O ponto central de Gn 11,1-9 é a crítica à cidade que fala uma só língua, e principalmente a torre que o povo da cidade está construindo.
Quem teria criado a historia que cristalizou nesse texto? Certamente alguém que não morava na cidade ou, se morava, tinha bons motivos para não gostar dela. Ora, podemos pensar logo no camponês, que não vive na cidade, e explorado por ela tanto no seu trabalho como no que produz, e sempre faz o papel do ridículo quando nela se encontra. Mas o camponês não é bobo, e o nosso texto mostra que ele sabe muito bem que esta por traz da bela aparência da cidade, assim, o que temos em Gn 11,1-9 é a critica do camponês a estrutura e pretensão da cidade, principalmente as metrópoles e as megalópoles, que falam uma só língua e são cheias de torres. Estamos usando o plural “torres”, o que se explicara logo a seguir. O importante é não perdermos de vista que por trás desse texto existe o conflito: CAMPO X CIDADE, CAMPONÊS X CIDADÃO.
A PRETENSÃO DA CIDADE (OU DOS CITADINOS)
Muito provavelmente a cidade nasceu de um ponto em que as pessoas se encontravam para trocar o que haviam produzido. Desse encontro nasceu a atividade política como exercício organizador das liberdades, e principalmente dos conflitos de interesses. Da troca de produtos nasceu a atividade econômica que acabou dando no comercio. E daí temos o germe da cidade: Política e Economia.
Mas o encontro se diversifica: Há quem tem mais, outros menos, e outros muito menos. Surge então as classes sociais: os que estão lá em cima, os que estão no meio, e os que estão lá embaixo. Mas, como dar coesão a tudo isso? É preciso uma idéia comum uma linguagem comum, para que todos aceitem a cidade como ela é, ou como acabou sendo, uma idéia de linguagem aceita por todos, embora os grupos diversos tenham o poder aquisitivo participativo e posição social diferente, desigual. E vem então o milagre social da língua única: a ideologia. Esta pode muitas vezes se explicar como código ético, que determine o que é bom e o que é mal (raramente alguém pergunta: “bom para quem?” ou “mal para quem?”). outras vezes a ideologia se explicita miticamente através de construções religiosas que, em ultima análise, justificam tudo através da vontade de algum deus: “Deus criou as coisas assim” ou “Deus quer assim”.
O ponto nevrálgico do texto é a construção da torre. Se identificarmos a cidade como Babilônia, logo veremos a torre com um zigurate, a torre alta do templo. Nela o rei e o sumo sacerdote subia para se encontrar e falar com a divindade mediada pelo sacerdote e representada pelo rei. Uma invenção muito esperta para controlar todo o povo.
É uma torre simbólica, já que a pretensão dos citadinos é penetrar no céu, ou seja, uma ambição absoluta. Do céu, pode-se controlar tudo, em qualquer setor. Eu veria, portanto, uma torre em quatro partes, ou melhor, ainda, veria quatro torres, abrigando os quatro centros da cidade: A torre da economia, a torre da política, a torre da hegemonia social e a torre da ideologia.
“Uma torre cujo ápice penetre nos céus” é a pretensão das forças que dominam a cidade.
A TORRE DA ECONOMIA
Quem tem muito acaba ganhando mais, e quem tem pouco acaba perdendo tudo o que tem. Palavras toscas, mas é a realidade. É assim que se constrói a torre da economia, uma das torres mais altas da cidade. Quem duvida disso basta verificar: Quais são as mais altas e belas construções da cidade? Não são os bancos, as caixas econômicas os edifícios da bolsa de valores? Aí estão concentrados os bens da vida, transformados em dinheiro. Esses bens não foram produzidos pela cidade, mas pelo campo. E agora, estão na mão de quem?
A TORRE DA POLÍTICA
Quem tem mais pode mais, e quem tem pouco ou nada está fora da jogada. É mais ou menos essa a lei da política: o poder a serviço do Ter. e aqui começa a construção da Segunda torre da cidade. Os que possuem bastante e querem possuir ainda mais tratam de defender o seu interesse: ter sempre mais. Por trás da corrida política está sempre a corrida pelo ter. ter é pode, e poder é uma sensação indivisível de controlar tudo. É se Deus sem ser Deus, ou pode-se até confundir tudo, e pensar que se é o próprio Deus. Porque o poder é a possibilidade de dispor de tudo e todos como se as pessoas fossem coisas sem destino e vontade própria. Uma embriaguez sem fim.
A TORRE DA IDEOLOGIA
A torre da ideologia pode ser a torre da religião, ou, se quisermos as igrejas e templos que, de um lado, pretendem comunicar a vontade de Deus, mas, de outro lado, pode estar simplesmente falando a linguagem única da cidade, cimentando os projetos dos homens como uma suposta vontade divina. O que haveria de melhor do que a desculpa da vontade de Deus para justificar a desigualdade e a injustiça econômica, política e social que impera na cidade? A vontade de Deus e, é claro a sua interpretação podem ser suficientemente elástica para que cada um no seu lugar entenda a sua vida como disposição divina.
Mas a torre da ideologia pode ser também as altas torres de rádio, televisão e todas as outras que servem à comunicação. Não vendem todas elas a idéia comum de que a cidade é grande, bonita, cobiçável, a melhor coisa que se inventou até agora? É, de roldão vai o resto: a economia é assim mesmo, a política é assim mesmo, o arranjo social é assim mesmo...
Religião é comunicação e comunicação pode trazer o milagre da fala comum e única. Embora diferentes entre si, separados por abismos de desigualdades, os homens todos podem pensar de forma igual e, sem discutir construírem a torre da cidade, a pretensão de onipotência que sobe ao céu, servindo a alguns e servindo-se de todos os outros.
IRONIA: OS HOMENS SOBEM E DEUS DESCE
O versículo 5 envolve uma grande ironia: enquanto a cidade e a torre sobem, querendo penetrar o céu, Deus desce, para ver o que é que os homens estão fazendo. Isso já é um julgamento. Por mais que os homens façam, jamais conseguem chegar até Deus.
Nesta perícope está o mistério central revelado na bíblia. Os homens querem subir até Deus e, se possível, ocupar o lugar dele. Deus, ao contrário, quer descer, e desce ao nível da humanidade, e ocupa o ultimo lugar entre os homens (Fl 2,6-11). Enquanto os homens procuram a todo custo se desencarnar, Deus se encarna... “Todo homem quer ser Rei, todo Rei quer ser Deus, mas somente Deus se fez Homem”.
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