sexta-feira, 30 de março de 2012

A PÁSCOA

Caríssimas Irmãs e Irmãos que se utilizam deste blog, o tempo liturgico em que vivemos como Igreja de Jesus Cristo, nos exorta a compreendermos o mistério de nossa existência humana, uma existência que só tem sentido no senhor nosso Deus. É ele quem nos cria por amor incondicional e irrestrito iniciando conosco uma aliança. Escolheu ele um povo, “Israel” para se manifestar em seu meio e de lá ser luz para todas as nações, congregando todas elas sob um único nome, Adonai. Esta aliança para conosco revelou-nos a grandiosidade de Deus em seus feitos, poder e majestade, mas revelou-se principalmente em sua capacidade se fazer-se pequeno, esvaziando-se para torna-se tal como nós, enquanto nos tornava tal como ele, santificando-nos e libertando-nos de nossos pecados, transformando o luto em alegria, a morte em vida plena. A encarnação do verbo de Deus marca nossa pertença a Ele, no verbo somos adotados pelo Pai, que sendo um Deus ciumento, cria-nos para a salvação. A salvação aconteceu graças ao sim do Filho ao projeto de amor proposto pelo Pai, o projeto nunca foi a cruz. O projeto foi o Reino; Nosso Deus é o Deus da vida e jamais desejaria a morte do Filho, entretanto, à cruz foi consequência dos atos daqueles que não compreenderam ou foram contrários ao projeto do Pai. A saber: “Vida em plenitude.” Ainda assim Ele continua nos buscando, nos procurando, nos desejando, fazendo aliança conosco e não cessa de nos amar de nos querer salvar. Que nesta pascoa que se aproxima, possamos compreender a passagem do livro do Apocalipse que nos diz: Eis que estou à porta e bato, se abrireis eu entrarei, sentarei a mesa e farei a refeição convosco, e que assim, façamos da páscoa de Cristo a nossa páscoa e da nossa páscoa a páscoa de Cristo. Amem.

segunda-feira, 26 de março de 2012

A DIMENSÃO DA TEOLOGIA DA PALAVRA NA LITURGIA

O MISTÉRIO DA PALAVRA DE DEUS

A Palavra de Deus é a primeira e a fundamental realidade à qual se liga todo o desenrolar do mistério cristão. A Palavra não representa apenas certo aspecto secundário da ação de Deus, mas, ao contrário, abrange toda a revelação.

Com a Palavra, Deus cria o céu e a terra; por meio da Palavra, ele se revela aos homens; pela proclamação da Palavra, nossa Salvação se torna ato, se realiza. Deus, falando, cria e opera toda a obra da Salvação.

A palavra de Deus é acontecimento, onde o Pai entra na história, onde o Filho prolonga o mistério de sua Páscoa e o Espírito atua com sua força. As celebrações da Palavra de Deus, especialmente aos domingos, fundamentam-se no caráter sacerdotal de cada batizado e batizada. “Ele fez para nós um Reino de sacerdotes”, nos recorda o Apocalipse. “Ele te unge sacerdote”, repetimos em cada celebração batismal. Isso é, cada celebração da Palavra é uma forma do povo consagrado “proclamar as maravilhas daquele que nos chamou das trevas à luz”.

ENCARNAÇÃO DA PALAVRA ETERNA (A PALAVRA E O VERBO)

Deus, que é pleno de amor e misericórdia, quer salvar e fazer com que todas as pessoas cheguem ao conhecimento da verdade (cf. SC 5).

Desde o Antigo Testamento vemos um Deus bondoso, que planejando e preparando com solicitude a salvação das pessoas, escolhe um povo a quem confia suas promessas (cf. Gn 15,18; Ex 24,8) e se revela, por meio de palavras e obras, a este povo eleito, como Deus único, vivo e verdadeiro (cf. DV 14).

As ações salvíficas eram explicadas pelas palavras dos profetas. Finalmente, quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à lei, para resgatar os que estavam sob o jugo da lei (Gl 4,4); assim a palavra fez-se carne e habitou entre nós (Jo 1,14). Até então, a comunicação entre Deus e a pessoa humana era de uma maneira fragmentada e por etapas (cf. Hb 1,1). Em Jesus Cristo, essa comunicação é completa, pois Ele é a palavra única, perfeita e insuperável do Pai. Nele o Pai disse tudo, e não haverá outra palavra senão essa.

Pela Palavra, que se fez carne (Jo 1,14), toda a carne é chamada a se tornar palavra de louvor a Deus (Hb 13,15). A Palavra de Deus, que fez e faz a história, já está presente na consciência de cada homem, ainda que, por vezes, de modo implícito.

Está presente na obra da criação, onde deixou seus vestígios (sementes do Verbo); esta mesma Palavra é levada às pessoas e aos povos pela evangelização, aprofundada pela catequese, celebrada pelos sacramentos e concretizada na vida diária.

CRISTO É A PERFEITA ENCARNAÇÃO DA PALAVRA

Cristo, sendo o Deus que revela, é, ao mesmo tempo, o Deus revelado. O Deus verdadeiro que Ele ensina é o Deus por Ele anunciado e nele reconhecido, assim como ao confessarmos o Filho confessamos também o Pai. Cristo é a verdade que nos liberta da mentira, o Amor que nos livra da solidão de nosso egoísmo. “Ele é a Verdade e a Vida” (Jo 14,6), a Verdade que nos ensina (Tt 2,12), “ouvi-O”, diz-nos o Pai (Mt 7,5).

O Cristo não pode ser comparado, sob este ponto de vista, com Buda, Maomé, Confúcio ou qualquer outro fundador de religião. Nas outras religiões, a doutrina e seu objeto distinguem-se do fundador. Aqui, pelo contrário, a doutrina do Cristo tem o Cristo como objeto. Nossa fé é a fé no Cristo como Deus. A salvação é uma opção a favor ou contra Cristo. O Cristo é, pois, a plenitude da revelação.

A Palavra é viva quando o interlocutor está presente e ela soa atualmente de sua boca.



DIMENSÃO CRISTOCÊNTRICA DA PALAVRA

Cristo: centro, mediador e plenitude da revelação

Jesus Cristo, encarnado na história humana até ao ponto de dar a vida para a salvação do mundo, é o centro e a plenitude da revelação, por isso é o centro das Escrituras. Toda a evocação da história da salvação gira em torno dele e é a partir dele que é realizada a leitura e interpretação da Sagrada Escritura – Antigo e Novo Testamento. Em Cristo tudo tem sentido, tudo fica esclarecido e tudo se orienta para ele, pois, principalmente pelo mistério pascal de sua sagrada paixão, ressurreição dos mortos e gloriosa ascensão, completou a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus (cf. SC 5).



A comunidade reunida em oração, pelo poder do Espírito Santo, anuncia e celebra o mistério pascal de Cristo, cada vez que proclama os dois testamentos. “No Antigo está latente o Novo, e no Novo se faz presente o Antigo. O centro e a plenitude de toda a Escritura e de toda celebração litúrgica é Cristo; por isso, deverão beber de sua fonte todos os que buscam a salvação e a vida”( Introdução do Ordo Lectionum Missae, n. 5. Ver também Dei Verbum, n. 2, 3, 7, 15, 16, 24).



A igreja, praticante da palavra de deus


Podemos dizer que a palavra faz a Igreja e a Igreja faz nascer a palavra, não no sentido de inventá-la, mas ao encarná-la e atualizá-la em sua realidade. Vejamos a afirmação do Ordo Lectionum Missae: “A Igreja cresce e se constrói ao escutar a palavra de Deus, e os prodígios que de muitas formas Deus realizou na história da salvação fazem-se presentes, de novo, nos sinais da celebração litúrgica, de um modo misterioso, mas real; Deus, por sua vez, vale-se da comunidade dos fiéis que celebra a liturgia, para que a sua palavra se propague e seja conhecida, e seu nome seja louvado por todas as nações. Portanto, sempre que a Igreja, congregada pelo Espírito Santo na celebração litúrgica, anuncia e proclama a palavra de Deus, se reconhece a si mesma como o novo povo, no qual a aliança, antigamente travada, chega agora à sua plenitude e perfeição. Todos os cristãos, que pelo batismo e a confirmação no Espírito se converteram em mensageiros da palavra de Deus, depois de receberem a graça de escutar a palavra, devem anunciá-la na Igreja e no mundo, ao menos com o testemunho de sua vida. Esta palavra de Deus, que é proclamada na celebração dos divinos mistérios, não só se refere às circunstâncias atuais, mas também olha o passado e penetra o futuro, e nos faz ver quão desejáveis são as coisas que esperamos, para que, no meio das vicissitudes do mundo nossos corações estejam firmemente postos onde está a verdadeira alegria” (OLM 7).

A palavra edifica a Igreja, povo de batizados, que reunida em assembléia, movida pelo dom do Espírito Santo, abre o ouvido do coração para escutar, celebrar e mais ainda, para proclamar e anunciar o acontecimento da salvação.

Somente a presença de Cristo impede que a Palavra se transforme em mero documento histórico. A Igreja tem o privilégio dessa presença, porque ela se identifica com o Cristo: ela é a sua continuação. Onde, pois, está a Igreja, aí está sua Palavra viva.

DIMENSÃO SACRAMENTAL DA PALAVRA

Nos sacramentos, a palavra opera aquilo que anuncia: é eficaz, operante, para santificar aquele que a acolhe como dom de Deus. Aí se realiza o pacto da Aliança e tudo deve convergir para a realização plena e diária desta Aliança.

A Palavra lembrada e realizada no sacramento deve transformar a existência do ouvinte. A liturgia realiza, pois, o contínuo diálogo de Deus com seu povo reunido.

O Senhor ora interpela, ora ensina, ora exorta, ora “diz e faz”. A assembléia, por sua vez, escuta, responde, medita, suplica, dá graças, até identificar-se com a Palavra.

A celebração da Palavra é um verdadeiro ato litúrgico. Tem força sacramental. Cristo se torna presente e nos faz participantes de seu mistério pascal pela reunião da comunidade, pelas leituras proclamadas e comentadas, pelos cantos e orações. O Concílio Vaticano II diz: “É Cristo mesmo que fala quando se lêem as Sagradas Escrituras na igreja. Ele está presente quando a Igreja ora e salmodia” (SC 7). Ele que prometeu: Onde dois ou três estiveram reunidos em meu nome, aí estarei no meio deles (Mateus 18,20).

A reunião dos irmãos e o amor que os une, torna visível, palpável e manifesta a união com Jesus Cristo e com o Pai, no Espírito Santo. Não só torna visível, mas faz também crescer nossa união com Ele.

Assim como a Eucaristia, também a Palavra é Pão da Vida. “Eu sou o Pão da Vida: quem vem a mim já não terá fome e quem crê em mim, jamais terá sede... As Palavras que vos tenho dito são espírito e vida...” (Jo 6,35.65).

O único Pão da Vida é partilhado de duas maneiras: à mesa da Palavra e à mesa da Eucaristia, representadas respectivamente pela Estante da Palavra e o Altar. São duas formas diferentes e complementares da presença real de Jesus no meio de seu povo para realizar nele a sua Páscoa. 

“Em Jesus Cristo a palavra de Deus não só se tornou audível, mas visível”. “O verbo se fez carne e habitou entre nós”.

Pastoral Social

O que é a Pastoral Social?

Entendemos por Pastoral Social, no singular, a solicitude de toda a Igreja para com as questões sociais. Trata-se de uma sensibilidade que deve estar presente em cada diocese, paróquia comunidade; em cada dimensão, setor e pastoral; na catequese, na liturgia e nas iniciativas ecumênicas; enfim, deve estar presente nas comunidades eclesiais de base, nos movimentos... Em outras palavras, deve ser preocupação inerente a toda ação evangelizadora. Pastorais Sociais, no plural, são serviços específicos a categorias de pessoas e/ou situações também específicas da realidade social. Constituem ações voltadas concretamente para os diferentes grupos ou diferentes facetas da exclusão social, tais como, por exemplo, a realidade do campo, da rua, do mundo do trabalho, da mobilidade humana, e assim por diante.

“Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de atividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (Bento XVI, Papa. Deus Caritas Est, nº 25).

A pastoral social é expressão desta caridade e da solicitude da Igreja com as situações nas quais a vida está ameaçada.

“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angustias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles e aquelas que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angustias dos discípulos e discípulas de Cristo” (Gaudium Et Spes)

Sua finalidade

A Pastoral Social tem como finalidade concretizar em ações sociais e específicas a solicitude da Igreja diante de situações reais de marginalização. Alertar para a tarefa de identificar, entre os filhos e filhas de Deus, os rostos mais sofridos, com vistas a dedicar-lhes uma solicitude pastoral específica.

A Pastoral social procura integrar em suas atividades a fé e o compromisso social, a oração e a ação, a religião e a prática do dia a dia, a ética e a política. Aqui é preciso superar as dicotomias entre “os que só rezam” e “os que só lutam”, “os que louvam e celebram” e “os que fazem política”. Na verdade, a verdadeira fé desdobra-se naturalmente em compromisso diante dos pobres. A ação social é condição indispensável da vivência cristã. O compromisso sócio-políttico não é um apêndice da fé. Ao contrário, faz parte inerente de suas exigências. A fé cristã tem, necessariamente, uma dimensão social.

Seguindo Jesus

Os diferentes serviços das pastorais Sociais colocam-se na dinâmica do seguimento de Jesus, para que nele os marginalizados, os excluídos – pobres, mulheres, crianças e adolescentes, sem terra, sem casa, os considerados “insignificantes” para o sistema, camponeses, indígenas, afro-descendentes, povos tradicionais, migrantes, itinerantes... – tenham vida e a tenham num ambiente preservado.





No Brasil

A identidade da Pastoral Social da Igreja no Brasil é resultado de uma caminhada de longos anos, durante os quais foi criado um “rosto” próprio, fruto das muitas ações que aqui e ali se articulavam para firmar o compromisso social das comunidades cristãs. Para moldar este rosto, a Igreja do Brasil teve que conhecer o seu próprio Deserto.

O Deserto

“O Deserto” é o lugar para onde Jesus dirigia-se para estar com o Pai. É a etapa do silencio, do contato íntimo com Deus, do discernimento, do enfrentamento das tentações. A missão que levamos adiante não nos pertence, ela é de Deus. O deserto é o lugar da escuta amorosa e obediente, do diálogo com Deus.

Não é qualquer “deus” que nos envia. É o Deus de Jesus Cristo quem nos interpela e nos convoca para a missão. É o Deus da Vida o Emanuel.

Dom Hélder Câmara dizia que “Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha no nosso eu. É parar de dar volta ao redor de nós mesmos, como se fôssemos o centro do mundo e da vida. É não se deixar bloquear pelos problemas do pequeno mundo a que pertencemos; a humanidade é maior. Missão é sempre partir, mas não devorar quilômetros. É abrir-se aos outros como irmãos, descobri-los e encontrá-los. E se para encontrá-los e amá-los é preciso atravessar os mares e voar lá nos céus, então, missão é partir até os confins do mundo”

Incompreensões e conflitos

Cristãos e cristãs envolvidos com as Pastorais Sociais enfrentam, cotidianamente, a situação de miséria, opressão e violência nos âmbitos econômico, político, social, cultural e de gênero, ou seja, enfrentam uma realidade marcada pela injustiça institucionalizada.

Este enfrentamento supõe situações de conflito e embates políticos, pois em seu compromisso com o estabelecimento de uma sociedade justa e solidária, esses agentes de pastoral, associados a outros movimentos sociais, mexem em interesses de grupos privilegiados ou que não desejam que haja mudanças.

A luta das Pastorais Sociais é árdua. Muitas vezes o preço é a perseguição e a morte. Não raro surgem incompreensões por parte dos próprios irmãos das comunidades. Muitas vezes, ouvem-se acusações de que as Pastorais Sociais confundem-se com política, partidos ou movimentos sociais. As pessoas envolvidas com a dimensão social da fé são, por vezes, acusadas de não cultivar a espiritualidade ou simplesmente de fecharem-se à dimensão transcendente e interessarem-se exclusivamente pela ação histórica.

Isto sem falar dos fracassos, das frustrações e da sensação de impotência frente aos poderes do mal e do sistema de morte. Outras vezes, é o cansaço e o desânimo que nos abate, devido sobretudo à sobrecarga de atividades. Na verdade, são poucos os que se aventuram por esse caminho, embora o trabalho seja imenso.

O campo de ação das Pastorais Sociais é, pois, conflitivo, porque elas movem-se em situações de fronteira e de deserto. Agindo nestes campos, os cristãos são chamados a manifestar a presença, posicionando-se segundo os critérios da ação de Jesus. E isto não é fácil, pois a realidade, em si mesma, muitas vezes, não é clara ou é difícil de ser percebida em sua totalidade. A conflitividade exige permanentemente a capacidade de discernir os espíritos, pois sempre estamos sujeitos às tentações e aos atropelos.

O encontro com o pobre

No encontro com o mundo dos pobres, os agentes das Pastorais Sociais recebem a força e a coragem para seu engajamento, pois no rosto dos excluídos e marginalizados encontra-se a razão da ação solidária. Os Bispos, em Aparecida, recordaram que “o encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. Da contemplação do rosto sofredor de Cristo neles e do encontro com ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa dignidade ele mesmo nos revela, surge nossa opção por eles. A mesma união a Jesus Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino”. (DA, nº257).

Estar com os pobres é condição para reconhecer seus valores, suas lutas, seu modo próprio de expressar a fé e sua maneira de celebrá-la. Na religiosidade popular encontram-se também exemplos de resistência, criatividade, coragem, esperança.

A convivência e a amizade com as pessoas que vivem em situação de pobreza, marginalização e exclusão são capazes de estabelecer relações novas, que fazem dos excluídos sujeitos de sua libertação. O agente está junto, incentiva, colabora. Ao mesmo tempo, aprende, humaniza-se e experimenta a presença amorosa de Deus, que acompanha e sustenta o povo.

A Palavra de Deus dá os critérios e sustenta a ação dos cristãos, por isso, eles são convidados a ter grande intimidade com ela. A Palavra de Deus não é somente lida no livro. Ela é consultada no coração. É ali, guardada com afeto, tornada vida, que ela é capaz de orientar e ajudar na decisão. (DA, 249).

Se não mais existissem pessoas em situação de miséria, fome, abandono absoluto, não haveria mais necessidade de praticas de socorro. Porém existem tais pessoas e elas devem não apenas ser socorridas, mas o socorro deve ser realizado como reconhecimento de um direito social básico: o direito à vida.

Em todas as práticas das Pastorais Sociais, um elemento essencial é a implementação de ações que ajudem as pessoas a superarem limites que são fruto da marginalização e da exclusão que atingiram sua existência. Trata-se, por exemplo, de enfrentar o analfabetismo, a falta de capacitação profissional ou de organização de uma iniciativa. São práticas ligadas ao que se tem denominado “promoção humana”.

Identidade da Igreja

As Pastorais Sociais estão no coração da identidade e da missão da Igreja. Procuram continuar a missão de Cristo, expressa claramente no capítulo quatro do Evangelho de Lucas.(Lc 4,18-19. O Esp. Do Senhor está sobre mim...). Elas reagrupam discípulos de Cristo das classes populares que procuram traduzir sua mensagem de paz e justiça nas estruturas da sociedade. A vitalidade das Pastorais Sociais nas dioceses é sinal da fidelidade da Igreja à sua missão de amor aos pobres. Voz profética dos pobres, elas questionam a sociedade e a Igreja.

É bonita a fé profunda e madura de muitos membros das pastorais Sociais. Sentem-se próximos de Jesus de Nazaré: Sendo filho de Deus, se fez gente do povo, trabalhador, compassivo e solidário, que está ao lado dos pobres. Ele anuncia um Reino de justiça e paz, cura os doentes, confirma a fé de seus discípulos, é vítima do sistema político-religioso de seu tempo, enfrenta livremente a paixão e morte na cruz para libertar seu povo da escravidão. O povo das Pastorais Sociais ama a figura e a pessoa de Jesus que viveu pobre, lutou contra o poder opressor, foi condenado e entregue à morte violenta. O povo reconhece a semelhança entre a vida de Jesus e sua própria vida.

O agente de Pastoral Social

O agente de pastoral é o que dá vida ás Pastorais Sociais. É aquele que acolhe a pessoa em suas necessidades; sabe escutar a voz de Deus que se faz ouvir nas pessoas e nos acontecimentos da vida; sabe amar as outras pessoas sem preconceitos, acolhendo-as do modo como elas se apresentam; coloca-se a serviço da vida, assumindo efetivamente seu compromisso cristão, defendendo, promovendo, cultivando e celebrando os valores presentes na vida dos empobrecidos.

A crise

Frente ao dinamismo profético das décadas de 70 e 80, a Igreja de hoje passa por um sentimento generalizado. Este sentimento não é visível apenas nas CEB’s e nas Pastorais Sociais, mas também no Movimento Sindical e nos Movimentos Sociais.

Uma das causas está na impressionante penetração do atual modelo econômico neoliberal e a mentalidade pós-moderna em todas as esferas da vida humana que, acabou gerando:

A morte das utopias: parece não haver alternativa ao modelo existente. A descrença na tradição familiar, religiosa e política (e a idolatria do relativismo). Um consumismo desenfreado que o Planeta não suporta. A “privatização” da crença e das praticas religiosas, a idolatria do “eu” desprepara a pessoa para lutar por uma causa comum. 

Como sair da crise

As Pastorais sociais estão por demais fragmentadas, desintegradas, desarticuladas e despolitizadas. Para enfrentar isso segue algumas sugestões:

·        Diminuir o grande número das Pastorais Sociais.

A Igreja não precisa assumir tudo,  e é preciso cobrar do poder público que cumpra seu papel. Não esquecer que a organização de cada Pastoral exige: destacar e formar novas lideranças, reservar tempo para reuniões e encontros, planejar e executar ações especificas, etc. na atual estrutura paroquial esta pratica fragmentada é insustentável.

·        Criar em cada comunidade uma única coordenação das Pastorais Sociais.

Isto facilita a integração entre as diversas pastorais sociais existentes; cabe a ela fazer ligação também com as outras pastorais (integrar): liturgia, catequese, juventude, etc.

·        Articular melhor os diversos níveis das Pastorais Sociais.

A coordenação da Comunidade se representa na Paróquia, da Paróquia na regional, da regional na Diocese, da Diocese nos níveis superiores. Esta articulação é viável apenas quando as ações concretas são decididas em comum, sem imposição.

·        Cabe às Pastorais Sociais aprofundar o caráter político de sua intervenção.

O que a Igreja constrói em anos, a Política pode destruir em minutos. Exercer o controle sobre a política cabe a cada cidadão, mas a Igreja, em nome do Evangelho do Reino, tem aí seu objetivo máximo. Cabe às Pastorais Sociais priorizar a constituição de um grupo que dinamize a participação da Igreja neste importante campo da vida humana.

Compaixão

Nesse contexto social, o que significa a compaixão? Palavra composta de outras duas: com - paixão. Estar com na paixão do outro, na cruz do seu sofrimento. Sentir a dor do outro e, juntos, buscar soluções alternativas. Estar com, não significa dar coisas, mas dar-se. Dar o próprio tempo, colocar-se à disposição. Em síntese, significa caminhar junto com aquele que sofre. Assumir sua dor e tentar encontrar saídas para superar os momentos difíceis.

Diz um provérbio chinês que perguntaram a determinada mulher a qual dos filhos ela mais amava. Ela, como mãe, respondeu: ao mais triste até que sorria, ao mais doente até que sare, ao mais distante até que volte, ao mais pequeno até que cresça.

Aqui está o espírito de toda a ação social. Hoje, como no tempo de Jesus, as multidões dos pobres encontram-se “cansadas e abatidas”. Cansadas de tantas promessas não cumpridas, de tanta corrupção e de tanto lutar em vão; abatidas pelo peso da exclusão e da miséria, da fome e da doença, do abandono e do descaso. Hoje, como ontem, a injustiça e a desigualdade social gera milhares de empobrecidos que se tornam excluídos, quando não exterminados. Geram, ainda, desemprego, violência, dependência química, prostituição, racismo e destruição do meio ambiente. Esta situação atinge todo planeta, porém, de forma mais brutal os países subdesenvolvidos.

O Reino de Deus, como sabemos, ultrapassa as fronteiras da Igreja e exige fé e pé na caminhada. Que possamos também nós, nos fazer caminhantes.

domingo, 11 de março de 2012

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2012

(Falando do aborto)

A Quaresma iniciou no Brasil e esse ano a Igreja Católica propõe como tema da “Campanha da Fraternidade” o lema “a fraternidade e saúde pública”. O objetivo da Igreja é de incentivar a reflexão e a participação social dos seus fieis e dos homens de boa vontade na defesa e na promoção da vida humana no nosso País.

Um tema que pode suscitar reflexões nessa Campanha é certamente o aborto que, segundo altos funcionários do nosso Governo, é uma questão de “saúde pública”. De fato, assim afirmou recentemente a sra. Eleonora Menicucci, que tomou posse há poucos dias como ministra da das Mulheres. Além disso, foi noticiado no Diário da União em 4 de outubro de 2010 que o Ministério da Saúde havia prorrogado um convênio com a Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, para estudar mudanças na legislação brasileira sobre o aborto. O projeto chamava-se “Estudo e Pesquisa – Despenalizar o Aborto no Brasil” e vem sendo feito desde 2007 [i].

Essas notícias dão a muitos a sensação de que o direito à vida no Brasil está com seus dias contados. Provavelmente, em breve, cada brasileiro que nascer deverá ser considerado um sobrevivente, pois ficará privado de direitos e da proteção legal na fase mais delicada da sua vida.

Podemos nos perguntar: Quais seriam os motivos que levam a algumas pessoas a assumir tão radicalmente um compromisso com a despenalização e promoção do aborto? Analisemos alguns desses aqui com o fim de colaborar com algumas reflexões sobre esse tema.

1) A vontade popular? Há quem diga que a despenalização do aborto no Brasil seria algo querido pelo nosso povo, de modo que poderia ser considerado como uma conquista democrática. Será realmente assim? Vejamos alguns dados: no dia 08/10/2010 o Instituto Datafolha realizou uma pesquisa em todo o País sobre o tema [ii]. O resultado foi que 71% da nossa população pensa que a lei do aborto deve continuar como está. Em 1993 o índice de pessoas que diziam que a legislação deve continuar como estava era de 54%, em 1997 era de 55% e em 2006, 63%. Ou seja, quanto mais passa o tempo, mais o nosso povo se mostra contrário ao aborto, assim como ocorre em diversos países onde essa prática é legal. Há algum tempo atrás foi feita uma enquete na website do Senado Federal sobre o aborto dos anencéfalos. O resultado apontou que 61% se declara contrária a essa prática [iii]. O que tudo indica a rejeição ao aborto no nosso País cresce a cada ano num ritmo veloz e, infelizmente, com a mesma velocidade cresce o empenho de uma parte de nossos políticos em legalizá-lo.

2) Questão de saúde pública? Qual seria a base de tal afirmação? São as seguintes: a Federação Internacional de Planejamento familiar (IPPF) afirma que no Brasil existem cerca de 200.000 mulheres internadas todos os anos por complicações devidas ao aborto [iv], sendo o número de morte bastante elevado. De modo semelhante, a Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que na América Latina ocorrem anualmente 3.700.000 abortos ilegais e que 62.900 mulheres morrem em decorrência de complicações dos mesmos [v]. Além disso, na metade de fevereiro de 2012 tivemos a notícia de que o governo brasileiro foi questionado pela CEDAW (Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres), órgão da ONU, por causa de 200.000 mulheres que morrem a cada ano no nosso País devido a abortos ilegais [vi].

Mas são verdadeiros esses números? Em primeiro lugar devemos saber que essas instituições não possuem nenhum hospital no Brasil e nenhuma equipe que recolha dados estatísticos nos hospitais brasileiros e latino-americanos. Na verdade, os únicos dados científicos que temos são os dados do DATASUS, do Ministério da Saúde. Esses dados provêm de cada caso clínico, já que o médico que atende é obrigado a marcar num relatório diário cada procedimento que realiza. Os últimos dados divulgados por esse organismo no Brasil são os de 2010 e mostram que naquele ano houve 1.358 mortes no Brasil em mulheres em idade fértil durante a gravidez, parto ou aborto [vii]. Em relação ao aborto, foram 83 mortes. (Em 1996 foram 146 e em 2004 foram 156). A “ministra das Mulheres” naquela reunião da ONU disse que o aborto estava entre as 5 causas de mortes de mulheres no Brasil; notícia essa negada pelo ministro da Saúde, Sr. Alexandre Padilha, que estimou em 1.800 mulheres ao ano o número de mulheres mortas nessas circunstâncias [viii]. Evidentemente, como bem observou a dra. Lenise Garcia [ix], se fosse verdade que 200.000 mulheres morrem ao ano no Brasil e que essa é a quinta causa de mortes entre mulheres, isso significaria ao menos 1 milhão de mulheres morrem por ano no Brasil e nossa população estaria entrando em processo de extinção, algo totalmente absurdo, basta conferir os dados do último Censo nacional.

É interessante notar que esses números do Brasil seriam menos de 0,02% dos dados da ONU para a América Latina. Há quem diga que esses dados são subnotificados para evitar complicações legais, mas isso é uma mentira desavergonhada, pois nesses dados não se inclui a ficha clínica do paciente e nenhum dos seus dados é vinculado ao procedimento realizado. Tais informações são meramente estatísticas e não servem de provas legais contra nenhum paciente.

Além disso, se o aborto fosse considerado “questão de saúde pública”, como se a gravidez fosse uma doença a ser eliminada, isso traria mais problemas ao nosso País do que soluções. Vejamos bem:

a) Em primeiro lugar porque isso exigiria do Estado a assistência às mulheres que quisessem abortar. De modo que se o aborto deixasse de ser considerado crime e passasse a ser um “direito do cidadão”, consequentemente se tornaria também um “dever do Estado” [x]. Isso implicaria um evidente aumento no custo com a saúde pública e, ao mesmo tempo, um desrespeito à consciência dos agentes de saúde que seriam obrigados a praticar o aborto, mesmo os que são contrários a tal prática. A consequência é que o pessoal do serviço médico deveria escolher entre fazer uma violência às suas consciências (para não ter que perder o emprego e o prestigio profissional); ou uma violência contra tantos seres humanos indefesos. De modo que se o aborto fosse considerado, injustificadamente, “questão de saúde pública” todo esse pessoal que estuda para salvar vidas, seria obrigado a praticar técnicas que só produzem morte e sofrimento.

b) Outro problema que o aborto causaria ao nosso serviço público de saúde pode ser o que atualmente acontece na Espanha, onde o aborto desde 2010 entrou na pasta dos serviços do Sistema Nacional de Saúde, que garantiria o aborto livre, universal e gratuito, como um “direito da mulher”. O que ocorre lá é que os hospitais públicos não realizam abortos, para não ter que fazer uma lista de “objetores de consciência”, o que colocaria em risco o “direito da mulher” ao aborto. Então a solução encontrada na Espanha foi encaminhar as mulheres a chamadas “clínicas” privadas (não são verdadeiras “clínicas” porque não se cura ninguém nesses lugares), que realizam o aborto, às custas dos impostos pagos pelos seus cidadãos. O triste resultado dessa medida é que as diversas “comunidades autônomas” da Espanha têm agora uma imensa dívida para com essas “clínicas”, o que causou inclusive uma greve. A dívida atualmente é de 4,9 milhões de euros e o Estado sofre grande dificuldade para pagá-la, devido à crise econômica que sofre aquele País. Essa penosa notícia diz ainda que aquelas dívidas “ameaçam o direito do aborto livre e gratuito na Espanha” [xi]. Agora imaginemos o que poderia ocorrer no Brasil se o aborto fosse considerado uma “questão de saúde pública”? Aconteceria que, na prática, o dinheiro dos nossos impostos serviria a financiar essa prática brutal e subtrairia preciosos recursos do SUS, que há anos funciona de modo bastante precário.

Esses dados demonstram que o aborto não é causa de “saúde pública” e, por sua vez, causa diversos problemas ao sistema sanitário. De fato, considerar o aborto como “questão de saúde pública” só é possível quando se aceita dados falsos ou manipulados. Legalizar o aborto no Brasil seria algo que contraria à imensa vontade da nossa população e ameaça a efetiva participação democrática. Além disso, essa prática demonstra um desrespeito desastroso às consciências das pessoas e, na prática, não serve para reduzir o número de abortos, algo que pode levar à falência ou a uma ainda maior precariedade o nosso SUS.

Pe. Anderson Alves, doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma.

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Mesmo quando se demonstra que aborto não é uma “questão de saúde pública”, ainda deve-se considerar outros argumentos que pretendem justificar a despenalização do aborto nos diversos Países, especialmente os da América Latina. Vejamos outros e busquemos colaborar ainda com reflexões suscitadas pelo tema da Campanha da Fraternidade de 2012 no Brasil (Fraternidade e saúde pública), assim como nos debates surgidos no cenário político nacional.

Questão de hipocrisia? Há quem argumente dizendo: “há muitas mulheres que recorrem ao aborto no Brasil, de modo irregular, correndo grande risco de vida. Permitir que isso continue ocorrendo é uma grande hipocrisia. Essas devem ser protegidas e o Estado deve dar condições apropriadas a mulheres pobres para que possam ‘abortar’ de modo seguro, sem correr perigo de vida, assim como deve proteger às que possuem suficientes recursos”.

Esse argumento parte de um pressuposto falso: que são muitas as mulheres que morrem no Brasil por causa do aborto cada ano. Já demostramos que esses dados são falsos e que os únicos dados científicos e fiáveis que temos são os fornecidos pelo ministério da Saúde brasileiro (DATASUS)[i]. Mas, independentemente disso, analisamos a forma mesma desse argumento, aplicando o mesmo tipo de argumentação a outros problemas sociais. Por exemplo: sabemos que no Brasil é grande o número de pessoas que alguma vez na vida ingeriu alguma bebida alcoólica antes de dirigir, embora haja uma explícita proibição do nosso Código de Trânsito. Poderia alguém argumentar dizendo: “a lei que pune quem dirige depois de ter consumido bebida alcoólica é uma grande hipocrisia, já que um grande número de pessoas do nosso País o faz. Essa lei deve ser cancelada, de modo que a população possa infringi-la tranquilamente, sem ser punida?” Evidentemente, o fato de que muitas pessoas infrinjam alguma lei justa não faz com que a mesma perca o seu valor. O fato, para citar outro exemplo, de que muitas pessoas tenha experimentado alguma vez certo tipo de droga, não faz com que as nossas leis de combate às drogas sejam hipócritas. Do mesmo modo, o fato de que haja muitas pessoas que recorram ao aborto (fato que deveria ser demonstrado e não suposto), não torna lícito o ato de eliminar uma vida humana inocente (não faria lícito o “homicídio intra-uterino”).

Questão científica? Há quem diga que o aborto não é questão de consciência pessoal, mas é algo que pode ser resolvido somente pela ciência e só é contrário ao aborto quem ainda defende certo “obscurantismo religioso”. É interessante notar que quem busca justificar o aborto desse modo supõe que as únicas pessoas inteligentes do mundo são os defensores do aborto e que motivos contrários ao mesmo só podem provir de uma argumentação irracional e religiosa. E se servem dos seguintes argumentos 1) nas primeiras semanas de concepção, o embrião (alguns criaram a categoria de “pré-embrião”, que vem sendo rejeitada inclusive pela União Europeia) é apenas um grupo de células, desprovida de sistema nervoso, de modo que a mulher pode fazer com o seu corpo o que quiser; 2) além disso, é algo muito discutido quando se começa realmente a vida humana;

Esses argumentos são tão repetidos quanto falaciosos. Em primeiro lugar a ciência mesma afirma que a partir do momento da concepção, da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, começa a existir um ser vivo com um DNA humano único. O embrião, sendo ainda uma célula, possui um DNA único e jamais se dará novamente uma informação genética igual. Esse ser possui as características próprias de um ser vivo: unidade, continuidade, autonomia e especificidade. a) Unidade: possui uma individualidade biológica, é um todo composto de partes organizadas, que possui como centro organizador o genoma humano; b) Continuidade: significa que não se dá nenhum salto qualitativo desde a fecundação até a morte. Todo o desenvolvimento daquele ser está previsto pelo genoma; c) Autonomia: desde o ponto de vista biológico, todo o desenvolvimento se dá desde o princípio até o final de modo autônomo; a informação que dirige esses processos provém do genoma, já presente no embrião. Desde o início ocorre um “diálogo químico” do embrião com a mãe, que o nutre e custodia; d) Especificidade: esse ser vivo pertence exclusivamente à espécie humana.

Desse modo, o que dirige todo o processo de desenvolvimento, passando pelo nascimento e prosseguindo até o final da vida é o genoma humano. Depois de 2 semanas da fecundação, o embrião está totalmente implantado no útero. Na semana seguinte, já está formando o cérebro, a medula espinal e os olhos e depois de alguns dias o coração começa a bater. Esse ser vivo, identificado por um DNA único, se fosse retirado do útero materno poderia viver até 80 anos congelado, assim como qualquer outro ser humano. E se pode “viver congelado”, é porque se trata de um ser vivo. É verdade que o embrião se alimenta da mãe, assim como os recém-nascidos o fazem e como fizemos todos nós. O embrião e o feto, porém, não são parte do corpo da mulher. Aceita-lo significaria, além de negar evidências científicas, desprezar injustificadamente o papel e a importância do pai. Desde o ponto de vista meramente material, o embrião não se forma espontaneamente no corpo da mulher, mas necessita sempre da participação do homem. Isso é algo evidente, mas tende a passar despercebido. Aquele ser que é gerado, não pode ser considerado como um objeto, como uma enfermidade ou como um pedaço da mulher, mas sim como um indivíduo único da espécie humana. Não há nenhuma dúvida científica séria sobre esses temas, o que às vezes ocorre é a manipulação de alguns dados científicos por motivos ideológicos.

Perseguição às mulheres? Há quem diga ainda que a penalização do aborto significaria um modo de perseguição às mulheres, uma forma de discriminação e de desrespeito à “igualdade” e à dignidade da mulher. Além disso, dizem (e com razão) que nenhuma mulher pretende realmente fazer o aborto, e quando o faz, necessita de ajuda e não de uma punição por parte do Estado.

É lógico que quem pensa que a lei do aborto deve continuar como está não pretende perseguir nenhuma mulher. Na prática, nenhuma mulher é enviada à prisão por ter cometido um aborto no Brasil e ninguém deseja isso. O motivo pelo qual o aborto deve continuar sendo considerado um crime é porque somente assim o valor incondicional da vida humana é afirmado, em todos os seus estágios e é protegido contra todo tipo de manipulação e ameaça. Manter legalmente a pena ao aborto significa continuar afirmando a maldade intrínseca de tal ato, (o seu caráter de reprovável socialmente) e o valor absoluto da vida humana. Um governo sério e responsável deve ajudar a promover o bem estar das mulheres e elaborar políticas que protejam a instituição familiar, de modo que não haja jamais a necessidade de se pensar em recorrer ao aborto. Além disso, reconhecer que o aborto só causa sofrimento é um motivo a mais para que esse não seja legalizado. Não é solução para nenhum problema social o recurso a um gesto tão repugnante e violento como a destruição de uma vida humana.

Ademais as leis têm sempre uma função pedagógica nas sociedades. Antes de dizer o que deve ser permitido ou proibido, as leis promovem e defendem bens e valores, indispensáveis à construção de uma sociedade justa. Manter o aborto como crime (e não aceitá-lo como direito) significa defender a vida humana, toda vida (especialmente a dos seres mais indefesos), em todas suas fases e não constitui, absolutamente, uma forma de perseguição contra as mulheres que sofrem. Vale a pena lembrar que mais de 50% dos seres humanos mortos por causa do aborto são mulheres e, paradoxalmente, não são muitas as feministas que demonstram preocupação com essas vítimas.

Qual será, pois, a justificação para uma possível despenalização do aborto no Brasil? Seguramente nenhuma, a não ser a pressão de organismos internacionais que querem impor suas Ideologias de morte nos diversos Países do mundo, através daquilo que vem sendo chamado atualmente de “niilismo jurídico”. Essa teoria afirma que o Direito positivo não possui fundamentos no Direito Natural, de modo que as leis provêm somente da vontade do legislador, que expressaria o desejo da maioria, e não da racionalidade implícita na mesma lei. Se isso fosse assim, o Direito se tornaria um mero instrumento do poder, de modo que qualquer Ideologia ou qualquer sistema totalitário poderia se justificar.

A verdade é que a despenalização do aborto não é um desejo da sociedade brasileira, que se funda na instituição familiar e que ama de modo incondicional a vida. Se fosse permitida tal despenalização, isso consistiria uma atitude antidemocrática, que contrariaria frontalmente a vontade da imensa maioria do nosso povo, assim como a confiança depositada nos nossos governantes e se basearia exclusivamente em mentiras insistentemente repetidas, infelizmente, por importantes organismos internacionais.

E o que poderia fazer o povo brasileiro para mostrar sua rejeição ao aborto e para trabalhar efetivamente pela defesa e promoção da vida humana? Qual gesto concreto, inspirado na participação social e nos objetivos da Campanha da Fraternidade desse ano, poderia ser feito no nosso País? Certamente nosso povo poderia repetir o que fez de modo exemplar com a proposta e aprovação do Projeto de Lei “Ficha Limpa”. De modo que poderia continuar mostrando seu amor pela vida e pela autêntica democracia pedindo, por meio de abaixo-assinado, a aprovação do “Estatuto do Nascituro” [ii], que prevê a defesa da vida em todas as suas fases, desde a concepção até sua morte natural, segundo os princípios da Declaração Internacional dos Direitos Humanos, da nossa Constituição[iii] e do nosso Código Penal[iv]. Se isso for feito, mostraremos ao mundo que não temos vergonha da nossa identidade, que não cedemos a pressões ideológicas de grupos que só buscam promover, injustificadamente, uma mentalidade de morte no mundo ocidental.

Pe. Anderson Alves, doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma.