quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A MISHNÁ

ETIMOLOGIA DA PALAVRA MISHNÁ


A palavra Mishná significa literalmente "repetição" e também "estudo", "ensinamento", já que o ensino fazia-se oralmente, com base apenas na repetição. Dá-se este nome à compilação da doutrina tradicional judaica pós-bíblica, em especial à sua parte jurídico-religiosa. Por isso o vocábulo Mishná, que indica a Lei oral, se opõe à palavra Micrá que representa a Lei escrita, a Bíblia, especialmente sua primeira parte, o Pentateuco. Não é de estranhar, pois, que R. Natan ben Iehiel, em seu Aruch, dissesse que se chamava Mishná(*) porque era a segunda Lei, o que coincide com a tradução que gregos e latinos dão da palavra, mediante o vocábulo "deuterosis".


(*) Dessa mesma radical deriva o numeral "dois", em hebraico shnáim.



FORMAÇÃO DA MISHNÁ

A formação do "código" que hoje conhecemos por Mishná teve lugar exclusivamente na Palestina, e temos que assinalar dois períodos claramente separados por um fato histórico da maior transcendência para o Judaísmo, ou seja, a tomada de Jerusalém e a conseqüente destruição do Segundo Templo no ano de 70.


PRIMEIRO PERÍODO:

A grande Assembléia e os soferim

O início deste período, de acordo com o legado da Tradição, remonta a Moisés e seus sucessivos transmissores (*). Os elos da cadeia seriam: Josué, os anciães, os profetas, os membros da Grande Assembléia, os pares e os tanaím.



(*) "Moisés recebeu a Lei do Sinai e transmitiu-a a Josué, e Josué - aos anciães, e os anciães - aos profetas, e os profetas transmitiram-na aos homens da Grande Assembléia".



Deixando de lado, por ser suficientemente conhecido, graças ao Antigo Testamento, quais foram e qual foi o trabalho dos primeiros transmissores, chegamos aos "homens da Grande Assembléia", que constituem o primeiro elo da elaboração "mishnaica" propriamente dita.

A Grande Assembléia é uma instituição de que bem pouco sabemos historicamente, pelo menos até o presente e, portanto, não é de estranhar que hajam historiadores que inclusive negam a sua existência. Admitido o seu caráter histórico, seria muito mais correto falar de Assembléias no plural, pois trata-se de uma instituição que se manteve durante vários séculos, não obstante seja difícil precisar sua duração exata. Embora se tratasse de uma instituição política e social, cuja origem e primeira constituição remontam a Esdras, dado que o Judaísmo estava sempre vinculado à religião, é lógico que certa atividade jurídico-religiosa caísse no domínio ou nas atribuições da referida Assembléia.

Seus componentes, ou ao menos alguns deles, preocuparam-se principalmente com três coisas: "ser circunspectos em seus juízos (ou seja, examinar escrupulosamente os textos), formar numerosos discípulos e erguer uma barreira em redor da Lei". Estes mestres, inteiramente dedicados à salvaguarda da religião e da tradição, formaram como que um grupo - reconhecido ou não - dentro da Grande Assembléia e são os que conhecemos como os soferim (literalmente "escribas", mas que se deve entender como "homens de letras"), ou seja, os herdeiros espirituais de Esdras(*), os quais conservaram e ademais, transmitiram aos "pares" o material tradicional.



(*) "Se Moisés não se lhe tivesse adiantado, Esdras havia sido digno de entregar a Torá a Israel com suas próprias mãos".



Sanhedrin, 21B.

Esse material era muito antigo - segundo a Mishná, datava de Moisés - e embora careçamos de provas concretas, há indícios de que podemos supô-lo como verossímil. Com efeito, embora a Lei escrita pareça muito minuciosa, não é um código legal propriamente dito; suas estipulações precisavam de esclarecimentos ou interpretações, mediante (ou dando origem a) costumes e tradições que se vinham transmitindo, da mesma forma que a própria Lei, oralmente, durante séculos inteiros. Um exemplo nos esclarecerá melhor: Se bem que está escrito o sétimo dia é de descanso... não farás nenhum trabalho, em todo o decorrer da Bíblia é impossível encontrar claramente a indicação do que se entendia como "trabalho". Citam-se, em alguns casos concretos e pouco numerosos, operações que representam "trabalho". É evidente que esse ponto teria que ser específico e assim foram sendo reunidas e ordenadas as operações trabalhosas até completar o total de 39 operações básicas e por isso suscetíveis de serem subdivididas e especificadas.

A este trabalho de elaboração, recoleção e expurgo dedicaram-se os soferim, aos quais também devemos o encerramento e fixação de parte do cânone do Antigo Testamento(*), no século III.

(*) A discussão sobre se deviam ser incluídos ou não no cânone certos livros, como "Eclesiastes", "Provérbios" ou "Cântico dos Cânticos" prolongou-se durante muito tempo. Nota-se que o cânone judaico difere algo do católico, porém é igual ao protestante.

Que método seguiam os soferim? Partiam do princípio de que não sendo a Lei uma obra literária, cada palavra tinha o seu valor, um significado que era preciso elucidar. Eis a razão por que o seu trabalho consistiu em dar carta de validez a esses costumes e usos tradicionais, relacionando-os com a Bíblia, pois sendo a Lei a expressão de toda a justiça e de toda a verdade, qualquer verdade ou juízo deveria basear-se nela. Este método recebe o nome de midrash, "investigação", que foi definido como "a base exegética e a explicação dialética das halachot".


O método, que também era utilizado para deduzir novas leis, consistia no seguinte: citava-se uma passagem bíblica, a qual era comentada, analisada, microscopicamente esquadrinhada, até que se lograva, mediante uma exegese mais ou menos artificiosa, relacionar com ela algumas das tradições existentes. Esta análise aplicava-se tanto a textos jurídico-religiosos (midrash halachá) como a textos históricos ou folclóricos (midrash agadá), com uma importante diferença - as leis relacionavam-se quase exclusivamente com o Pentateuco, ao passo que os textos agádicos faziam referência a qualquer dos livros bíblicos.

Mas chegou um momento em que só interessava discutir e analisar textos legais. Doravante recebeu o simples nome de Halachá, sobretudo quando se perdeu a consciência de qual havia sido o ponto de partida bem como do método "midrash"(*) seguido - e restaram unicamente os resultados da investigação, as conclusões registradas na Mishná.


(*) A partir de então, e ainda hoje, o vocábulo Midrash é empregado como sinônimo de Midrash-Agadá. Os "Midrashim" são comentários homiléticos e folclóricos ao Pentateuco e às cinco Meguilat.



OS PARES

Quando a Grande Assembléia foi substituída pelo Sanedrin, terminou o período dos soferim. Um dos últimos membros da Grande Assembléia, Simeão o Justo, transmitiu a tradição a Antígono de Soco. Ambos iniciam o período denominado "dos pares" (zugot), porque os encarregados de receber e transmitir a tradição eram dois mestres, um dos quais ostentava o cargo de Nassi, "presidente" e o outro o de Bet-Din - "chefe do tribunal". O último dos "pares" foi o formado por Hilel e Shamai.

Assim como anteriormente havia-se substituído o método de midrash pelo de halachá, de uma forma semelhante, ao finalizar o período dos "pares", começaram a reunir-se as halachot a que se havia chegado no transcurso daqueles anos. As halachot não estavam nem classificadas nem coordenadas; sem ilação, no máximo pondo à frente o nome do rabi que a havia criado, o qual, indubitavelmente, exigia uma grande memória para recordar tão grande número de regras. Não obstante, pouco a pouco foram-se formando coleções, agrupando as normas seja por autores, seja por matérias.

Todo esse trabalho foi realizado exclusivamente pelos fariseus, pois o grupo oposto a eles, o dos saduceus, não aceitava a Lei oral; só havia uma Lei fixa e imutável, e assim devia ser também fixa e imutável a interpretação da mesma(*). É difícil determinar as doutrinas que os fariseus sustentavam. Sabemos, desde logo, que era um grupo - portanto partido - popular (no qual militava a maioria dos sábios que procedia do povo) e anti-helenista, ao contrário dos saduceus, cujos membros pertenciam em geral à aristocracia e que junto à cultura religiosa da Bíblia aceitavam o legado da cultura secular dos gregos.


(*) Os fariseus eram os precursores dos rabanitas ou judeus ortodoxos, e os saduceus, dos caraítas, ou seja, os judeus que somente aceitam a Bíblia e rechaçam toda a Tradição Oral.


HILEL e SHAMAI

Durante os séculos I antes e depois da Era de Cristo, a atividade tradicional está concentrada nas duas escolas rivais, a de Hilel e a de Shamai, a cujas discussões, quer pessoais, quer a de seus seguidores, aludem numerosos fragmentos talmúdicos. A distinção ideológica das duas escolas é difícil de precisar, mas baseia-se praticamente na diferença de caráter de seus dois chefes: o primeiro, Hilel, dócil e indulgente, sempre inclinado à tolerância; o outro, Shamai, severo, intransigente ao extremo. A posição do primeiro e de certa forma a sua ideologia, aparece patente em uma frase que é para ele a quinta-essência, o sustento da Lei judaica: "o que não queres para ti não o queiras para os demais"(*).



(*) O Imperador romano Alexandre Severo, enamorado desta frase, mandou gravá-la em muitas das construções que edificou.



Hilel, babilônico de nascimento, era modesto e muito pobre, porém alcançou uma elevada posição e foi chamado "o Grande", "o Maior", "o Antigo". São atribuídas a ele as sete regras de interpretação que serviram ao mesmo tempo como base de elaboração de novas halachot e para dar autoridade às já existentes, muito embora, posteriormente, R. Ismael ben Elishá as tenha elevado a treze. Porém nem todos os sábios seguiram essas regras. R. Aquivá, por exemplo, valeu-se de diferente método exegético.

Dada a posição altamente humana de Hilel - sua escola aceitava inclusive as opiniões de seus antagonistas - era lógico que suas teorias prevalescessem; tão somente em três casos recorda-se haver sido aceito o ponto de vista da escola de Shamai. Mas este predomínio de uma escola sobre a outra foi obra muito posterior, se bem que nessa época foi redigida - sempre verbalmente - a Primeira Mishná (Mishná Rishoná); a redação foi dupla: uma elaborada pelos discípulos de Hilel e outra pela escola de seu opositor.



SEGUNDO PERÍODO:

A destruição do Segundo Templo

Com a destruição do Segundo Templo de Jerusalém (ano 70), após longa guerra - cujo relato nos foi conservado por Flávio Josefo, testemunha ocular daquelas lutas - parecia então que o Judaísmo ia desaparecer definitivamente do panorama da história, uma vez em pedaços o vínculo - o Templo - que unia todos os judeus, os palestinenses e os que moravam fora da Palestina. O Judaísmo, sem centro e sem culto, privado dos valores que supõe a existência de um Estado, parecia destinado a perecer. Desfeito o Sanedrin, que era seu máximo organismo diretor, e morta a maioria de seus membros, parecia impossível que o Judaísmo sobrevivesse. Surgiu, porém, um homem providencial que iria restaurá-lo, encaminhando-o por roteiros diferentes dos até então seguidos: Raban Iohanan ben Zacai.


OS TANAÍM

Este segundo período da elaboração da Mishná abrange desde o ano de 70 até aproximadamente o de 220. O trabalho de comentário foi realizado em diversas escolas, estabelecidas primeiramente na Judéia e a seguir na Galiléia pelos tanaím(*), mestres que para sustentar suas necessidades desenvolviam uma atividade profana, mas que simultaneavam com o estudo da Lei, já que, segundo a mentalidade - muito lógica - daquela época, teria sido ignominioso obter qualquer proveito do estudo ou do ensinamento da Lei.



(*) Em singular Taná, termo aramaico equivalente ao termo hebraico Shaná, cujo significado já indicamos anteriormente.


Aproximadamente a partir do ano 50, o título oficial que se dá aos doutores da Lei é o de rabi(*), que se aplica por antonomasia ao último dos tanaím, a R. Judá ha-Nassí - Nassí significa Patriarca - porém os demais Patriarcas, inclusive Iohanan ben Zacai, vêm designados como raban - "Mestre".


(*) Rabi significa, literalmente, "Meu Mestre", equivalente a "Monsenhor".


O século e meio que abarca este período divide-se em cinco gerações, que citamos a seguir, indicando os principais doutores de cada uma:

1ª de 70 - 80
R. Iohanan ben Zacai

2ª de 80 -105
Gamliel II, Eliezer ben Hircanos e Josué ben Hananiá

3ª de 105 - 135
R. Aquivá

4ª de 135 - 170
R. Meir

5ª de 170 - 220
R. Judá ha-Nassí


1ª geração (70 - 80):
Centra-se ela no todo, indubitavelmente, na figura de Raban Iohanan ben Zacai.
Iohanan ben Zacai era membro do desaparecido Sanedrin e sempre se havia destacado como pacifista - era um discípulo espiritual de Hilel - aconselhando chegar-se a uma paz com Roma. Sitiado em Jerusalém e vendo a rebelião encaminhada a um fracasso, logrou, mediante um estratagema, ser tirado da cidade santa(*) e levado à presença de Vespasiano - bem disposto em relação a ele porque, segundo se conta, lhe havia predito que chegaria a imperador - pediu-lhe uma coisa aparentemente inócua: permissão para fundar uma escola. Esta coisa tão "insignificante", esta escola, significou a salvação do Judaísmo.



(*) Assim narra-o uma obra da época talmúdica não incluída no Talmud, o tratado Avot D'Rabi Natan, capítulo IV.



Quando, afinal, Jerusalém caiu em mãos romanas, Iohanan ben Zacai chorou amargamente, como o havia feito anteriormente o profeta Jeremias pela sua perda; porém, da mesma forma que Zerubavel, dedicou suas energias para erguer um novo Templo. O novo Templo foi a Academia de Iavné.

À Academia de Iavné, que celebrava suas sessões num semi-círculo natural formado por um vinhedo, compareciam unicamente os discípulos, diretos ou indiretos, de Hilel, uma vez que os shamaítas, que durante a guerra contra Roma haviam aderido ao partido extremista dos zelotes, ou haviam perecido ou bem se ocultavam pelo medo ao vencedor, só mais tarde apareceram de novo no campo das lutas religiosas e políticas.

Iohanan ben Zacai aferrou-se à última coisa que havia restado do patrimônio espiritual: a Tradição; e como opinava que "o homem havia sido criado para estudar a Lei", a isso dedicou todas as suas energias. Para muitos judeus a autoridade do Sanedrin baseava-se em que suas celebrações se realizavam em Jerusalém; R. Iohanan reorganizou-o, fixando sua sede em Iavné. Por outro lado, acreditava-se que a existência do Judaísmo estava vinculada à instituição dos sacrifícios, dificuldade que ele contornou declarando que "a caridade e o amor dos homens podem substituí-los". Com isso salvou o Judaísmo.


2ª geracão (80 - 105):

A unidade criada na escola de Iavné em torno à poderosa personalidade de R. Iohanan desfaz-se ante sua morte e, pouco a pouco, vão se fundando novas escolas, todas na Judéia, como, por exemplo, as de Emaus (Cuimzo), Lida (Diascópolis), Pequíin, etc.

Como chefe da escola de Iavné, sucedeu a Iohanan ben Zacai, Raban Gamliel II. Era descendente de Hilel e, tal como seus antecessores, que haviam estado durante quatro gerações à frente do Sanedrin, tomou o título de Nassí ("Patriarca") que lhe conferia uma autoridade política. A partir dele, esse título permaneceu vinculado à sua família e considerado com dignidade.

Além de ser muito versado em questões religiosas, Gamliel II tinha bons conhecimentos das ciências profanas, o que aumentava ainda mais a sua autoridade; porém de caráter enérgico, até mesmo violento, teve uma acre discussão com os dois maiores sábios de sua época: R. Eliezer ben Hircanos e R. Josué ben Hananiá, em conseqüência do que foi deposto de sua dignidade de Nassí, embora mais tarde voltasse a compartí-la com Eleazar ben Azariá, que o havia substituído ante a sua destituição.

Ao caráter decidido e ousado, inovador, de Gamliel II, contrapunha-se "o inflexível guardião da tradição" Eliezer ben Hircanos, ao qual seu mestre, R. Iohanan, havia comparado a uma "cisterna" que não deixava escapar nem uma gota da tradição recebida (mas que tampouco permitia a entrada de qualquer inovação). Entre ambos ocupava uma posição equilibrada, representando o sentido comum e a moderação, Josué ben Hananiá, chamado R. Josué por antonomasia, dócil, modesto e benevolente, que ganhava o seu sustento fabricando agulhas.

Personagem destacada desta geração, para citar apenas uma, foi Naun de Guimzo, sábio sem "Título" e autor de um método dedutivo levado às suas últimas conseqüências por R. Aquivá.


3ª geracão (105 - 135):

Esta terceira geração foi testemunha ocular de um acontecimento histórico de grande importância: a rebelião de Bar-Cochba, em cujo desenvolvimento e êxito efêmero teve parte ativa R. Aquivá ben José, o mais ilustre dos tanaím dessa geração.

R. Aquivá era um simples pastor que chegou a casar-se com a filha de seu patrão. Sua esposa animou-o a dedicar-se ao estudo da Lei, a progredir, quase a formar sua cultura; e após longos anos obteve um grande grupo de discípulos. Quando surgiu Bar-Cochba, tentando reavivar o abatido ânimo dos judeus e pregando a expulsão do invasor romano, R. Aquivá aderiu imediatamente a ele, convertendo-se em seu principal propagandista, em que pesassem as advertências de precaução de seus colegas, sobretudo de R. Ismael ben Elishá. Pai espiritual da revolta, o fracasso do empreendimento trouxe como conseqüência o fim de R. Aquivá, o qual, acusado de ensinar a Lei, morreu esfolado vivo, proclamando a unidade de Deus.

Além de sua intervenção nessa revolta, R. Aquivá cooperou ativamente no desenvolvimento e formação da Mishná, da qual, dada a dificuldade de recordar todo o seu conteúdo, fez uma redação para uso privativo, embora aceita pelos seus discípulos - compilação conhecida por Mishná de R. Aquivá e que foi utilizada nas redações posteriores.

R. Aquivá era dotado de um espírito metódico e sintético e utilizava um método muito pessoal. Não obstante houvesse estudado em várias Academias, pode-se dizer que sobre ele somente exerceu influência Naum de Guimzo, de quem tomou uma idéia que converteu em método próprio: Na Lei nada há de supérfluo, nem sequer uma letra; cada sinal ou traço significa algo que deve ser deduzido(*). Isto é o que nos referem autores posteriores; porém, ao que parece, ele se propunha a achar o fundamento de todas as leis na Torá, o que o obrigou a forçar as interpretações, a miúdo rechaçadas por seus colegas.


(*) Este método, ainda mais exagerado, conduziria à Cabala, o que explica que se atribuísse a R. Aquivá a redação do Sefer Ietsirá, um dos livros básicos da Cabala. O critério foi seguido por Aquilas, autor de uma versão literal da Bíblia para o grego, e por Onquelos (que alguns autores identificam com Aquilas), autor do Targum, isto é, "Tradução" do texto sagrado para o aramaico.

Também exerceram magistério outros doutores de sua geração, entre os quais deve-se destacar R. Ismael ben Elishá, grande dialético, que aumentou até 13 as 7 regras dedutivas de Hilel, que, apesar disso, não diminuiram a autoridade de que gozou o método de seu rival, ao qual R. Ismael se opunha sustentando que a Lei se expressa na linguagem dos homens, que há frases que nada acrescentam ao sentido e que só servem como ornamento. Outros doutores contemporâneos são: R. Tarfon e R. José ha-galili.


4ª geracão (135 - 175):

Após o desastre de 135, a perseguição desencadeada por Adriano trouxe como conseqüência a clausura das escolas da Judéia. Ante o temor de que, como resultado da execução dos principais sábios, ficasse rôta a cadeia da tradição, R. Judá ben Baba apressou-se a ordenar, mediante a imposição de seus pares, aos sete discípulos de R. Aquivá que ainda viviam. Como castigo, os soldados romanos o alancearam.

Essa ordenação teve lugar na Galiléia, onde a partir de então estiveram radicadas todas as escolas, em geral próximo ao lago Tiberíades (Quinéret). O Sanedrin, anteriormente estabelecido em Iavné, iniciou sua peregrinação, estabelecendo-se primeiramente em Usha e a seguir em outras localidades galilaicas.

Passado o perigo, os sete discípulos de R. Aquivá voltaram da Babilônia, onde se haviam refugiado. O principal deles era R. Meir. Como todos os tanaím, tinha uma ocupação secular: era amanuense e suas cópias eram muito apreciadas por seus contemporâneos(*). Meir casou-se com Beruriá, que era filha de R. Hananiá ben Teradion, um sábio da geração anterior.


(*) Tenha-se presente que o rôlo de pergaminho - "Meguilá" - que contém o texto sagrado do Pentateuco, não pode sofrer nenhum erro ou correção.

R. Meir não quis reconciliar-se com o patriarca Simão II ben Gamliel II, com o qual havia sustentado uma violenta discussão; porém, apesar disso, gozou de grande prestígio. Destacava-se no campo da fábula, que sempre foi tão importante no Oriente; mas embora sobressaísse tanto como fabulista, sua fama procede do seu trabalho no terreno da Tradição: deve-se a ele outra redação da Mishná, oral e para uso privativo, coordenada por matérias, que serviu de base para a redação da Mishná canônica.

Outros doutores destacados são: R. Simão ben Iohai(*), R. Iosé ben Halafta e R. Judá ben Ilái, os três pertencentes ao grupo dos sete discípulos de R. Aquivá ordenados por R. Judá ben Baba.


(*)A reclusão de 12 anos deu margem a que na Idade Média se lhe atribuísse a redação do Zohar.


Figura singular é Elishá ben Abuiá, um grande amigo de R. Meir, que - provavelmente por influência do agnosticismo - abandonou o Judaísmo, pelo que é conhecido como Aher, que em hebraico significa "outro".


5ª geracão (170 - 220):

Com esta última geração chegamos à elaboração definitiva da tradição que se vinha formando desde séculos de ininterrupto labor.

À semelhança da 1ª geração, encarnada em Raban Iohanan ben Zacai, seu personagem central, foi Rabi Judá ha-Nassí, chamado rabenu ha-cadosh, ou seja "nosso santo mestre", conhecido além disso como R. Judá o Santo e como Rabi por antonomasia. Havia seguido os cursos das diferentes escolas da época e conhecia bem as tendências existentes (ele mesmo disse: "aprendi muito de meus mestres, mais ainda de meus colegas e muitíssimo mais de meus discípulos) graças ao que pôde realizar uma grande coletânea, que haveria de ser definitiva. Mas ao seu indiscutível prestígio religioso, fruto de um estudo prolongado ao qual podia dedicar-se plenamente por possuir vultosos meios de fortuna, unia-se uma autoridade política indiscutível, pois ostentava o título de Nassí. Em razão dessa combinação de fatores, realizou em suas escolas de Bet Shearim e Séforis uma obra que ficou definitivamente consagrada, pois a Mishná por ele sistematizada, partindo da redação de seus antecessores, passou a ser a Mishná canônica, a Mishná por excelência, que fez esquecer e desaparecer as anteriores, das quais só permanecem os restos que figuram na sua versão. Durante sua longa vida (135 a 219 aproximadamente), levou ao término duas redações: uma em sua juventude e a segunda, recensão da anterior, nos últimos anos de sua vida.


BREVE ESTUDO DA MISHNÁ CANÔNICA

A redação de R. Judá ha-Nassí, assim como todas as anteriores, foi oral, e somente a partir dos séculos V ou VI foram feitas redações oficiais por escrito, embora não seja impossível a existência de redações escritas para uso privado. Estas redações oficiais contêm alguns textos posteriores a Rabi, uma vez que vão postos em boca de doutores que viveram depois dele.



A Mishná está dividida em 6 ordens (sedarim, em singular seder), que são as seguintes:

I. ZERAIM "Sementes":

Acerca da agricultura, exceto o tratado Berachot, dedicado às "bênçãos".

II. MOED "Festa": Sobre o sábado e as festividades.


III. NASHIM "Mulheres":

Direito matrimonial.


IV. NEZIQUIN "Danos":

Direito civil e penal.


V. CODASHIM "Coisas Sagradas": Sacrifícios e serviço do Templo.


VI. TAHAROT "Purezas": Leis de pureza e impureza.

Cada ordem está dividida em tratados (masichtot, em singular masechet), intitulados segundo o seu conteúdo e dispostos por ordem decrescente de extensão(*). No princípio os tratados eram 60; mas um deles, chamado Neziquin, foi dividido nos três Baba atuais, e o tratado Macot, que estava unido ao Sanedrin, foi separado, com o que chegamos aos 63 tratados de que se compõe atualmente a Mishná.

(*) A razão direta da ordem seguida na distribuição dos tratados dentro de cada seder, assim como o porquê dos títulos, foram estudados por J. Derenbourg: Les sections et les traités de la Mishnaah. Revue des Etudes Juives, III (1881), 205-210. Disposição semelhante adota o Corão.

Os tratados estão divididos em capítulos (peraquim, em singular perec) designados pelas palavras iniciais e estes, por sua vez, em mishnaiot (plural de mishná), palavra que indica tanto o conjunto como cada lei em particular.

Com referência ao conteúdo, devemos dizer que só discute e analisa o referente a legislação e ritos, já que só em escassas ocasiões contém matéria não-jurídica, com exceção de dois tratados completos - o Pirquei Avot(*) e o Eduiot.

(*) Existe uma edição bilíngüe, tradução de Moses Bensabat Amzalak, edições Biblos Ltda., Rio de Janeiro, 1962.

A forma é expositiva, nada mais, e o estilo conciso, porém claro, sem digressões. A mishná, não só nos dá a conhecer a opinião da maioria, como também na minoria e opiniões contraditórias, com o que abre campo a investigação ulterior e é o ponto de partida do desenvolvimento posterior: O Talmud. As opiniões são citadas anonimamente.
o idioma utilizado é o neo-hebraico, evolução do hebraico dos últimos tempos bíblicos, algo diferente em gramática e vocabulário e no qual estão introduzidos vocábulos aramaicos, latinos e gregos, idioma do qual deriva o hebreu moderno.

A Mishná canônica nos chegou ao mesmo tempo nos dois Talmuds; porém estas duas redações coincidem quase por completo, com ligeiríssimas variações, as principais procedentes da incorporação de emendas textuais. A Mishná é citada pelo nome do tratado, o número (em algarismos romanos) do capítulo e o número (em algarismos árabes) de cada mishná, ou seja, como um exemplo: Berachot VI, 2. Quando se conhece uma passagem mas se ignora a que tratado pertence, pode-se recorrer a algumas concordâncias(*).

(*)De R. HAIM JOSUÉ KASSOWSKI: Konkordanz der gesamten Mishnaic. Jerusalém-Frankfurt, 1927. Concordâncias semelhantes existem para identificar passagens bíblicas.

A edição principal foi impressa em Nápoles, em 1492, com o comentário de Maimônides traduzido para o hebraico (o original está em árabe).

A redação de Rabi impôs-se definitivamente, e até que ponto se impôs pode-se apreciar por uma série de leis que não receberam abrigo em seu código. Estas leis porém não desapareceram; conservaram-se até nós com os nomes muito significativos de Tosefta e baraitot: a Tsofeta (em aramaico, "a adição") recolhe material preferivelmente agádico, seguindo a mesma ordem e igual disposição que a Mishná, e é uma obra compilada por R. Hía e R. Ushaia, contemporâneos de Rabi; porém a redação definitiva é posterior. As baraitot, ou seja, "externas" (que em conjunto se denominam Baraita, em singular) têm um conteúdo jurídico-religioso.

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