite de Jesus, “pois possuía muitos bens”. Mas Antão o aceitou. O Espírito Santo o fez compreender que as palavras do Evangelho se dirigiam a ele pessoalmente. Daí em diante toda a vida de Antão não será outra senão uma resposta a essa voz.
Outro exemplo. Alexandre, que com o tempo fundaria o célebre mosteiro dos Acemetas, próximo de Constantinópla, também se sentiu chamado à vida monástica enquanto lia o Evangelho. E no Evangelho continuou inspirando-se, muito concretamente, e ao longo de sua vida. “Padre” – costumava perguntar ao arquimandrita Elias – “ é verdade tudo o que está escrito no Evangelho?” E se é verdade, por que não o cumprimos?” Alexandre optou finalmente por empreender, com não poucos companheiros, a santa aventura de viver como os pássaros do céu e os lírios do campo, louvando a Deus continuamente.
Terceiro e ultimo exemplo: Santa Teresa do Menino Jesus. “Sou demasiado pequena” – escreve – “para subir a rude escada da perfeição... Procurei nos livros santos e ali estas palavras saídas da Sabedoria eterna: ‘Se alguém é pequeno, que venha a mim’... Havia encontrado o que procurava... Continuei procurando e encontrei esta frase: ‘Como mãe acaricia se filho, assim eu os consolarei, e os levarei no colo e os embalarei sobre meu joelho’. Nunca palavras tão ternas, tão melodiosas alegraram minha alma. O elevador que deve levar-me até o céu são teus braços, ó Jesus. Portanto, não tenho necessidade de crescer; ao contrario, o que preciso é continuar sendo pequena, esforçar-me em sê-lo cada vez mais”. As palavras de Isaias, como se vê, foram a inspiração e a base da definição perfeita da “infância espiritual”, tal como Santa Teresa a entender e Cristo a exige: “Ser criança é reconhecer seu próprio nada, esperar tudo de Deus, como o menino pequeno espera tudo de seu pai”. Teresa do Menino Jesus soube individualizar e interiorizar a mensagem da Escritura. Descobriu que a voz de Deus se dirigia a ela pessoalmente. E assim nasceu sua doutrina da “infância espiritual”, que ela foi a primeira a viver, e que tanto bem fez e continua fazendo na Igreja.
A “leitura divina” não procura uma finalidade cientifica, não se propõe alcançar um objetivo puramente – nem sequer principalmente – de tipo intelectual. A Bíblia não é um tratado de teologia, um estudo sobre Deus. É muito mais: é a grande mensagem que Deus nos deixou. A lectio consiste, por conseguinte, em escutar e saborear essa mensagem. É sentar-se, como Maria, aos pés de Jesus, e não perder uma única das palavras saídas de seus lábios.
Comumente, costumamos ler, não para ler, mas para ter lido. Isto é, buscamos em nossas leituras um fim prático, utilitário: ampliar nossos conhecimentos, seja lá por que razão for. A “leitura divina” é, neste sentido, uma leitura completamente desinteressada, gratuita. Dela poderia dizer-se o que São Bernardo diz sobre o amor: “o amor não busca sua justificação fora de si mesmo. O amor é suficiente em si mesmo, é agradável em si mesmo. O amor é seu próprio mérito e sua própria recompensa; não busca uma causa fora de si mesmo nem outro resultado a não ser o amor mesmo. O fruto do amor é o amor”. E acrescenta que esse caráter auto-suficiente do amor se explica porque tem a Deus por origem e volta a ele como a seu fim, porque Deus é o Amor. O mesmo ocorre com a “leitura de Deus”. A pessoa lê a Deus simplesmente para estar com Ele, para escutar sua voz. É ler por ler (...).
A “leitura divina” busca não tanto obter um conhecimento tão exaustivo quanto seja possível da verdade – tarefa própria da teologia especulativa – como chegar a um contato direto com Deus, a um estar com Deus, a um escutar a Deus que fala pessoalmente, aqui e agora, a cada um dos homens que abre com fé as Escrituras.
Com efeito, Deus nos fala. Mais ainda: Deus nos abre seu coração e nos convida a penetrar nele, a esquadrinhá-lo, a conhecê-lo (...).
Quanto a lectio divina se pratica como ensina a tradição, isto é, quando a “leitura divina” é verdadeiramente “leitura divina” e não mera “leitura espiritual” nem está dominada por preocupações intelectuais ou utilitárias; quando a lectio é atenção a Deus e contato pessoal e íntimo com sua Palavra, a oração brota espontânea e irresistivelmente. E mais, a oração torna-se parte da lectio. Com efeito, não se lê a Deus como a um autor qualquer. Muito se tem insistido em que ler é colocar-se em íntima comunicação com o autor, e é verdade. Para ler bem, para que um autor nos comunique de verdade seu pensamento e responda às nossas interrogações, é preciso considerar que estamos conversando com ele. Claro que isso é uma ficção, porque o autor não nos conhece nem esta presente, e portanto não pode responder às nossas perguntas, mas enquanto as respostas já estão contidas em seu texto. Com a Bíblia é diferente. Deus, que está presente nela, é um Deus vivo, um Deus que não só falou, mas que fala, que me fala. Por isso, “leitura de Deus” equivale uma “conversação com Deus”.
2 Um povo que caminha
Estas linhas que se seguem agora são uma primeira introdução à leitura da Bíblia. Destina-se ás nossas comunidades eclesiais de base, Círculos Bíblicos e outros grupos que querem fazer um primeiro estudo da Bíblia. Mas dirigem-se também a todos que querem aprofundar-se no assunto através de uma leitura pessoal.
A Biblia é o livro mais conhecido do mundo inteiro. Já foi traduzido para 1685 línguas. Mesmo assim, continua um livro desconhecido. Muita gente a tem em casa, mas não a abre.
Hoje em dia, a Bíblia desperta, cada vez mais, o interesse do povo cristão. Especialmente nas nossas Comunidades Eclesiais de Base e nos Círculos Bíblicos orienta a reflexão sobre a vida.
De onde vem a Bíblia? Quem a escreveu? Quando? Por que é um livro tão importante? São, em geral, as primeiras perguntas que surgem.
A Bíblia surge no meio de um povo do Oriente, o Povo de Israel. Este povo cria uma literatura que relata sua história, suas reflexões, sua sabedoria, sua oração. Toda essa literatura é inspirada pela sua fé no único Deus que lhes revela: “Estou sempre com vocês!”
O Povo da Bíblia mora perto do Mar Mediterrâneo, no Oriente Médio.
Inicialmente, é um grupo de migrantes, vindos da Mesopotâmia (hoje Iraque). São chamados HEBREUS e descendem de Abraão.
Muita gente quer ser dona da terra onde moram esses hebreus. Os Cananeus, outros moradores de lá, a chamam de CANAÃ. Os Israelitas a chamam de ISRAEL. Mais tarde será chamada PALESTINA: terra dos Filisteus.
Com Abraão se inicia a história do Povo da Bíblia.
Abraão sai da Mesopotâmia, à procura de uma nova terra. Sai com sua família e vai morar em Canaã. Isto se dá lá pelo ano 1850 antes de Cristo (1850 a.c).
Em Canaã nascem os filhos, os netos. A família vai se multiplicando.
Abraão, Isaque e Jacó são chamados Patriarcas. Eles são os primeiros pais e fundadores do Povo da Bíblia. (Jacó é também chamado ISRAEL).
Muita gente se muda para o Egito, onde a terra é mais fértil. Entre eles estão Jacó e sua família.
Com o passar dos tempos, os faraós (reis) do Egito, começam a escravizar o povinho, e, entre outros, aos Hebreus.
Surge no meio do povo um líder que chefia um movimento de libertação. Com a ajuda de Deus, faz o povo fugir da opressão dos reis do Egito. Este líder é Moisés.
O povo caminha pelo deserto durante 40 anos, de volta a Canaã. Moises morre antes de o povo entrar naquela terra. Em seu lugar fica JOSUÉ, como principal líder do povo.
Depois da morte de Josué, o povo é liderado por outros chefes, chamados JUÍSES. O ultimo deles é SAMUEL.
Na atual organização da Biblia, o fator principal da fé em Deus é a libertação do Egito, por meio de seu servo Moisés. É nesse contexto que Deus é conhecido como herói, como pastor, como aquele que está com seu povo e mostra sua presença nos sinais, nem sempre agradáveis para os egípcios. Ele é o resgatador, que liberta o povo da escravidão e vinga os filhos mortos pela morte dos primogênitos do Egito. Mas ele é, sobretudo o Deus da Aliança – ainda que este tema não tenha sempre sido cultivado.
A Aliança remonta a Moisés. O antigo culto de Israel era a celebração da renovação da Aliança (Js 24!). Talvez a história do Bezerro de ouro, da quebra das tábuas da lei e da segunda promulgação seja uma forma narrativa de inculcar que Israel é um povo pecador e necessita de uma iniciativa de Deus e de seu profeta para renovar a Aliança, sempre... Mas o fato é que a tematização da Aliança se dá, sobretudo no tempo dos profetas e do Deuteronômio... depois que ela fora quebrada inúmeras vezes.
A Aliança é evocada em Êxodo 19-23 em três momentos: a eleição do povo, a promulgação das exigências, a celebração do sacrifício. “Vós mesmos vistes o que fiz ao Egito, como vos carreguei sobre asas de águia e vos fiz chegar até mim. Agora, pois, se ouvirdes minha voz e guardardes minha Aliança, sereis minha parte pessoal entre todos os povos, sereis para mim um reino de sacerdotes, uma nação santa” (Ex 19,4-6)...
(...) Quando da primeira renovação da Aliança (as segundas tábuas da lei), Deus num texto antigo, se declara: “YHWH, YHWH, Deus misericordioso e benevolente, lento para a cólera, cheio de fidelidade e lealdade...” (Ex 34,6 J).
“Quando Israel era menino, eu o amei; do Egito chamei meu filho” (Os 11,1). Oséias, o profeta da infidelidade do povo, é também cheio de ternura. É o profeta da ahabá, o amor de opção que Deus demonstra a seu povo: amor de Aliança. Deus é o esposo traído, mas maior que a traição: ele é Deus, não um mesquinho ser humano (Os 11,9).
O Deuteronônio é o documento-mor desse amor de Aliança. Deus quis amar um povo. Quis mostrar, num povo, sua presença no mundo como presença de amor. Escolhe o povo não por ser forte, mas por ser fraco e pequeno, necessitado do amor de quem decide com braço estendido e mão forte, YHWH, a rocha e fortaleza (Dt 7,7-8).
É o Deus da misericórdia leal e fiel, hésed wa’ émet (Sl 103,8-18; cf. o refrão do Sl 136).
2.1 Deus Caminha com o seu povo
Deus chama pessoalmente, pelo nome, a cada homem, mas, desde o princípio, “aprouve a Deus santificar e salvar os homens não singularmente, sem nenhuma conexão uns com os outros, mas constituindo-os num povo que o conhece na verdade e santamente servisse”. Quis escolher entre as nações da terra o povo de Israel para manifestar-se a Si próprio e revelar os desígnios da sua vontade. Estabeleceu uma Aliança com ele, que foi renovada diversas vezes.
“Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra os seus opressores e conheço os seus sofrimentos”.
Por isso desci para liberta-lo do poder dos egípcios e para faze-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa (Ex 3,7-8).
Neste texto podemos perceber a atenção e a resposta de Deus ao clamor do povo (Ex 2,23-35). Ele se revela como alguém presente na vida do povo e conhecendo bem a situação. A sua descida é para estar no meio do povo e, aliado com ele, construir uma nova história.
A intenção especifica desse Deus é tomar partido do oprimido contra o opressor. Dessa forma, ficamos sabendo que Deus YHWH é partidário e se solidariza apenas com a causa daqueles que estão esmagados na história. Essa parcialidade de Deus mostra que os seus seguidores também devem ser parciais, isto é, solidários e comprometidos com a causa dos fracos e oprimidos. Moisés pôde experimentar esse Deus porque já havia se solidarizado com seus irmãos escravizados.
A tradição sacerdotal nos é mais bem conhecida em sua fase tardia, graças ao trabalho de compilação do tetrateuco (Gn – Nm), que culminou na redação final do Pentateuco (incluindo Dt). Não há de se admirar que o Deus sacerdotal seja centro e objeto de elaborado culto. O que impressiona é a facilidade como a visão sacerdotal integra elementos de majestade e de universalismo encontrados na Mesopotâmia, terra do exílio de Judá (depois de 722 ac., Israel desaparecera como nação).
A majestade e a universalidade não são completamente novas. Em muitos textos antigos transparece a representação de uma corte divina. E os anjos do egoísta entram no mesmo esquema. Mas o contato com a Babilônia, durante o Exílio, leva o profeta-sacerdote Ezequiel a multiplicar os anjos e a magnificência da corte celestial. Maneira de realçar a transcendência? Pode ser. Mas talvez sejam mais significativos o universalismo e a versatilidade de Deus. Tanto Ezequiel como Segundo Isaías reagem à convivência com os deuses da Babilônia insistindo na universalidade de Deus. Para Ezequiel, “YHWH Sebaot” não significa o “Deus dos Exércitos” no sentido das tribos de Israel (como no deuteronômista, 1 Sm 1,3.11...; 2Sm 7,8.26...), mas no sentido dos exércitos celestes. “Os céus são os céus de YHWH!” (Sl 115,16). Nenhum poder celestial escapa a seu domínio. Ele fez a historia de Israel e também o mundo (Is 44,24...).
Na convivência com outros povos deve ficar claro onde Deus está: em todo lugar onde faz acontecer sua obra, em Israel e na criação!
Mas impressiona também a veracidade de Deus. Ele tem quatro rodas! E, ainda que seja difícil compreender como funcionam, pois giram para todos os lados ao mesmo tempo (Ez 1,17), menos difícil é perceber para que servem: para que a Santidade e a Glória de Deus possam deslocar desde o templo para o lugar onde se encontra seu povo exilado (10,18-22; 12,22-24) e, de lá, com ele voltar para sua morada (43,1-12), na Jerusalém renovada, que leva nome semelhante ao do Emanuel: “O Senhor está aí” (Ez 48,35).
Logo depois do Exílio, o terceiro Isaías tecerá em torno desse tema da renovada Jerusalém as mais belas descrições da utopia de Deus, não receando retornar a antiga linguagem de hierogamia – agora inócua, pois Baal e Astate pertencem ao passado. O esposo é agora o Senhor, e a esposa, Jerusalém ou o povo do Senhor (Is 61,10-62,5).
2.2 Deus fala pelos acontecimentos e pelas palavras
A Bíblia é “o livro dos que buscam a Deus”; a “leitura divina”, uma tarefa própria dos que buscam a Deus. Ora, buscar supõe sempre algum esforço. Ainda que repousada e aprazível, a lectio divina requer freqüentemente uma notável, uma perseverante dedicação.
A Bíblia é o reflexo de uma vivência do povo com seu Deus, de Deus com seu povo. Deus está na história do povo, e, por isto, está na Bíblia. Por sua vez, a Bíblia vai ajudar o povo a viver. É Deus, através da Bíblia, que anima e orienta seu povo para continuar a lutar e viver e nunca desanimar.
É por tudo isso que dizemos que a Bíblia é a Palavra de Deus, Revelação de Deus.
O povo da Bíblia vai descobrindo, cada vez mais, quais os laços que o ligam a Deus. Dizem: Deus nos ama.
Os profetas gostam de comparar a Deus com um marido todo dedicado à sua esposa. Deus é o Esposo; o povo, a comunidade, é a esposa.
Também gostam de outra comparação: o povo de Israel, em vez de procurar aliar-se a um Império poderoso, faz aliança com o próprio Deus.
Nós, hoje, chamamos de “Aliança” o anel de casamento. É porque o anel lembra o compromisso do casal: AMOR E FIDELIDADE ATÉ Á MORTE. Assim é o amor de Deus para com seu povo.
Por isto chamamos a Bíblia o “Livro da Aliança”.
(Na tradução para outras línguas, a palavra “Aliança” foi substituída por “pacto” e, depois, menos exatamente, por “testamento”. Daí o uso das expressões “Antigo e Novo Testamento” para indicar a Antiga e a Nova Aliança).
... “Apesar da nossa infidelidade, Deus continua o Esposo que vai educando sua esposa à fidelidade. Sempre espera a nossa volta. Sempre nos dá uma nova chance. Sempre perdoa e começa de novo”.
2.2.1 Deus continua a dialogar com os homens em Cristo
Depois de ter falado pelos Profetas, Deus quer falar ainda mais de perto. Quer revelar-se ainda melhor. Ele o faz através de seu Filho JESUS.
Jesus é o profeta por excelência, o grande enviado de Deus, o seu grande mensageiro, o Filho. Muito mais do que os profetas, ele pode falar de Deus, mostrar quem é Deus.
Jesus mostra o Deus da Aliança, o Deus de amor que se dá até o fim. A bondade de Jesus, a sua misericórdia, a sua exigência, a sua doação até a morte, mostra o amor do seu Pai. “Deus quis que Cristo tomasse “o corpo no qual suas palavras ressoassem autenticamente como palavras de vida.
Jesus, como não poderia deixar de ser, é o ponto central do cristianismo, quando Deus se encarna, tornando-se homem para livrar a humanidade da servidão do pecado. Em muitos lugares, nas leituras profanas e mesmo religiosas, há perguntas sobre a essência do cristianismo, aquilo em que, em última análise, pode ser resumida a religião cristã.
Nesse particular, e vamos nos amparar no teólogo Romano Guardini, todas as respostas formuladas se resumem em uma única palavra: Cristo. Á essência do cristianismo, afirma o teólogo, é Jesus Cristo, e ser cristão, segundo a mesma fonte, consiste em acolher de fato a Cristo como Deus, a palavra (o logos) que se fez homem, padeceu, morreu e ressuscitou. Acolhe-lo como nosso salvador faz parte de nossa inserção ao mistério divino.
No Filho, descobrimos o mistério da comunicação divina, rico em presença, entrega e libertação. Ele é a total revelação do Pai. Sob esse aspecto, vemos que o Filho e o Espírito Santo descobrem a inascibilidade do Pai, e a revelam aos homens. Só podemos entender o mistério de Jesus se o compreendermos como os evangelhos o apresentam, inserido na comunhão trinitária.
(...) porquanto é por ele que ambos temos acesso junto ao Pai num mesmo espírito (Ef 2,18).
O Filho, professamos no Credo, é gerado, não criado. Gerado amorosamente na interioridade trinitária e também por obra do Espírito, como homem no seio de Maria, na encarnação. É não criado visto que é co-eterno com o Pai e o Espírito. Ao gerar o Filho, o Pai lhe entrega tudo. “Tudo o que o Pai possui é meu (...)” (cf. Jô 16,15); Toda autoridade me foi dada no céu e na Terra. (...)” (Mt 28,18).Por isso o Pai lhe entrega a mesma natureza, e dessa natureza dos Dois Divinos (Pai e Filho) vai proceder o Espírito Santo. A relação do Espírito com o Pai e o Filho é de procedência. Segundo P. Evdokimov, “embora o modo próprio de cada uma das Pessoas, há uma condição de comunhão substancial entre os três”.
Justino, em uma de suas apologias, ensina que o Pai é aguenétos, isto é, não gerado. Possui divindade como essência, ou seja, sua divindade não é derivada. “O Filho é Deus por derivação: sua divindade deriva da do Pai, não por criação mas por geração”, diz F.A. Figueiredo (cf. 2Apol 6,1).
Ao entrar no mistério do Filho, é prudente, como Moisés, tirar as sandálias dos pés, em atitude de apofática adoração. Tirar as sandálias é render-se ao mistério, é assumir atitude de oração, calar a imaginação, cerrar os olhos às coisas sensíveis, ligando os ouvidos no silêncio de Deus. E ali, no santuário do coração, onde mora o Espírito Santo, falar com Deus, sentindo o seu amor, entregando-se a Cristo. Adorar a Deus, agradecendo pelo grande dom do Filho, deve ser a primeira atitude do fiel. O centro do mistério cristológico está, sem duvida, no amor do Pai e na missão redentora do Filho (A.M. Galvão, 1994).
Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna (Jô 3,16).
“CONCLUSÃO”
Concluímos que nosso Deus é um Deus que se revela, que se comunica, que procura o homem para dialogar, é um Deus que não age por interesse, mas sim, se coloca ao lado do homem, e coloca toda a natureza e toda a criação nas mãos do homem, é um Deus que só quer a amizade do homem e poder chamá-lo de Filho. Concluímos também que esse Deus existe desde o princípio e é Pai Filho e Espírito Santo, (um exemplo de Família para o homem) e nós só existimos porque Ele nos criou, nos ama e nos conhece no mais intimo de nosso ser. Esse amar e conhecer nos coloca diante de Jesus Cristo, que é a maior prova de amor de um Pai para com um filho, um Deus que sabendo das necessidades do homem, passa a ser um Pai que atende o clamor do povo, e se encarna fazendo-se homem, sofrendo como homem, amando mais do que qualquer homem já amou, e isso só para nos mostrar a sua face, dialogando com todos os homens, e mesmo depois de ter partido, envia-nos o Espírito Santo, para poder assim continuar sussurrando ao nosso ouvido por toda a eternidade, e jamais nos deixar sós.
Chegamos a conclusão de que esse Deus esta ao nosso lado quando sofremos, e mesmo nas desgraças continua se fazendo presente a nos consolar.
O ser humano, em contra partida, vive a procurar por esse Deus, e nessa procura incessante acaba desviando-se dele, e muitas vezes não consegue reconhecer a sua presença em todos os momentos de sua vida, nas coisas mais simples e belas do cotidiano, não são capazes de ver que Deus está na criação cultivada pelos homens e mulheres de boa vontade. Deus está no entusiasmo daqueles que acreditam que a “guerra” e a “violência” não são as ultimas palavras da existência. Deus está no sangue dos que lutam pela justiça, dos que combatem todo sistema que oprime o ser humano e a natureza. Deus está na esperança que move o coração, que o impulsiona na luta para que o Reino por Cristo anunciado se torne concreto em nosso meio. Deus está na defesa dos direitos de uma maioria desfavorecida, marcada pelo preconceito, pelo desprezo e pela indiferença de uma minoria acomodada em seu esbanjamento. Deus está nos pequenos e grandes gestos de solidariedade e compaixão. Deus está nos corações dos que amam de verdade, dos que não se contentam com o que está estabelecido. Deus está nos que lutam para que todos tenham terra, trabalho, saúde, educação, lazer, para que todos tenham vida em abundância. Deus está nos pobres, nos que são marginalizados por sua raça, cor ou condição moral. Deus está na Beleza da natureza, na luta pela paz e pela justiça, no sorriso das crianças e na bonita experiência dos idosos. Deus está mais perto de nós do que imaginamos, Ele está no irmão a nosso lado, que compartilha conosco todos os momentos de busca e de descoberta.
Mas no decorrer da história humana, vemos que homens quiseram ser Reis, Reis quiseram ser Deus, mas somente Deus quis ser homem e habitar entre nós.
O caminho percorrido para chegarmos ate a conclusão deste trabalho nos levou antes de tudo a refazermos a experiência de Deus, deixando que Ele mesmo falasse aos nossos ouvidos, dirigi-se a nossa mente e guia-se cada um de nossos passos, e o resultado desta experiência ficará eternamente guardado em nossos corações, porem um pouco desta gratificante experiência esta contida nestas linhas que se seguiram até aqui, sabemos no entanto, que todas os palavras contidas no universo são demasiadas pobres para descrevermos o quanto é grande o amor de Deus para conosco.
Pudemos averiguar que por meio da oração nós falamos diretamente a Deus, e por meio das Sagradas Escrituras, igualmente Ele nos fala.
Mas Deus não está preso nas Escrituras, pois mesmo quando não a lemos, Ele dá um jeitinho de se comunicar com seus filhos tão amados.
E a nossa maior dificuldade na realização deste, foi exatamente entender essa manifestação de Deus em nosso meio, que muitas vezes acontece de maneira contrária à nossa vontade. Isto ocorre porque não sou Eu, mas sim Ele quem toma a aniciativa de dialogar comigo, tal como um amigo que mostra onde o outro esta errando e como pode corrigir o erro.
Neste aspecto vimos que Deus nunca cessa a sua vontade de falar ao homem, e o homem nunca cansa de procurar a Deus. Desta forma nosso trabalho não acaba aqui, mas nos abre a perspectiva de continuarmos sempre procurando encontrar a Deus.
“BIBLIOGRAFIA”
MESQUITA, ANTÕNIO GALVÃO. A Santíssima Trindade: O mistério de três pessoas em um só Deus. São Paulo: Ave-Maria, 2000.
GARCIA, D. M. COLOMBÁS, MB. Diálogo com Deus: Introdução à “Lectio Divina”. 2a ed. São Paulo: Paulus, 1996.
MARTINS, EUCLIDES BALANCIN e STARNIOLO, IVO. Como ler o livro do êxodo: O caminho para a liberdade. 2a ed. São Paulo: Paulinas, 1990.
Pe.ANTONIAZZI, ALBERTO. BROSHUIS, INÊS e PULGA, ROSANA. ABC da Bíblia. 29a ed. São Paulo: Paulus, 1984.
1o encontro teológico. Deus onde estás? São Paulo: Loyola, 2000.
“ANEXOS”
Abreviaturas utilizadas
AAS – Acta Apostólicae Sedis: Pronunciamentos oficiais da Igreja
Apol – Apologia (obra apologistas)
CIC – Catecismo da Igreja católica
DeV – Dominum et vivificantem (Senhor que dá vida), Carta Encíclica (João Paulo II, 1986)
DS – Denzinger- Schonmetzer – Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, Ed. Herder, 1976 – Livro dos documentos oficiais da Igreja
FR – Fides et ratio (Fé e razão), Carta Encíclita (João Paulo II, 1998)
GS – Gaudium et spes (Alegria e Esperança), Vaticano II
LG – Lumem gentium (Luz dos povos), Vaticano II
P – Puebla (México) – Conclusões da III Conferencia Geral do Episcopado Latino-americano, 1979
PG – Patrologia grega, 1857
STh – Suma teológica (Santo Tomás de Aquino)
Breve Glossário Teológico-Pastoral
Apologia:
Atividade dos apologistas gregos, antigos Pais da Igreja do século II, cujas obras tinham o objetivo de combater as heresias, denunciar o paganismo e procurar expor a fé cristã. Os apologistas mais célebres são Justino, Teófilo, Aristides de Atenas, Hermas e Taciano, o sírio.
Arianismo
Doutrina herética de Ário (+ 336), um sacerdote que viveu no Egito e afirmou que Cristo e o Espírito Santo não são divinos como o Pai, estabeleceu assim uma hierarquia, chamada de subordinacionismo.
Docetismo
Também chamado de monarquianismo de Sabério (+ 385), negou a trindade, afirmando que a situação de Jesus era como uma semelhança: é homem que parece Deus, ou parece o Pai em divindade. Alguns grupos de dabelianos foram chamados de docetistas, proveniente do verbo grego dokêo, parecer.
Doxologia
Referente a dóxa, no grego, glória. Trata-se dos atos de louvor e glorificação que os cristãos elevam a Deus.
Epístrofe
Anúncio simples, inicial e repetitivo de uma doutrina.
Espiração
Sopro, pelo qual Pai e Filho fazem proceder o Espírito Santo (espiração ativa).
Hipóstase
Hipóstase quer dizer pessoa. Na teologia trinitária, refere-se a cada uma das Três Pessoas Divinas.
Homoioúsios
Homóios + ousia. Natureza semelhante. Heresia segundo a qual o Filho não tem a mesma natureza do Pai, mas semelhante. Teoria da Sabélio, condenada pelo Concílio de Constantinópla I (ano de 381 d.C.).
Homooúsios
Homos+ousia. De mesma e igual natureza. As Três Pessoas são consubstanciais. O Filho e o Espírito Santo possuem a mesma (e igual) natureza do Pai.
Imanente
Algo que provém de um ser, independentemente de ação exterior, como que bastando a si mesmo.
Inabitação
Ato pelo qual o Espírito Santo habita o coração da pessoa humana.
Inascibilidade
Propriedade exclusiva do Pai. Não foi gerado nem criado, não tendo princípio nem fim. É princípio sem princípio.
Inefável
Fato, pessoa ou circunstância que não se pode exprimir com palavras.
Kairós
Expressão teológica que revela um “tempo oportuno” para os projetos de Deus, cuja cronologia só ele sabe.
Messiânico
Relativo ao Messias (no hebraico, ungido). A palavra Cristo (de origem grega) é sinônima.
Midraxe
O mesmo que midrash ou midrache. Narrativa de fundo místico-catequético, que dá mais atenção à doutrina exposta do que ao pano de fundo histórico, geográfico ou lógico.
Mistério
Termo técnico da teologia, amplamente utilizado no Novo Testamento, que designa alguma coisa que as capacidades humanas não podem alcançar.
Modalismo
Doutrina herética, segundo a qual a Santíssima Trindade constitui apenas “três maneiras” ou modos de ver (três máscaras) que é o único Deus estabelece para se manifestar aos homens.
Monofisismo
Derivado de monos (um-uma) + fysis (natureza). Era a teoria de Eutíquio (+ 460) de que em Cristo havia uma só natureza, pois seria impossível a encarnação de Deus em uma pessoa humana.
Neotestamentário
Relativo ao Novo Testamento. O oposto é veterotestamentário (AT).
Paráclito
Advogado, aquele que vem ajudar. Designação dada por Cristo ao Espírito Santo. Ajudador.
Parusia
Na antiguidade, chamava-se de parusia o período de festas que cercava a visita do imperador. Era um tempo de reconciliação e perdão de dívidas. A teologia cristã passou a utilizar o termo, a partir do século II, para exprimir a festa da segunda e definitiva vinda de Cristo.
Patrística
Produção teológica dos antigos Pais da Igreja, gregos e latinos. Chama-se também patrologia.
Pericórese
Interpenetração recíproca e amorosa dos Três Divinos. Estado de comunhão existente na Trindade.
Pericorético
Relativo à pericórese.
Pneuma
Do grego, ar, sopro, vento forte. É a expressão neotestamentária com que a Igreja designa o Espírito Santo. Um sopro renovador.
Revelação
Modo pelo qual Deus se dá a conhecer no mundo, e como quer ser adorado pelas criaturas. O acontecimento central da Revelação é a vinda de Jesus Cristo que, por presença, ação e palavra, dá aos homens um conhecimento mais íntimo e profundo dos mistérios de Deus.
Teogonias
Estudo metafísico relativo à criação e nascimento dos deuses de algumas religiões politeístas. Em geral, as teogonias entrelaçam o nascimento dos deuses com a criação do mundo e com os ciclos da natureza.
Trindade econômica
É a revelação Trinitária de Deus, inserindo-se na história dos homens para, por meio da graça, conduzi-los à salvação. É a Trindade que por amor, age em benefício da humanidade.
Trindade imanente
É a relação pericorética entre os Três Divinos. Eles se amam sem limite e existem eternamente em estado de plena comunhão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário