breve resumo do livro
Jean Yves Leloup, Clamores da revelação, ed. Vozes,
Petrópolis, RJ,2003.
O
apocalipse é uma revelação, um velar de novo, e um desvelamento, um desnudamento
dos múltiplos véus que revestem o palco, lúdico e trágico, da encarnação do
drama humano, com as suas contradições, incertezas e promessas.
O
revelar simbólico e o desnudamento fenomenológico constituem a natureza mesma
dos diversos apocalipses da tradição judaico-cristã. Textos que precisam ser
lidos com a mente aberta aos símbolos, estes reservatórios de energias, que
apontam para o desconhecido, sem jamais pretender esgotar uma realidade que nos
toca e escapa. Clamores para a travessia das sombras, para uma atitude reta
digna no confronto com as adversidades e os absurdos, rumo a uma claridade
pressentida, a nos aguardar no final dos escombros.
Apenas
uma visão transdisciplinar pode ampliar o universo compreensivo e captar
princípios norteadores, na leitura deste universo de luzes e de sombras, de
garras e de asas, de berros e de cânticos.
Apocalipse
é a transcrição de uma palavra grega, que quer dizer desvelamento, revelação.
Revelação de que? Revelação de quem?
O
que João está vivendo é o desmoronamento de seu mundo, é o desmoronamento do
seu ideal, daquilo no qual ele investiu toda sua fé e todo seu amor. Nós também
já vivemos estes momentos de apocalipse, quando tudo desmorona, quando tudo nos
é tirado. Mas são nestes momentos que se revela a verdade de nosso ser, e essa
verdade de nosso ser é o apocalipse. É a revelação do sujeito que somos, do “Eu
Sou” que somos, face à adversidade, face ao absurdo.
As
respostas que João encontra para estas questões não são racionais. Estas
respostas chegarão a ele através do seu inconsciente, através da linguagem das
imagens, através da linguagem dos símbolos. O que ele está vivendo é, ao mesmo
tempo, um sonho e um pesadelo. E é através destas imagens da noite que o
sentido do mal e do sofrimento se revelará.
A
revelação que ocorre no interior de João é o desvelar de uma presença. No
centro de sua solidão e de seu exílio ele não está sozinho, ele tem a visão de
Alguém, e é por esta grande visão que começa o livro do Apocalipse. Podemos
dizer que o livro do apocalipse é um mergulho no inconsciente pessoal de João e
também um mergulho no inconsciente coletivo do que sua comunidade está vivendo.
Mas o que João viveu não foi simplesmente a descida ao inconsciente, mas foi
também a entrada no mundo do imaginário que não é somente o mundo da
imaginação. O mundo do imaginário é também o mundo intermediário situado entre
o mundo do pensamento, da racionalidade e o mundo da clara luz, da pura
espiritualidade. É o mundo das imagens estruturantes, é o mundo das imagens arquetípicas.
A
linguagem do apocalipse é um gênero literário encontrado na Bíblia, já no
Antigo Testamento, no livro de Daniel, por exemplo. Nós a encontramos em
algumas visões dos profetas. Nos livros de Ezequiel e de Isaias existem também
apocalipses, isto é, desvelamento da realidade, desvelamento do sentido,
desvelamento este que é comunicado através de imagens e símbolos.
O
Apocalipse é o resultado de um enorme esforço para dar sentido ao mal que
existe, ao absurdo que temos de enfrentar no decorrer da nossa vida. Nós o
lemos como se escutássemos um sonho, um sonho revelador. Não somente da maneira
como se vivia no tempo de João, mas também da maneira como se vive nas
profundezas do ser, como se vive nas profundezas do mundo e do que pode ser
revelado através das provações da existência. (Midrash pechér).
A
mensagem que João recebe na Ilha de Patmos é que o exílio que ele está vivendo,
as perseguições aos inocentes, todos os obstáculos, todas as manifestações de
Shatan, são oportunidades para que ele se torne alguém, para que se torne
sujeito e para que ele reencontre o Sujeito Primeiro, o “Eu Sou Aquele que É”,
que é a própria realidade de Deus.
Este
alguém tem um coração, e o coração do Sujeito aparece a João sob a forma de
cordeiro. O Cordeiro que é, ao mesmo tempo, um símbolo de inocência e de
vulnerabilidade será, no Livro do Apocalipse, o símbolo do vencedor, do
vencedor que não faz vítimas.
João,
através das visões, vai descer ao lugar dele mesmo que se chama “o Cordeiro”.
Esse Cordeiro, na sua face humana, é o Cristo. O Cristo que, ao mesmo tempo,
está imolado, crucificado e que, entretanto, é vencedor. O Cordeiro será, pois,
uma imagem muito importante para João no momento em que ele descobre que o
Cristo não é um personagem exterior, mas uma realidade interior. Que o amor tem
uma maneira muito concreta para fazer face ao mal, fazer face ao Dragão. O
Dragão é aquele que devora o outro. O Dragão do Apocalipse, ao mesmo tempo,
devora e vomita. Este Dragão é uma expressão e uma manifestação do abismo que
habita algumas pessoas, do Shatan que habita e que as impede de comungar.
Consumir
ou comungar. São duas maneiras de entrar em relação com o mundo, e precisamos
observar os momentos em que consumimos e os momentos em que comungamos. Os
momentos em que vivem em nós o Dragão e o Shatan – expressão do abismo -, e os
momentos em que comungamos, que são sinais, em nós, da presença do Cordeiro, da
presença do Sujeito, da presença do “Eu Sou”.
Nossa
vida, freqüentemente, é um combate entre estas polaridades de sombra e luz, de
inferno e aberto, de consumo e comunhão. O Apocalipse nos revela tudo o que
somos.
O
que João está vivendo, o que ele expressa através deste livro, é realmente um
processo de individuação, de integração do Eu e do Self, do Eu social e
cósmico, e do Self social e cósmico. Porque é preciso reconhecer o abismo que
está em nós, reconhecer o Shatan que está em nós, o Dragão, o Cavaleiro, a
Prostituta, a Besta, que vão dar nascimento à Babilônia. O Apocalipse é sempre um livro atual, porque
através dele podemos observar este combate interior que se expressa no
exterior.
A
primeira realidade que se desvela a João no Apocalipse não é a de uma
catástrofe, mesmo porque não há necessidade de revelação para o que está
vivendo, para este fracasso, este exílio, esta violência ao seu redor. Mas o
que se revela no meio de tudo isto é a presença do Eu Sou.
“Não
tenha medo! Eu Sou o Primeiro. Eu Sou o Último. Eu Sou o Vivente” (Ap 1,18).
O
Apocalipse tem, talvez, uma visão mais total do amor. Não mostra somente o amor
gentil, também o amor combatente. Não somente o amor passivo e paciente mas o
amor que quer a justiça, que quer a transformação do mundo e que não aceita a
violência e a ignorância nas quais vivemos.
Amar
é lutar contra a ignorância, não se entregar. É viver de forma a poder dizer
tal como Paulo: “já não sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim”.
O
que o Apocalipse revela a João é que há uma outra maneira de utilizar nossas
funções. Essa nova maneira de utiliza-las levará não à dominação, mas ao
serviço, não a paixão, mas à compaixão, não à posse, mas à repartição da terra,
não à decomposição, mas à compreensão do um e do múltiplo. A questão é saber
quem habita o centro do nosso ser, se o Dragão ou o Cordeiro, se o Eu Sou ou o
Shatan. Um mundo novo nasce desta orientação interior.
O
anjo que fala ao Apóstolo João diz-lhe em primeiro lugar: “Escute”; em seguida
fiz-lhe: “Veja” – escutar para ver. Finalmente o anjo dirá a João uma terceira
palavra: “Escreva”. Escreva o que você escutou, escreva o que você viu.
O
que João vê é que existem outras maneiras de entrar em relação uns com os
outros, dando nascimento a uma nova sociedade, à Nova Jerusalém.
Para
construir Jerusalém e suas muralhas é preciso primeiramente trabalhar a pedra
bruta. Este trabalho sobre a pedra bruta simboliza ocupar-se de si mesmo, amar
a si mesmo. Este é o estágio do aprendiz. O aprendiz aprende a conhecer a si
mesmo e a se amar.
Conhecendo
e amando a si mesmo, o aprendiz adquire a condição necessária para passar ao
estágio de companheiro. O trabalho agora não é feito mais sobre a pedra bruta,
mas sobre a pedra que foi talhada e que é cúbica. A pedra cúbica é a pedra que
pode se juntar a outras pedras. Esta segunda etapa consiste em cuidar não só de
si mesmo, mas em cuidar do outro, consiste em harmonizar a sua pedra com outras
pedras para construir o Templo e a Nova Jerusalém.
Finalmente
há um terceiro estágio onde não é mais aprendiz nem companheiro, mas se entra
na iniciação. É o estágio da pedra filosofal. A realidade é sempre a mesma, a
da minha humanidade que foi trabalhada e transformada, que foi transformada
através das minhas relações com o outro. A pedra filosofal transforma tudo que
ela toca em ouro.
A
linguagem das Escrituras é uma linguagem endereçada à nossa liberdade. Existe
uma parte do caminho que temos a fazer que é a nossa interpretação, da mesma
maneira como recebemos os sonhos à noite, como uma carta que recebemos do
Bem-amado. Para ler a carta é preciso abrir o envelope. Da mesma maneira, quando
lemos as Escrituras, é preciso “ler a carta”, “ler a letra”, ler o que está
escrito. Se o envelope não é aberto e a carta não é lida corretamente, passa-se
do que diz São Paulo, “a palavra mata”, para as letras do Alcorão que hoje
matam. Como as letras da Tora que também matam.
As
letras contidas no Evangelho foram também usadas para matar. “Abrir a letra” é
como abrir uma amêndoa, é preciso quebrar a casca para descobrir o fruto. Da
mesma maneira, em todas as palavras dos Evangelhos e dos textos sagrados é
preciso quebrar a casca, o revestimento da letra para descobrir o fruto do
sentido. E essa é a nossa liberdade.
Estes
símbolos, estas imagens nos são dados para nos tornar inteligentes, para nos
fazer trabalhar. A palavra inteligente significa ler dentro, ler no interior. A
palavra nos é dada, mas cabe a nós lê-la em seu interior. No pensamento bíblico
isto vai até mais longe. Porque a Bíblia é um livro que nunca foi escrito, nele
existem somente as consoantes, e nos é pedido para colocar as vogais. O que nós
chamamos de Bíblia são as vogais que nós juntamos às consoantes. Portanto, é
uma interpretação da Bíblia, não é uma Bíblia. Da mesma maneira como uma
tradução é sempre uma interpretação. Isto deveria nos permitir não idolatrar
nenhuma palavra.
A
busca de Deus, a busca da verdade, passa também por apocalipses pessoais, mas
são sempre coisas positivas, mesmo se forem duras para o nosso corpo, mesmo se
forem duras para nossa inteligência e afetividade. E, através destes acidentes,
aprendemos a nos conhecer. Aprendemos também a conhecer Deus.
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