sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Enraizamento de Jesus no judaísmo

Discurso à Comissão bíblica pontifícia.

 



A Comissão bíblica pontifical se reuniu em Roma, de 7 a 11 de abril de 1997, sob a presidência do cardeal Joseph Ratzinger, em sessão plenária anual. Ela tinha por tema de estudo: “Relação entre Novo e Antigo Testamentos, entre cristãos e judeus.” Os participantes foram recebidos em audiência por João Paulo II no dia 11 de abril na Sala do Consistório. Respondendo às palavras de homenagem do cardeal Ratzinger, o Papa pronunciou o seguinte discurso.[1]





1 - Senhor cardeal, agradeço de todo coração os sentimentos que quisestes manifestar ao me apresentar à Comissão bíblica pontifícia, no início de seu mandato. Saúdo cordialmente os antigos e novos membros da Comissão que estão presentes nessa audiência.  Saúdo os “antigos” com uma viva gratidão pela tarefa que eles cumpriram , e aos “novos” com uma alegria particular, suscitada pela esperança. Estou feliz que esta ocasião me permite de vos encontrar todos pessoalmente e renovar meu apreço  a cada um pela generosidade com a qual colocais vossa competência a serviço da Palavra de Deus e do Magistério da Igreja.

                O tema que começastes a estudar no decorrer de vossa atual sessão plenária é uma importância enorme: com efeito, trata-se de um tema fundamental para a compreensão correta do mistério de Cristo e da identidade cristã.  Primeiramente gostaria de sublinhar esta utilidade que nós poderíamos chamar ad intra. Por outro lado, sem dúvida nenhuma, ela se reflete numa utilidade por assim dizer ad extra, dado que a consciência da identidade própria determina a natureza das relações com as outras pessoas. No caso presente, ela determina a natureza das relações entre cristãos e judeus.



Jesus, filho autêntico de Israel




2 - A partir do II século d. C., a Igreja se encontrou diante da tentação de separar completamente o Novo Testamento do Antigo e de os colocar em oposição, atribuindo-lhes origem diferente. Segundo Marcião, o Antigo Testamento vinha de um Deus indigno deste nome, porque vingador e sanguinário, enquanto o novo Testamento revelava o Deus reconciliador e generoso. A Igreja rejeitou este erro com firmeza, relembrando a todos o quanto a ternura de Deus já se manifesta no Antigo Testamento. Infelizmente esta tentação marcionita continua representada mesmo em nossa época.  Entretanto, o que se verifica mais freqüentemente é a ignorância do profundo relacionamento que liga o Novo Testamento ao Antigo. Esta ignorância leva alguns a pensarem que os cristãos não tem nada em comum com os judeus.

                Muitos séculos de preconceitos e de oposição recíproca criaram um profundo fosso que a Igreja se esforça atualmente por preencher, impulsionada nesse sentido pelo Concílio Vaticano II. Os novos Lecionários litúrgicos deram mais espaço para os textos do Antigo Testamento e o Catecismo da Igreja Católica teve uma preocupação de recorrer continuamente ao tesouro das Santas Escrituras.



3 - Na realidade não podemos expressar plenamente o mistério de Cristo sem recorrer ao Antigo Testamento. A identidade humana de Jesus se define a partir de sua relação com o povo de Israel, com a dinastia de Davi e a descendência de Abraão. Não se trata somente de uma aparência física. Freqüentando a sinagoga onde eram lidos os textos do Antigo Testamento, Jesus tomava também humanamente consciência destes textos. Ele nutria seu espírito e seu coração destes textos. Em seguida, servindo-se deles em sua oração, neles inspirava seu comportamento.

Ele se tornou assim um autêntico filho de Israel, profundamente enraizado na longa história de seu povo. Quando ele começou a pregar e ensinar ele buscou continuamente no tesouro das Escrituras, enriquecendo este tesouro de inspirações novas e de iniciativas inesperadas. Estas - note-se bem - não visavam abolir a antiga revelação, mas, antes, pelo contrário, levá-las ao seu cumprimento perfeito. A oposição sempre mais consistente que Jesus teve que enfrentar até o calvário, foi por ele compreendida à luz do Antigo Testamento, que lhe revelava a sorte reservada aos profetas. Ele sabia também, a partir do Antigo Testamento , que finalmente o amor de Deus é sempre vitorioso.

Privar o Cristo de sua relação ao Antigo Testamento é desligá-lo de suas raízes e esvaziar seu mistério de todo significado. Com efeito para ser significativa, a encarnação tinha necessidade de se enraizar em séculos de preparação. Se não fosse assim, Cristo teria sido como um meteoro caído acidentalmente sobre a terra e privado de qualquer ligação com a história da humanidade.



A Encarnação se insere na história judaica



4 - A Igreja, desde suas origens, compreendeu bem o enraizamento da encarnação na história, e, por conseguinte, ela acolheu plenamente a inserção do Cristo na história do povo de Israel. A Igreja viu as Escrituras judaicas como Palavra de Deus eternamente válida, dirigida à ela mesma como aos filhos de Israel. É de suma importância guardar e renovar esta consciência eclesial das relações essenciais com o Antigo Testamento. Estou certo que vossos trabalhos contribuirão de uma maneira excelente e eu me alegro desde já, agradecendo-vos de todo coração.

Sois chamados a ajudar os cristãos a bem compreender sua identidade. Uma identidade que se define antes de tudo pela fé em Cristo, filho de Deus. Mas esta fé e inseparável de sua relação com o Antigo Testamento a partir do momento em que esta fé é uma fé no Cristo morto por nossos pecados segundo as Escrituras” e ressuscitado ...segundo as Escrituras” ( I Co 15, 3-4). O cristão deve saber que por sua adesão a Cristo, ele se tornou “descendente de Abraão”( Gl. 3,29) e que ele foi enxertado na boa oliveira (cf. Rm 11, 17.21), quer dizer inserido no povo de Israel para ser “participante da raiz e da seiva da oliveira” (Rm 11,17). Se ele possui esta forte convicção, ele não poderá mais aceitar que os judeus enquanto judeus sejam menosprezados ou pior, maltratados.



5 - Dizendo isto eu não quero ignorar que o Novo Testamento conserva os traços das claras tensões que existiram entre as comunidades cristãs primitivas e certos grupos de judeus não cristãos. O próprio S.Paulo atesta , em suas cartas, que, enquanto judeu não cristão ele perseguiu ferozmente a Igreja de Deus (cf. Gl 1,13; 1 Co 15,9; Fl 3,6). Essas lembranças dolorosas devem ser ultrapassadas na caridade segundo o mandamento de Cristo. O trabalho exegético deve se preocupar de avançar sempre nesta direção e assim contribuir para diminuir as tensões e dissipar os mal-entendidos.

À luz de tudo isso, o trabalho que vós começastes é muitíssimo importante e merece ser levado com cuidado e compromisso. Certamente ele comporta aspectos difíceis e pontos delicados mas é muito promissor. De todo modo ele é rico de grandes esperanças. Desejo que ele seja fecundo e vos asseguro de minha lembrança constante na oração e concedo a todos, de todo coração uma especial Benção apostólica.







1998
 




[1]  Tradução, títulos e subtítulos de “La documentation Catholique”, 4 mai, 1997, nº 2159  pp. 406 - 407. Tradução para o português. Ir. Judite  Paulina Mayer nds.

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