Questões introdutórias em torno do Paradigma da Inculturação
Missiologia e Inculturação
1. RESUMO E OBJETIVO
Resumo. Para as Igrejas, o paradigma da inculturação norteia todas as atitudes pastorais. Esse paradigma que tem as suas raízes nos mistérios da encarnação e da redenção, situa o seguimento de Jesus Cristo nos contextos históricos e culturais de cada época. Num continente que passou por séculos de colonização e que hoje novamente está ameaçado pelo neocolonialismo dos mercados globalizados, a inculturação é uma tarefa que fortalece a identidade dos povos e grupos sociais, cujo projeto de vida está ameaçado.
Alguns tópicos e aprendizados da antropologia cultural e de outras ciências humanas ajudam na construção do paradigma da inculturação que permite viver a fé no interior da herança de tradições autênticas (contra qualquer tradicionalismo e fundamentalismo religioso), e no meio dos desafios do mundo moderno, sem adaptação superficial a “modas” ou “ondas”.
Objetivo
A razão fundamental da evangelização inculturada é a participação de todos no banquete da VIDA. Os cristãos imaginam e realizam o encontro com a VIDA no seguimento de Jesus, na experiência pascal, na transfiguração da realidade pela esperança, no testemunho e anúncio do Deus da VIDA. A inculturação visa à assunção dos últimos como próximos e primeiros. Sua vida é o lugar preferencial da epifania de Deus. A aproximação ao mundo do Outro-Pobre encontra a sua matriz teológica na proximidade de Deus. Se o ponto de partida da inculturação é a presença no meio da vida fragmentada, o ponto de chegada é a participação da vida integral. Vida fragmentada e vida integral são articuladas por uma proposta, o Evangelho, e por um caminho a percorrer, a missão.
A inculturação de todas as atividades eclesiais (pastoral, liturgia, teologia, kerigma, obras sociais) é um imperativo do seguimento histórico de Jesus Cristo (cf. Santo Domingo, 13) que redimiu a humanidade na proximidade histórico-cultural da encarnação. Partindo deste imperativo, a aula deve mostrar o porquê deste imperativo, articulando a encarnação com a redenção, sempre historicamente situadas. A compreensão desta articulação pressupõe o conhecimento e delimitação de alguns conceitos básicos da antropologia cultural, como o conceito da cultura que - como projeto de vida - é matriz fundamental para o enraizamento do Evangelho de Jesus Cristo e da fé dos cristãos.
2. INCULTURAÇÃO: CONCEITO, PRÁTICAS, HORIZONTES
2.1. Ponto de partida: colonização, ruptura e incompreensão
Descolonização e seguimento
No contexto da história latino-americana, o paradigma da inculturação aponta - em analogia à Encarnação - para o caminho da descolonização de uma evangelização histórica e culturalmente situada. A inculturação “é um imperativo do seguimento de Jesus” (Santo Domingo, 13) que exige uma permanente reinterpretação do Evangelho no meio dos projetos de vida de cada povo e grupo social.
Costura e proximidade
Na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a Evangelização no Mundo Contemporâneo (1975), Paulo VI lamentou: “A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas” (n. 20). Costurar essa ruptura entre cultura e Evangelho é a intenção profunda da inculturação. O Evangelho não tem cultura própria. Por isso pode ir ao encontro de todas as culturas. A inculturação visa a uma nova próximidade à realidade terrestre e espiritual da família humana.
Tradução e comunicação
Neste encontro, os evangelizadores procuram traduzir a mensagem do Evangelho nas línguas e linguagens, nos mitos e ritos, nos símbolos e sinais, nos costumes e no etos de todos os povos e grupos sociais. A relevância do Evangelho para o mundo de hoje - e este mundo pode ser um mundo secularizado e não-confessional, como pode ser um mundo tradicional e religioso - depende da capacidade de traduzir contribuições próprias do cristianismo em linguagens particulares e universais, privadas e públicas, religiosas (de outras religiões) e secularizadas, sem perder seu referencial e suas raízes. Sempre se trata da tarefa axial da Igreja, “enviada por Cristo para manifestar e comunicar a caridade de Deus a todos os homens e mulheres e povos” (Ad gentes, n. 10).
2.2. Surgimento histórico do paradigma da inculturação
O neologismo “inculturação” surgiu de uma longa prática nos primórdios do cristianismo e que foi retomada muito tempo antes do Concílio Vaticano II (1962-1965). Através de experiências pastorais que assumiram os desafios do mundo tradicional e do mundo moderno, a inculturação estava respondendo à demanda histórica da descolonização e aos imperativos do seguimento de Jesus
Exemplos pré-conciliares de inculturação
Como exemplos concretos de uma vivência da inculturação pré-conciliar pode-se registrar a opção pelos Outros, realizada por Charles de Foucauld (1858-1916) e seus seguidores nos mais diversos movimentos espirituais e fundações religiosas. A presença das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld junto ao povo Tapirapé, desde 1952, constituiu, 20 anos mais tarde, um referencial de inspiração para o trabalho do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fundado em 1972.
Precedeu e inspirou o Vaticano II a lucidez da opção pelos operários, de um Joseph Cardijn, fundador da Juventude Operária (JOC) e inspirador da Ação Católica, em 1925, com seu método da “revisão de vida”. Posteriormente, toda a Pastoral da América Latina e os documentos eclesiais se beneficiaram do método da JOC e do seu “ver-julgar-agir”.
A sobriedade vivencial e pastoral do padre Antoine Chevrier (1826-1879) e dos seus seguidores no movimento do Prado (Lyon), o movimento dos padres operários e da Mission de France, o despojamento de um Abbé Pierre, fundador do movimento dos maltrapilhos-construtores de Emaús, já apontaram para a opção pelos pobres e pelos que mais sofrem.
A realidade e a história como lugares teológicos
Precursores da inculturação havia também na criatividade do movimento litúrgico e bíblico que abriram horizontes para a celebração da vida e a leitura da palavra de Deus histórica e vivencialmente contextualizada. Seguindo a reflexão teológica de um Melchior Cano, teólogo do Concílio Tridentino (1545-1563) que colocou a história como lugar teológica na pauta teológica de seu tempo, a hermenêutica da realidade como lugar teológico – a teologia das realidades terrestres de um padre Chenu, por exemplo – contribuiu para uma nova proximidade teológica e pastoral ao mundo moderno.
Da inserção à inculturação
A proximidade física e espiritual, no meio do mundo e, particularmente, no meio dos pobres, na época do Vaticano II ainda foi designada como “inserção”. Para respaldar teologicamente esta “inserção” e o posterior paradigma da “inculturação” era necessária a sua articulação não só com os propósitos básicos da modernidade, com a descolonização dos povos, com a sua autonomia, autodeterminação e emancipação, mas sobretudo com a tradição da Igreja.
Novos discernimentos a partir da Patrística
O Vaticano II e, em seguida, o magistério da Igreja e o magistério latino-americano das Conferências Episcopais de Medellín, Puebla e Santo Domingo, resgataram alguns tópicos teológicos dos primeiros séculos do cristianismo que permitiram configurar o novo conceito da evangelização inculturada. Tópicos teológicos de Justino (+ 165), Ireneu (+ 202), Tertuliano (+ 220) e Eusébio de Cesaréia (+ 339) ganharam destaque.
Estas escolhas foram seletivas porque, desde cedo, duas doutrinas e práticas missionárias estavam concomitantemente presentes no cristianismo. Uma declara que as culturas pagãs se encontram fora da história da salvação e nada podem acrescentar ao cristianismo qualitativamente perfeito. A plenitude quantitativa - a conversão de toda a humanidade ao cristianismo - se considerou tarefa da missão e de uma metodologia missionária que pôde variar entre convite desarmado até a força da “espada e vara de ferro”.[1][1]
A outra corrente admite encontrar nas culturas pagãs “lampejos da Verdade” (Nostra aetate, 2) e “sementes do Verbo” (Ad gentes, 11). Estes “lampejos” e “sementes” tampouco acrescentam algo ao cristianismo, porém, lançam seus vestígios em outras religiões e culturas. A Gaudium et spes (n. 57), com a sua recepção positiva do mundo afirma, referindo-se a Ireneu, que o Verbo de Deus que, antes de encarnar-Se para salvar e recapitular em Si todas as coisas, já estava no mundo como ‘luz verdadeira que ilumina todo o homem’ (Jo 1,9s). A segunda corrente serviu ao Vaticano II como matriz para conduzir a Igreja fora do gueto cultural e de colocá-la em condições de dialogar com o mundo moderno.
Analogia entre encarnação e inculturação
O Vaticano II estabeleceu uma analogia entre encarnação e proximidade solidária junto aos pobres (Gaudium et spes, 32). A Lumen gentium (n.8) fala de “uma não medíocre analogia” entre o mistério do Verbo encarnado e a assunção da realidade terrestre pela Igreja. A articulação do paradigma da inculturação com o mistério da encarnação e com tópicos da patrística, permitiu provar que com a inculturação não se tratava de uma “onda modernizante”, mas de um tópico teológico que estava enraizado na tradição da Igreja. A analogia entre encarnação e presença cristã no mundo fez a reflexão missiológica cunhar o paradigma da inculturação (cf. Lumen gentium 8; Santo Domingo 30 e 243).
2.3. Elementos da antropologia cultural
Culturas
A partir da segunda metade do século XIX, a antropologia cunhou o conceito “cultura” para descrever a experiência humana. Originalmente, a noção de cultura era aplicada no singular, quase idêntica com o conceito de “civilização ocidental”. “A cultura” era a cultura do observador exógeno, do antropólogo, do missionário, do viajante. “A cultura” era idêntica com a civilização ocidental. Esta era considerada como ponto de chegada. O conceito “cultura” nasceu num contexto evolucionista. Na América Latina, o evolucionismo se tornou força política mediante o positivismo de Comte. Os militares o adotaram, no início deste século, como sua ideologia de fundo. Nesta visão, a “emancipação” dos povos indígenas coincide com sua civilização.
Hoje, o conceito “culturas”, quase sempre usado no plural, nos permite observar a diversidade das experiências humanas, sem recorrer a esquemas meramente evolucionistas (primitivo x civilizado), racistas (inferior x superior) ou totalizantes (universalismo x relativismo).Não existe um ponto de chegada de uma cultura-civilização que possa servir para a constituição da identidade de todos os povos. Há concomitantemente diferentes experiências humanas, uma multiplicidade de culturas, todas elas válidas e precárias.
Monogenismo versus evolucionismo
Segundo o monogenismo bíblico se pensava, no interior do cristianismo, a origem da humanidade a partir da perfeição de uma criatura divina. O primeiro casal humano, criado por Deus no sexto dia da criação, em decorrência do pecado original, degenerou e se diversificou. Essa compreensão de uma filiação divina, hierárquica, vertical e quase biológica, fragilizada pelo pecado original, induziu a ler as diferenças pluriculturais da humanidade em chave de degeneração e rebeldia contra a lei de Deus, inscrita na natureza e na ordem cosmológica imutável; em chave de perda (do estado de graça) e de castigo (expulsão do paraíso e confusão babilônica), de desvios do caminho único traçado por Deus na Igreja Católica (fiéis versus hereges e infiéis). A partir da visão dessa origem única, perfeita e igual a todos, a expulsão “geográfica” do paraíso é seguida pela diversificação cultural, simbolizada na confusão lingüística de Babel.
O evolucionismo biológico, associado às pesquisas de Darwin e hoje amplamente respaldado pelo cristianismo, impunha pensar a origem da humanidade a partir do primitivismo animal, seguido pela evolução civilizatória. Desde então, a origem da humanidade é pensada a partir de um macaco antropóide, o chimpanzé. A unidade do gênero humano não é algo preestabelecido, mas o resultado de uma articulação da diversidade de experiências de hominização e civilização.
A diversificação da vida desde células primitivas até o surgimento de seres humanos, e, em seguida, a diversidade cultural não podem mais ser pensadas como “degeneração de um casal perfeito” ou como “confusão de Babel”, mas como a condição para o surgimento da vida humana. O conceito “cultura” transformou o conceito “filhos e filhas de Deus”, originalmente tomado ao pé da letra, em metáfora.
Os missionários das Américas sempre comparavam a diversidade lingüística que encontravam, com a confusão de Babel. O padre José de Acosta, primeiro provincial dos jesuítas no Peru, por exemplo, escreve que frente à confusão de Babel, com suas 72 línguas, a zona andina, onde encontrou mais de 700 línguas diferentes, representa uma confusão dez vezes maior do que a babilônica. Nesta perspectiva, a história da salvação, as Alianças de Deus com seu povo, o cristianismo - tudo tem só um sentido: reverter a expulsão, a dispersão, a fragmentação e a confusão. A cristandade foi o último intento global para reconstruir essa „unidade perdida“.
Todos são cultos segundo seus padrões culturais
Cultura não é sinônimo de erudição, alfabetização ou estudos universitários. Se a subjetividade cultural coincidisse com a alfabetização, muitos povos indígenas, e 20% da população brasileira não teriam cultura.
Uma cultura diferente não devemos avaliar pelo tamanho dos templos, prédios e aviões, quer dizer, a partir da “cultura material”. Nessa perspectiva, consideraríamos o povo e os monges tibetanos muito atrasados, apesar de sua cultura espiritual grandiosa. Uma cultura é perfeita na medida em que consegue que o maior número de pessoas irradie felicidade. Os missionários consideraram os índios, que sorriam muito, crianças. Na civilização européia, o lugar daquele que sempre ri, é o jardim da infância ou o hospício. Também a “seriedade” é um fator cultural. “Os bárbaros”, advertia Montaigne já na época da conquista “não são mais estranhos para nós, que nós o somos para eles” e “cada um chama de barbárie o que não faz parte dos seus costumes”.[2][2]
É impossível anunciar relações simétricas de fraternidade e sororidade, como o Evangelho propõe, a partir de uma suposta superioridade cultural.
Projetos históricos e segundo meio ambiente
As culturas são projetos históricos integrais de vida, codificados nas diferentes esferas sociais: no campo sociopolítico, econômico e ideológico. A observação cultural lida sempre com uma dimensão mais estática e sistêmica (a sincronia), comparável a uma fotografia, e uma dimensão histórica em movimento (a diacronia), um filme. As culturas são construções históricas em processo e heranças sociais que desafiam cada geração a discernir entre a necessidade de assumir o passado e a necessidade de transformá-lo. As pessoas humanas são herdeiros e autores de suas culturas. A cultura como tal não é uma herança biológica. As culturas são aprendidas; não estão no sangue. Por isso, podemos aprender outras culturas. Mas faz uma grande diferença, se aprendemos nossa cultura (enculturação), desde a infância, ou se aprendemos, já adultos, uma segunda cultura (inculturação).
A cultura nos distingue do reino biológico dos animais. Enquanto seres humanos, somos biologicamente frágeis. As culturas são as muletas que os grupos sociais inventaram para viver e compensar sua precariedade biológica.
Todos os grupos sociais querem viver e vivem graças a suas culturas. Os moradores da rua, os migrantes, os catadores de papel: todos querem viver. Não é muito difícil detectar essa cultura. Eles se alimentam, dormem, vivem, se relacionam com outras pessoas e grupos sociais. Criam filhos, se amam, emocionam, brigam e fazem as pazes; passam por momentos de alegria e de tristeza, acreditam em Deus e têm uma ética cultural, como todo mundo. E, sobretudo, mantêm uma firme esperança num mundo melhor. A vida lhes faz sentido. Não se suicidam, teimam em viver e sonhar com os seus projetos, que talvez amanhã possam realizar. Eis aí os elementos essenciais para a inculturação.
A cultura é um segundo meio ambiente que os grupos sociais constroem. O primeiro meio ambiente é a natureza. Sobre este primeiro meio ambiente construímos um segundo meio ambiente que é a nossa cultura. Ela nos fornece instrumentos, relações padronizadas e sentido de vida. Sem esse segundo meio ambiente não conseguiríamos viver. E essa é a nossa diferença com os animais. Eles vivem biologicamente, dirigidos pelo instinto. Antes da hora do perigo, os ratos deixam o navio. São todos “videntes”. A nossa previsão do perigo funciona por meio da metereologia, mediante aparelhos técnicos e experiências. Cultura, portanto, é um ecossistema historicamente construído. Na cultura, guardamos codificadas as nossas experiências históricas de ontem e nosso projeto histórico para amanhã.
Outros conceitos de cultura
Quando se fala de “cultura da paz”, por exemplo, não se trata de uma cultura propriamente dita. A „cultura da paz“ não tem sujeitos que possam ser identificados, nem território vivencial. Ao falar de “cultura da paz”, “cultura de solidariedade” ou “cultura de trabalho” fala-se apenas analogicamente de cultura, assim como se pode falar também de uma cultura de bactérias para fazer uma vacina. É preciso distinguir entre cultura propriamente dita (projeto histórico herdado e sempre reconstruído) e cultura entre aspas. Com uma “cultura” de bactérias pode-se fazer uma vacina para combater determinada doença. Assim, analogicamente, uma “cultura” de solidariedade, composta por muitos núcleos de solidariedade, permite combater o desinteresse e o egoísmo. Mas essas “culturas” com aspas não têm povo, nem território. Por isso não servem para a inculturação.
Como já percebemos, existem várias maneiras de entender o conceito cultura. Uns dividem a realidade em três grandes campos: realidade econômica, realidade sociopolítica e realidade cultural. Nessa visão, a cultura é apenas um setor da realidade social que abrange a religião, a filosofia, o direito, a educação. Economia e política ficam fora do campo cultural. A inculturação, neste caso, não mexe com política, nem com economia.
Cultura ou civilização
É útil distinguir entre civilização e cultura. A civilização é algo mais abrangente. A civilização não fornece identidade. Você tem identidade junto ao seu grupo social. Não somos cidadãos da modernidade, somos cidadãos do nosso bairro, da nossa comunidade, da nossa família. Por isso distinguimos entre inculturação numa determinada micro-estrutura, e apropriação civilizatória. A civilização é uma caixa comum para a qual todos os povos contribuíram. Depois podemos nos apropriar dos projetos de prata dessa civilização e testar sua utilidade no interior das nossas culturas. As pessoas não se inculturam na modernidade; apropriam-se de elementos da modernidade que são importantes. As conquistas civilizatórias ora ajudam, ora conturbam o estilo de vida dos diferentes povos. O caminhão que entra na aldeia indígena não precisa destruí-la. Uma emissora de rádio, nas mãos dos sem-terra, pode ser politicamente muito importante. Não é a civilização que destrói as culturas, mas a desapropriação política dos respectivos sujeitos culturais.
Aproximação cultural: enculturação, aculturação, inculturação
A aproximação cultural tem vários níveis. A en(do)culturação ou socialização cultural é o aprendizado da própria cultura. A aculturação é, teoricamente, a aproximação de duas culturas diferentes a meio caminho. Na realidade, acontece a aculturação em condições de assimetria social, devido à hegemonia de uma das duas culturas sobre a outra. A inculturação é o intento de assumir as expressões culturais de outro grupo social, a fim de comunicar o Evangelho. A inculturação, enquanto inserção na cultura do outro, é um aprendizado sempre precário que procura reverter a prática histórica da evangelização colonial. Esta tentou integrar o outro evangelizado no universo cultural do evangelizador.
A aculturação, de fato, acontece por toda parte. Mas ela não é uma meta para a evangelização inculturada. Não tem fundamento bíblico, nem teológico. Deus não se aculturou no mundo. Encarnou-se neste mundo por meio de Jesus de Nazaré. Jesus não veio para um encontro a meio caminho. Ele não desceu um pouco para levar a humanidade um pouco para cima. Ele não se enfeitou com a cultura de seu povo. Deus desceu e se encarnou na condição mais vil da humanidade, no presépio e na cruz, um sem-casa e um sem-terra.
Outro modo de “aproximação” cultural nas Américas foi a integração colonial. Pero Vaz de Caminha, ao descrever a primeira Missa no Brasil celebrada por Frei Henrique de Coimbra, mostrava-se edificado pela capacidade de os índios imitarem seus colonizadores: “E quando se chegou ao Evangelho, ao nos erguermos todos em pé com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram a assentar-se, como nós. (...). E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que nos entenderem, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos.”[3][3]
Tanto a integração do outro no meu universo cultural, como a identificação minha com a cultura do outro, são destrutivas em frente da alteridade do outro. Por conseguinte, a aproximação cultural em forma de inculturação não visa à identificação com o outro e sua cultura, mas a solidariedade (cf. Gaudium et spes, n. 32).
Projetos de vida atravessados por “estruturas de pecado”
As culturas não podem ser valoradas “superiores” ou “inferiores”, “primitivas” ou “adiantadas”. Em todas as culturas se encontram “primitivos” e “sábios”. Nenhuma cultura é perfeita ou pura. Todas as culturas são atravessadas por impasses em frente das contingências da vida e da morte. Todas as culturas são atravessadas por “estruturas de pecado” e lutam contra “poderes da morte” (Santo Domingo 13 e 243).
A “cultura perfeita” seria o fim da história. Por causa dessa relatividade histórica, a cultura de um povo nunca é normativa para um outro povo. Para os sujeitos que pertencem a uma respectiva cultura, ela é, contudo internamente, normativa. Nenhuma cultura, porém, pode reivindicar sua normatividade em frente das outras culturas.
As culturas, enquanto projetos de vida, sempre lutam contra a morte. Por isso, não faz sentido falar em “cultura da vida” nem em “cultura da morte”. “Cultura da vida” é uma redundância. Se “cultura da vida” é o óbvio, a “cultura da morte” é o absurdo. Cada grupo social se junta para viver e não para matar os outros e para matar a si mesmo. Só isso representaria uma “cultura da morte”.
2.4. Evangelho e culturas
A história da salvação na história dos povos
A história da salvação perpassa a história de cada povo e grupo social. Ela não é idêntica à história político-social dos povos, mas tampouco representa uma história paralela. A leitura ou reconstrução da história da salvação na própria história não deve obrigar os povos a desconsiderar a sua cultura ou esquecer sua história, mas convidá-los a ler ambas - cultura e história - sob novo ângulo.
Quando os israelitas trabalhavam como escravos na construção de pirâmides no Egito, mais ou menos 1200 anos a.C., na mesma época grupos indígenas trabalhavam na construção de pirâmides na Guatemala e no México. A libertação do Egito faz parte da história da salvação. E o trabalho escravo dos índios? Não havia também para eles um libertador escolhido por Deus que desconhecemos, porque a sua memória foi destruída? Até hoje existe entre os teólogos uma certa dificuldade de articular a história dos diferentes povos e grupos sociais com uma história de salvação da humanidade, composta por muitas histórias salvificamente relevantes.
A cultura é o Primeiro Testamento dos povos
Cada cultura produziu, originalmente, sua própria religião. A religião de cada povo, coerentemente vivida, é o caminho ordinário de sua salvação. Essa cultura era o Primeiro Testamento de cada povo e grupo social. A presença de Deus Trino na história humana, desde a criação do mundo, precede a Encarnação de Jesus de Nazaré. O Deus da criação e da vida temos em comum com todas as religiões. Para a convivência em paz e a tolerância entre os povos, a configuração de um „Deus em comum“ se tornou um fator importante na evolução da consciência humana.
A Bíblia incentiva, pedagogicamente, essa evolução. A eleição de Israel não é um mero privilégio; é eleição para servir à humanidade. Pedagogicamente Deus se mostra como um Deus de aproximação e de Aliança com a humanidade. As imagens da criação do mundo, o caos, o discernimento entre trevas e luz, a assunção do barro pelo espírito, mostram esse processo educativo através da proximidade libertadora de Deus. Libertação é um processo que abre caminhos onde a vida estava bloqueada.
Na história da salvação, a proximidade entre Deus e a humanidade estava sempre ameaçada pelo fechamento do fundamentalismo legalista, por um lado, e pela dispersão, por outro lado. No Verbo Encarnado, Deus revela outra vez a sua proximidade para com a humanidade. Agora, povo de Deus não significa mais exclusivamente filhos de Abraão. Povo de Deus são os pobres. O Espírito de Deus ungiu Jesus de Nazaré e o enviou para anunciar a Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4,18). É o ano da graça. Acabou a linearidade, o privilégio. Jesus, filho de Abraão, diz que não importa ser filho de Abraão, pois até as pedras podem ser transformadas em filhos da Abraão. Há um rompimento na genealogia. Jesus não é filho de José. Toda a história é redimida. Não há história que não foi atingida pela criação, pela Encarnação. Toda história é história da salvação.
Em culturas secularizadas, a religião pode se diversificar em diferentes denominações ou filosofias de vida. Entre muitos grupos sociais no Brasil convive uma religião étnico-cultural (religião indígena, candomblé, catolicismo popular) com diferentes denominações religiosas (cristãs) oficiais e externas. Jesus Cristo veio nos unir em torno do Pai. O Deus da VIDA quer unir toda a humanidade, além e através das particularidades religiosas de cada povo.
Verificação do Evangelho em todas as culturas
O Evangelho não tem cultura própria. O Evangelho não tem identidade cultural. A pluralidade e historicidade das culturas impedem reivindicar uma cultura cristã ou evangélica. O Evangelho da VIDA pode ser vivido em todas as culturas porque todas são projetos de vida.
A Evangelii Nuntiandi (n. 20) esclarece o equívoco da “cultura cristã” quando declara: “O Evangelho, e conseqüentemente a evangelização, não se identificam por certo com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas. E no entanto, o Reino que o Evangelho anuncia é vivido por homens profundamente ligados a determinada cultura, e a edificação do Reino não pode deixar de servir-se de elementos da cultura e das culturas humanas. O Evangelho e a evangelização independentes em relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas suscetíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas.”
As culturas não necessitam do Evangelho ou do cristianismo que, historicamente, são fenômenos tardios. O Evangelho não pertence ao reino da necessidade, mas da gratuidade. O Evangelho é graça de Deus em expressões humanas. Por isso, o Evangelho necessita do suporte cultural. Para se expressar em diferentes línguas, utiliza conceitos filosóficos, imagens e parábolas disponíveis.
Embasamento cultural do Evangelho
O evangelizador não tem acesso ao Evangelho “puro”, mas ao Evangelho culturalmente situado. Por isso, a chamada “evangelização das culturas” é sempre uma evangelização a partir de um Evangelho embutido numa cultura.
Não existe cultura-modelo ou cultura pura para a evangelização. Evangelizamos sempre a partir de uma determinada cultura que, por sua vez, também é atravessada por estruturas de pecado. Historicamente, o cristianismo foi transmitido a partir de um Evangelho embutido numa cultura hegemônica. O chamado “Primeiro Mundo”, com sua cultura dominante, procurou evangelizar o “Terceiro Mundo”.
Com o Evangelho, podemos chegar a um discernimento frente às estruturas de pecado que atravessam as culturas. Não evangelizamos as culturas ou as „estruturas de pecado“; evangelizamos as pessoas. Não evangelizamos a fábrica, mas os operários da fábrica. Não evangelizamos sistemas, mas grupos sociais e indivíduos. Tentamos transformar estruturas e sistemas, a partir da nossa inspiração no Evangelho. Mas não convém chamar essa transformação estrutural de “evangelização”. A transformação das estruturas é almejada por muitos grupos sociais que não aceitam ser enquadrados numa “ação evangelizadora” propriamente dita.
Cultura e identidade
As culturas são os campos da diversidade, da identidade e da alteridade. Ajudam-nos a reconhecer o Outro e a Outra enquanto sociopoliticamente iguais e autônomos, e culturalmente diferentes.
A mundialização dos mercados e a globalização informática e tecnológica ameaçam a identidade de grupos sociais. A identidade é sempre local, regional e "tribal". Pertencemos a determinados grupos étnicos que, por vezes, coincidem com determinadas nacionalidades. O mundo-mercado sem fronteiras é um mundo sem raízes e sem lealdades.
O Brasil registrou, no passado, três opções de identidade: a identidade como identificação com a Europa; a identidade do laboratório racial e da mestiçagem e a identidade específica que emerge da luta dos diferentes setores sociais.
No fim do século XIX e no início do século XX, os cientistas sociais, como Nina Rodrigues (1862-1906), registravam a persistência de costumes bárbaros, aborígenes e africanos, obstáculos que impediam "o Brasil de chegar ao esplendor da civilização européia". Racismo e eurocentrismo marcaram as análises dessa época.
A Igreja Católica responde à heterogeneidade e suposta "ignorância" religiosa com um amplo movimento de civilização e romanização. As Atas e Decretos do Primeiro Concílio Plenário da América Latina, celebrado em Roma no ano 1899, definem a "civilização" das "tribos que ainda permanecem na infidelidade" como meta pastoral. Tal meta marcava a pastoral da Igreja até o Concílio Vaticano II.
Frente à suposta disparidade desarmoniosa que somente a inclusão na civilização européia poderia sanar, dois eventos da década de 1920 marcam um revés na concepção da identidade nacional. A Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, e o aparecimento de uma nova religião afro-americana: a umbanda. "Somos, na realidade, os primitivos duma era nova", dizia Mário de Andrade (1893-1945). Seu Macunaíma, herói sem nenhum caráter, representa a síntese personificada e díspar de qualidades indígenas, africanas e européias, o encontro entre selva e asfalto, mito e história. Oswaldo de Andrade (1890-1954), animador do grupo modernista depois da Semana de 1922, em seu Manifesto Antropofágico (1928), explica como a brasilidade incorpora e devora as demais civilizações. Da síntese emerge a originalidade brasileira que é, a rigor, a "originalidade" com que a inteligência mestiça e burguesa tenta resolver a crise de identidade de sua classe, sem recorrer a padrões europeus.
Em nível da religiosidade popular, assiste-se, no mesmo tempo e espaço geográfico da Semana de Arte Moderna, a outro movimento de síntese na gestação de um novo culto afro-brasileiro: a umbanda. Seu céu é habitado por divindades indígenas, africanas e européias. Cada uma das fontes já representa uma "síntese díspar". A contribuição européia está presente não só com o catolicismo, mas sobretudo com o espiritismo kardecista. A umbanda se tornou um instrumento de "confraternização" e adaptação entre negros, "ex-indígenas", mulatos, migrantes pobres e setores da classe média. Ao mesmo tempo, era um instrumento de adaptação à vida urbana e de sobrevivência na vida moderna.
A Semana de Arte Moderna e a umbanda representam um novo olhar da própria realidade, não a partir de fora e em comparação com uma Europa supostamente homogênea, mas a partir da própria diversidade sociocultural e carnavalesca que não permite a hegemonia de um grupo sobre o outro. De certo modo, o movimento teológico-eclesial depois do Vaticano II, com Medellín, Puebla e Santo Domingo, faz a conexão católica com o movimento que pretende dar continuidade ao projeto próprio. Mas, mesmo a "opção pelos pobres" da Igreja latino-americana pode ser lida em chave de um sincretismo heterogêneo, onde embarcam igualmente índios, negros, camponeses, operários e os demais empobrecidos.
Hoje entramos numa nova fase da "continuidade do projeto próprio". À fragmentação das ciências corresponde um momento de diferenciação na abordagem antropológica e social da questão humana. Novos protagonistas, até há pouco tempo considerados irrelevantes para as transformações sociais do mundo, emergem no horizonte da história e nos obrigam a repensar a ação social e a prática eclesial. A partir desses protagonistas, emergem novas teologias (Teologia da Terra, Teologia Feminista, Teologia Índia) e práticas pastorais (CEBs, Movimento Bíblico)
2.5. Evangelização inculturada
Analogia entre inculturação e encarnação
O paradigma da inculturação se inspira no mistério da Encarnação do Verbo. Contudo, trata-se apenas, como o Vaticano II diz, de “uma não medíocre analogia” (Lumen Gentium 8).
Jesus, segundo sua natureza humana, nasceu em Belém e foi criado em Nazaré, onde se enculturou e socializou com sua própria cultura. Até aqui não houve inculturação numa cultura estranha. Ele aprendeu desde criança sua própria cultura como todos nós.
Como pessoa divina, porém, podemos, analogicamente, dizer que Ele veio de “outro continente”, saiu de sua “pátria divina” e se inculturou numa pátria “estranha”, na “pátria humana”.
A Encarnação, portanto, tem algo específico e não pode sem mais nem menos ser identificada com a inculturação. Precisamos sempre distinguir esses dois momentos. Deus despojou-se - São Paulo fala da kenose (Fil 2) - de sua divindade e entrou nessa cultura de Nazaré (inculturação). Mas esse Deus também nasceu como pessoa humana e se enculturou aprendendo com os nazarenos.
Evangelizar com o culturalmente disponível
Como a cultura de nenhum povo é normativa para outro povo, Jesus de Nazaré não padronizou sua cultura para viver e testemunhar a experiência de Deus. Tampouco se fez, no meio de seu povo, o que os etnólogos chamam de “herói civilizador” ou “inovador cultural”. Jesus interveio em sua própria cultura - dentro dos limites da consciência possível de sua época - , quando se tratava de estruturas de pecado no interior do seu povo (crítica do farisaísmo). Para explicar a vontade de Deus, Jesus se serviu em todas as circunstâncias de sua vida do culturalmente disponível.
Jesus não fez empréstimos ou importações culturais para explicar os mistérios de Deus. Não mandou buscar bebida fermentada do Egito para celebrar a Última Ceia com seus apóstolos. Apesar da simplicidade de sua cultura, explicava os mistérios do Reino numa linguagem compreensível para todo mundo, sem empréstimos da Grécia.
O culturalmente disponível não é "qualquer coisa". As diferentes experiências humanas vividas e culturalmente codificadas por grupos sociais não são algo arbitrário ou descartável. São resultado de uma longa experiência histórica. Representam experiências de vida complementares à nossa. Frente ao diferente não sou indiferente, mas tolerante, solidário e atento.
Na primeira evangelização das Américas, as coisas eram diferentes. Quando Bartolomeu de Las Casas celebrou sua primeira missa em Cuba, em 1510, ele escreve que "no se bebió en toda ella una gota de vino, porque no se halló en toda la isla, por haber días que no habían venido navíos de Castilla".[4][4] Uma vez que o vinho não tinha chegado da Espanha, celebrou-se uma "missa seca", antes do Concílio de Trento (1545-1563) ainda permitida.
Normatiavidade da inculturação
A inculturação do Evangelho é um imperativo do seguimento de Jesus (cf. Santo Domingo 13). Ela é normativa para a missão da Igreja e significa descolonização e nova evangelização:
- descolonizar o processo de evangelização (desvincular a evangelização de uma suposta cultura padrão; trabalhar com o culturalmente disponível);
- socializar o Evangelho e traduzir seu projeto de vida, com suas metáforas e parábolas, na cultura do respectivo grupo social (alfabetização evangelizadora em língua materna) para tornar o amor de Deus compreensível e palpável.
É difícil fazer uma declaração de amor numa língua mal falada. É impossível evangelizar a partir de uma cultura não compreendida. Como a alfabetização deve ser feita na língua materna e nunca numa “segunda língua“, assim também a socialização do Evangelho deve ser feita em língua materna, quer dizer, na cultura primeira onde o respectivo grupo social está enraizado. É difícil fazer a experiência de Deus na cultura do colonizador. Na evangelização, não se trata de inculcar conteúdos doutrinários, mas de vibrar com a experiência de Deus.
Conteúdos normativos, ensinamentos paradigmáticos e regras convencionadas
No processo da evangelização inculturada precisamos distinguir três níveis: aquilo que no Evangelho representa conteúdo normativo, o que tem valor paradigmático, como as parábolas, e aquilo que é opção convencional e regra mutável.
Normativo, no Evangelho, por exemplo, é o mistério da Encarnação do Verbo em Jesus de Nazaré. A normatividade do Evangelho nos remete a outra questão: a da identidade do Evangelho. O que deve ser vivido em todas as culturas? O vinho, como matéria eucarística, é normativo ou paradigmático? A inculturação atua no nível paradigmático e convencional. Evidentemente não pode atingir o normativo. Mas o que é normativo no Evangelho?
Com a Encarnação, Jesus de Nazaré não dogmatizou sua cultura. Deu um exemplo para a “Encarnação” do Evangelho em todas as culturas. As parábolas do Reino, é claro, são paradigmáticas, portanto, culturais. Pode-se inventar em outras culturas outras parábolas. A escolha dos Doze, por Jesus, certamente era paradigmática. Quando não era mais possível administrar a Igreja com doze ministros apostólicos, a Igreja aumentou o número. Apesar de o número doze ter uma valor simbólico importante para Jesus, na história da Igreja a necessidade pastoral tinha mais peso do que o valor simbólico das doze tribos de Javé. A “necessidade das almas” é a suprema lei.
A comunidade eclesial tem necessidade de estabelecer certas normas que não estão explicitadas no Evangelho, mas que devem ser concebidas dentro do espírito do Evangelho. Tais opções “convencionais” as encontramos, por exemplo, na lei canônica, em algumas prescrições litúrgicas, na lei do celibato. Sua mudança não envolve a normatividade do Evangelho.
Precariedade da inculturação
Cada inculturação do Evangelho representa uma aproximação precária aos mistérios de Deus. A realidade de Deus não cabe nas linguagens humanas. A evangelização inculturada é um imperativo vivido no “imperfeito histórico”.
Quando Jesus falou da realidade do Reino, contou parábolas. Quando falamos da realidade de Deus, sempre precisamos recorrer a parábolas, metáforas, linguagens poéticas. As definições dos mistérios de Deus em linguagens humanas, sempre são também “falsificações”. Primam mais pela não-semelhança que pela semelhança. A inculturação do cristianismo no helenismo fez esquecer algumas páginas genuínas do Evangelho. Nenhuma inculturação e nenhuma definição chegam realmente perto de Deus. São muletas. Não podem ser normatizadas. Os mistérios de Deus não cabem numa cultura. Alguma parte do Logos, alguma razão divina, está em todas as culturas. Mas nenhuma cultura dispõe do Logos por completo. O Logos se revela em todas as culturas; porém se revela parcialmente. Por isso, sua verificação pluricultural representa a maior aproximação possível aos mistérios divinos.
A inculturação é um processo permanente com etapas diferentes. A primeira etapa é o momento da aproximação. Uma pessoa ou um grupo entra num ambiente cultural estranho; escuta, aprende, começa a comunicar-se. Pela segunda etapa responde o respectivo povo. Ele coloca o Evangelho dentro de sua cultura. Como ninguém consegue colocar a mensagem evangélica plenamente dentro de sua cultura, resta sempre um imperativo para uma inculturação mais adequada. A inculturação não tem um ponto final.
Inculturação e libertação
O paradigma da inculturação não substitui o paradigma da libertação, mas ajuda para aprofundá-lo. A meta da inculturação é a libertação e o caminho da libertação passa pela inculturação. A libertação macro-estrutural exige a proximidade micro-estrutural.
Frente aos grandes problemas do século XXI, a inculturação pode ser confundida com uma fuga da macroperplexidade e das mega-estruturas. O documento “Rumo ao Novo Milênio”, da CNBB, responde corretamente a essa questão, quando afirma: “Deve ficar claro que para nós a inculturação não substitui a libertação, mas a aprofunda” (n. 84). A evangelização inculturada não enfraquece a opção pelos pobres. A pobreza também é inculturada. A inculturação não nos desvincula das grandes questões da humanidade, mas recorre aos lugares, onde tais questões deixam suas seqüelas, recorre aos grupos mais prejudicados.
Trabalhar os grandes desafios de uma época na micro-estrutura dos grupos sociais, no interior de suas culturas, linguagens e visões do mundo -- eis o desafio da inculturação. O “corpo a corpo” da evangelização inculturada “se realiza no projeto de cada povo, fortalecendo sua identidade e libertando-o dos poderes da morte" (Santo Domingo 13).
Identidade e alteridade
No novo paradigma da identidade, a partir do Evangelho, considera a identidade não como algo inclusivo (inclusão do outro no meu universo ou identificação com o universo do outro), nem exclusivo (a=a; b=b; “a” exclui “b”; uma terceira possibilidade não existe), mas como algo dinâmico, convidativo, “cambial” e relacional (o átomo pode ser matéria e onda). Exclusão e inclusão destroem a alteridade e a identidade.
A identidade pode-se descrever somente em frente de uma respectiva alteridade. Não existe uma identidade eclesial em si. A alteridade da Igreja é Deus e o mundo. A identidade do processo de evangelização está na continuidade dos cristãos que fazem a experiência de Deus e de Jesus ressuscitado na prática do Reino, no caminho e na travessia, na partilha e no serviço.
Frente à mimesis aculturativa e evolucionista (alguém quer ser como os outros; o presente deles é o nosso futuro) e frente ao fechamento fundamentalista (depois da volta da "Babilônia" construir muros de proteção em torno de "Jerusalém", do templo, dos seminários, da Igreja), estamos diante dos desafios da "identidade messiânica" de estar no mundo sem ser do mundo. Não excluímos o outro como "terceiro"; o acolhemos, sem identificação com ele e sem incorporação dele no nosso universo cultural.
Intervenção missionária
Não só a evangelização colonizadora, mas também a evangelização inculturada representa uma intervenção cultural. A intervenção missionária se restringe ao testemunho da experiência de Deus e à comunicação dessa experiência social e espiritualmente relevante por palavras, imagens de esperança e relações simétricas.
Viver é conviver e conviver significa também interferir. A nossa “intervenção” é decorrência do nosso estatuto social. Nas condições históricas concretas precisamos estar atentos para a avaliação crítica dessa interação. A nossa presença deve ser avaliada pelo espaço que soube criar para o reconhecimento e pelo protagonismo dos outros.
O Evangelho nos faz cativos dos outros, mas nos impulsiona também, na ternura do amor maior, a “cativar” os outros pobres no meio de nós e nos confins do mundo. À globalização respondemos mediante uma contextualidade universalmente articulada; à exclusão respondemos não pela simples inclusão; descortinamos um horizonte de esperança. O Evangelho nos faz eternamente responsáveis uns pelos outros.
A comunidade missionária relativiza sua cultura
A missão relativiza a cultura do evangelizador e fortalece a identidade cultural-histórica dos outros. O evangelizador relativiza suas expressões culturais matriciais em função da comunicabilidade do amor de Deus; aceita novas matrizes, fortalece o outro assumindo suas expressões, até este ser capaz de se relativizar por sua vez. O Evangelho fortalece a cultura do outro. Mas quando este outro/a se torna cristão, portanto missionário e missionária, o mesmo Evangelho relativiza sua cultura.
No despojamento, na kenose, o senhor da história nos acompanha até os confins do mundo. A cruz e as chagas do mundo assumidas são o “preço” de Sua presença. Mas para os discípulos de Jesus, Suas chagas não são causa de espanto, mas de “intensa alegria” (Jn 20,20). Experiência pascal.
Ser comunidade missionária significa viver o seguimento e a inculturação como solidariedade; significa estar bem com a vida, atento no discernimento, inesgotável na gratuidade do perdão; significa, sobretudo, viver na abertura para o mistério de Deus e do próximo; viver sem fronteiras na diaconia, na partilha e na misericórdia; ser porta e caminho.
2.6. Horizontes abertos
A partir do paradigma da inculturação, hoje, podem-se distinguir três setores no interior das Igrejas. O primeiro procura evitar, tanto quanto possível, a palavra "inculturação". O segundo setor considera este tema inevitável e tenta ler o paradigma da "inculturação", sem mudar as estruturas que dificultam a participação eclesial do povo, em chave tridentina de "conversão", "fundação da Igreja", "integração" ou "adaptação". Também as Conclusões de Santo Domingo ainda não estão livres desta perspectiva e da linguagem do colonizador. A “cultura cristã” e a fé, segundo Santo Domingo, deveriam "penetrar" (machismo!) nas culturas dos povos (SD 35, 161, 229, 302s) e "invadir” (colonizador!) os seus corações " (SD 229) para corrigir o seus erros. Já um terceiro setor fala da inculturação enquanto disponibilidade para a renúncia ao etnocentrismo e colonialismo; fala da disponibilidade ao diálogo e do reconhecimento dos Outros como princípio de identidade da Igreja.
Em seu conjunto, a inculturação permanece até hoje um sonho. Ela exige das Igrejas uma identidade adulta, uma sensibilidade hermenêutica e uma liberdade audaz para acolher a experiência de Deus nos mais diversos projetos de vida dos povos. A realidade pastoral não avançou muito além de adaptações folclóricas. Hoje, se conhece o preço de uma evangelização colonizadora que é a violência e a alienação. Inculturação e diálogo inter-religioso apontam para a felicidade de um mundo reconciliado, portanto, para um mundo sem alienação e violência, onde o estranho, no espaço da proximidade, permanece autônomo e diferente, além de uma heterogeneidade babilônica e de uma unidade produzida pelo abraço mortal da integração no próprio. A inculturação, com seus pressupostos de kenose e gratuidade, permanece horizonte do “encontro feliz” num mundo para todos.
3 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
31. Bibliografia geral
AZEVEDO, Marcello de Carvalho. Viver a fé cristã nas diferentes culturas. São Paulo: Loyola, 2001.
COMBLIN, José. As aporias da inculturação. REB, v. 56 e 57, n. 223 e 224, p. 664-684 e 903-929, set. e dez. 1996.
IRARRÁZAVAL, Diego. Inculturación. Amanecer eclesial en América Latina, Lima: CEP, 1998.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
MIRANDA, Mario de França. Inculturação da fé. Uma abordagem teológica. São Paulo: Loyola, 2001.
PEELMAN, Achiel. L´inculturation. L´Église et les cultures. Ottawa: Desclée/Novalis, 1989.
PHAN, Peter. In our own tongues. Perspectives from Asia on mission and inculturation. Maryknoll, New York: Orbis Books, 2003.
SUESS, Paulo. Inculturação. Desafios, caminhos, metas. REB, v. 49, n. 193, p. 81-126, março 1989. - Também CELAM (Org.). Pastoral indígena hoy en la Amazonia. Bogotá, (Col. Demis, 10), 1989, p. 15-84. - Tb. ELLACURÍA, Ignacio; SOBRINO, Jon (Orgs.). Mysterium liberationis. Conceptos fundamentales de la Teología de la Liberación. 2 vols., Madrid: Trotta, 1990, vol. 2, p. 377-422.
SUESS, Paulo. Apontamentos para a evangelização inculturada. In: COUTO A. Márcio; BATAGIN Sônia (Orgs.). Novo milênio. Perspectivas, debates, sugestões. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 11-52.
SUESS, Paulo. O paradigma da inculturação revisitado. Apontamentos para itinerário, limites e desafios de um conceito frente ao pluralismo religioso. In:
TAVARES, Sinivaldo S. (Org.). Inculturação da fé. Petrópolis: Vozes, 2001.
TORRE ARRANZ, Jesús A. Evangelización inculturda y liberadora. La praxis misionera a partir de los encuentros latinoamericanos del postconcilio. Quito: Abya-Yala, 1989.
3.2. Documentos eclesiais
PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, 1975.
JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Catechesi Tradendae, 1979, n. 53.
JOÃO PAULO II. Carta Encílica Slavorum Apostoli, 1985, n. 21.
JOÃO PAULO II. Carta Encílica Redemptoris Missio, 1990, n. 52-54.
CONCLUSÕES DA IV CONFERÊNCIA DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (SANTO DOMINGO). 1992, n. 13, 15, 24, 30, 33, 43, 49, 53, 55, 58, 84, 87, 102, 128, 177, 224, 230, 243, 248, 250, 253s, 256, 271, 279.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Rumo ao novo milênio. Projeto de evangelização da Igreja no Brasil em preparação ao grande jubileu do ano 2000. São Paulo: Paulinas, 1996 (Série Documentos da CNBB 56).
[1][1] Carta de José de Anchieta ao segundo Geral da Companhia de Jesus, Diego Laynes, escrita em São Vicente (14.4.1563), apud S. LEITE, Cartas dos primeiros Jesuítas do Brasil, vol. III, Coimbra/São Paulo, 1958, p. 554.
[2][2]Michel de Montaigne, Essais [1588] , I.23 e I.31.
[3][3]Silvio Castro (ed.), A carta de Pero Vaz de Caminha, Porto Alegre, L&PM, 1985, pp. 95s.
[4][4]Bartolomé de Las Casas, História de las Indias, liv. II, cap. 54.
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